Bruce Hoffman

Daniel Culley

Michael Goldenberg

Shannon Manley

Ao longo do ano passado, vários projetos de lei voltados para grandes empresas de tecnologia foram apresentados nos Estados Unidos. Esses projetos variam em escopo e finalidade. Por exemplo, um deles propõe o projeto de Lei de Concorrência e Oportunidade das Plataformas (Platform Competition and Opportunity Act, PCOA), cujo objetivo é limitar significativamente as atividades de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/fusoes-e-aquisicoes">fusão e aquisição</a> de grandes empresas de tecnologia enquanto outro propõe a Lei para o Fim dos Monopólios das Plataformas (Ending Platform Monopolies Act, EPMA), que busca desmembrá-las totalmente.
Aparentemente, entre todas as propostas direcionadas a empresas de tecnologia apresentadas recentemente nos Estados Unidos, há evidências que os dois projetos de lei com maior probabilidade de aprovação referem-se à Lei de Escolha e Inovação Online dos EUA (American Innovation and Choice Online Act - AICOA) e à Lei de Abertura do Mercado de Aplicativos (Open App Markets Act - OAMA). Ambos visam o tratamento preferencial a bens ou serviços próprios que tem sido praticado por grandes plataformas (self-preferencing) — ou seja, decisões de negócios que beneficiam os produtos e serviços do próprio operador da plataforma em detrimento de outros usuários. A AICOA seria aplicável a quase todos os produtos e serviços populares do grupo de empresas denominado pela sigla GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft). A OAMA, por sua vez, criaria regulamentos específicos para lojas de aplicativos e sistemas operacionais.
A prática de self-preferencing por plataformas digitais tem sido objeto de muita discussão no âmbito concorrencial. Alguns críticos expressam preocupação quanto à possibilidade de que um pequeno grupo de empresas se torne responsável social e economicamente pelo ecossistema online, podendo abusar dessa posição. Propostas legislativas como a AICOA e a OAMA são fruto dessa preocupação.
No entanto, a regulamentação do tratamento preferencial contestaria a lei concorrencial vigente. Nos Estados Unidos, as empresas são obrigadas a fazer negócios com seus concorrentes apenas em circunstâncias bastante específicas e não há qualquer determinação que as obrigue a tratar seus concorrentes da mesma maneira tratam a si mesmas. Conforme afirmou a Suprema Corte dos EUA, o Sherman Antitrust Act “não restringe o reconhecido direito de um comerciante ou fabricante envolvido em relações comerciais totalmente privadas de exercer livremente seu direito de escolher as partes com as quais negociará”. (Estados Unidos vs. Colgate &amp; Co., 250 US 300, 307 - 1919)
A atual abordagem dos Estados Unidos deriva em parte do ceticismo de que os tribunais podem atuar como reguladores dos termos em que as empresas fazem negócios. Conforme entendimento da Suprema Corte dos EUA: um “problema deve ser considerado irremediável pela lei antitruste quando o acesso compulsório exigir que o tribunal assuma os controles cotidianos característicos de uma agência reguladora”. Verizon Commc'ns Inc. vs. L. Offs. de Curtis V. Trinko, LLP, 540 US 398, 415 (2004). A regulamentação do tratamento preferencial pode exigir que os tribunais sejam responsáveis por este difícil julgamento de valor.
Em teoria, a nova legislação de self-preferencing exigirá apenas que os tribunais garantam que as plataformas tratem seus concorrentes da mesma maneira que tratam a si mesmas. Entretanto, na prática, isso pode ser mais difícil do que parece. Vejamos o porquê em três hipóteses: um caso “simples”, um caso “mais complexo” e um caso “muito complexo”.
<h3>Caso 'simples'</h3>
Digamos que um serviço de comércio eletrônico codifique seu algoritmo para garantir que apenas seus próprios produtos possam ser exibidos nos primeiros cinco lugares em cada resultado de busca. Pode ser bastante simples para um tribunal determinar que essa medida “dá preferência aos produtos, serviços ou linhas de negócios do próprio operador da plataforma em detrimento de outro usuário comercial na plataforma”. AICOA, Cláusula 3(a)(1). Mas a criação de um remédio suscita sérias complexidades. É claro que um tribunal pode ordenar que um provedor elimine os cinco primeiros lugares codificados, mas a questão então se torna o que substitui esse algoritmo: se o provedor configurar seu algoritmo para usar critérios neutros, e se esses critérios resultarem em seus próprios produtos sendo colocados em classificações altas, o tribunal enfrentaria questões mais complicadas. Para entendermos o motivo, vejamos o caso mais complexo.
<h3>Caso 'mais complexo'</h3>
Digamos que um provedor hospede vídeos e ajude os usuários a encontrá-los por meio de uma classificação segundo critérios relevantes, mas esses critérios fazem com que os vídeos do próprio provedor tenham um posicionamento privilegiado. Por exemplo, talvez o ranking considere a resolução do vídeo, e os vídeos do próprio provedor têm uma definição extremamente superior. Teria o provedor violado a AICOA? Talvez não: a AICOA possui uma tese de defesa afirmativa para ações que são “razoavelmente preparadas e necessárias” para “manter ou melhorar significativamente” a funcionalidade de plataforma principal. AICOA, Cláusula 3(b)(1)(c).
Vídeos de alta resolução são aparentemente mais desejáveis, e a função central do mecanismo de pesquisa é ajudar os usuários a encontrar os vídeos que desejam assistir. Entretanto, mesmo critérios aparentemente objetivos podem forçar os tribunais a fazer julgamentos subjetivos. Por exemplo, se um requerente argumentar que os vídeos de alta resolução carregam mais lentamente, não fica claro como um tribunal deveria ponderar esses argumentos de forma objetiva em relação aos benefícios associados aos vídeos de alta resolução. Além disso, um requerente poderia alegar que ao invés de considerar a resolução, o provedor teria considerado a resolução de maneira desproporcional em relação a outros fatores como, por exemplo, o número de visualizações que um vídeo recebeu. Essa situação levantaria questionamentos complexos, como:
<ol>
<li>O tribunal tem competência para avaliar como os critérios devem ser ponderados para classificação dos vídeos?</li>
<li>Como o tribunal deve determinar se um algoritmo de classificação de vídeo é justo?</li>
<li>Se o tribunal determinar que houve tratamento preferencial indevido em relação ao próprio provedor, como essa questão deveria ser sanada? Deveria, por exemplo, exigir uma ponderação de classificação específica para a velocidade de carregamento dos vídeos?</li>
<li>Como as empresas de tecnologia podem tomar decisões técnicas complexas a priori sem saber se o tribunal determinará que suas ações descumprem a lei?</li>
<li>Esse regime jurídico tornaria as decisões sobre produtos que beneficiam os usuários mais brandas?</li>
</ol>
<h3>Caso 'muito complexo'</h3>
Digamos que uma empresa que administra tanto uma plataforma de mensagens instantâneas como uma plataforma de streaming de vídeo adote uma política de desinformação sobre a Covid-19. De acordo com essa política, a empresa remove vídeos enganosos sobre vacinas de sua plataforma. Em resposta, os usuários que criam esses vídeos migram para plataformas de streaming menos escrupulosas, que não removem esse conteúdo. A empresa também filtra mensagens compartilhadas com conteúdo associado à desinformação sobre a Covid-19 em sua plataforma, inclusive em vídeos extraídos de outras plataformas de streaming. Como resultado, a política limita a distribuição de determinados vídeos de concorrentes menos escrupulosos, reduzindo a distribuição de tais vídeos em sua plataforma de mensagens em relação à própria plataforma de streaming da empresa. Isso violaria a AICOA? Ao contrário do exemplo anterior, a AICOA não tem defesa afirmativa para coibir a desinformação. AICOA, Cláusula 3(b). E mesmo que isso tivesse, a situação ainda levantaria uma série de perguntas:
<ol>
<li>Os tribunais têm competência para determinar o que é e o que não é desinformação?</li>
<li>Se um tribunal decidir que a forma como uma plataforma regula desinformação constitui self-preferencing, o que deveria ser feito para sanar essa questão?</li>
<li>Há uma definição consistente para o conceito de desinformação em áreas controversas como, por exemplo, a Covid-19, sobre a qual a percepção de desinformação varia de pessoa para pessoa (e de juiz para juiz)?</li>
<li>O conceito de desinformação pode ser definido com clareza suficiente para permitir que as plataformas atuem em áreas sensíveis?</li>
<li>A resposta para quaisquer das perguntas acima muda quando o partido político do qual se discorda está no controle do Poder Executivo ou dos tribunais?</li>
</ol>
As hipóteses acima representam uma questão mais ampla. Regulamentar questões de self-preferencing exigirá que tribunais e agências reguladoras façam juízos de valor complicados sobre o que constitui preferência. Esses julgamentos exigirão que tais tribunais e agências reguladoras compreendam o processamento de produtos/serviços técnicos complexos e, nos casos em que a discussão de remédios for necessária, tomem decisões sobre como esses produtos/serviços devem ser desenvolvidos. Tais situações também podem forçar os tribunais a proferir julgamentos normativos que não lhes sejam convenientes. Essas decisões irão pressionar os limites das atribuições dos tribunais. Também farão com que fique mais difícil para que as empresas de tecnologia tenham a certeza necessária para tomar decisões de negócios.
Por fim, darão aos tribunais e agências reguladoras uma discricionariedade adicional significativa, que pode se tornar menos atraente quando o partido que apoiam não estiver no poder. Dadas as recentes reclamações sobre agências reguladoras que usam a aplicação da lei concorrencial para fins políticos e a franca animosidade de muitos legisladores em relação às empresas de tecnologia, essas questões devem provavelmente surgir caso as propostas legislativas sejam aprovadas.

celular

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Propostas recentes de tratamento preferencial nos EUA podem forçar tribunais a agirem como reguladores

O perigo estará nos detalhes

Propostas recentes de tratamento preferencial a bens ou serviços próprios nos EUA podem forçar tribunais a agirem como reguladores