Felipe Herdem Lima

William Faulker, escritor norte-americano que recebeu o nobel de literatura em 1949, em uma de suas passagens marcantes escreveu que: “ o passado nunca está morto. Nem está passado.” Ao me debruçar sobre um tema de tanta complexidade como o que pretendo abordar, este frase me pareceu pertinente, principalmente pelo fato que irei me  concentrar em nossas características históricas e culturais em relação ao autoritarismo ainda muito presente nos duas atuais e no cotidiano da relação Estado - Cidadão.
Para tanto, é preciso partir da premissa de que infelizmente ainda é possível constatar a persistência de práticas autoritárias convivendo lado a lado com uma Constituição, em tese, democrática. Quem de alguma forma opera com o direito, sabe, por vezes, a dificuldade da relação ainda muito verticalizada da Administração perante o cidadão, especialmente em processos decisórios externos e restritivos de direitos, onde é possível identificar um descompasso entre o arcabouço constitucional e a realidade prática da atuação estatal.
Trata-se, portanto de grave deficiência institucional, tendo em vista a relevância assumida hoje pelos instrumentos de aplicação do direito. Em notável tese de doutorado, DEMIAN GUEDES, exemplifica alguns pontos que em certo grau ainda guardam um descompasso entre estas duas realidades. São eles: (i) desequilíbrio processual; (ii) contraditório limitado; (iii) parcialidade de autoridades julgadoras, com poderes consolidados; (iv) critérios diferenciados de distribuição do ônus da prova; e (v) aplicação de sanções com base em proibições genéricas e sem fundamento suficiente. <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Destarte, o ponto central deste breve reflexão é a de que a democratização do Estado brasileiro é absolutamente incompleta quando não penetra nas práticas e no cotidiano da Administração e de seus agentes públicos. Da mesma forma, a democratização do Estado brasileiro não se pode limitar ao seu regime político ou de governo, “impõe a avaliação permanente de suas instituições voltadas à interação com empresas e cidadãos, num esforço de paulatina abertura da Administração Pública e horizontalização de suas relações jurídicas”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Neste cenário, liberdades civis e processos eleitorais não são por si só suficientes para o reconhecimento de uma democracia consolidada.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, como lembra PAULO BONAVIDES, todo governo, por mais autoritário que sejam os seus métodos, pretende-se apresentar como democraticamente legítimo, ou seja, mesmo com eleições regulares e princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito, o cotidiano da atuação estatal desmente valores constitucionais, fazendo da consolidação da democracia uma promessa não cumprida.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a></blockquote>
GUILLERMO O”DONNEL, referindo-se à realidade brasileira pós-1988, observa que, apesar de não impedir eleições regulares, a incapacidade de a burocracia estatal promover participação pública impede a qualificação do nosso Estado como efetivamente democrático, mesmo diante da contestação de que ele se encontra inserido em um ambiente de democracia política. Para o autor, a ausência ou a fragilidade de instrumentos administrativos e instituições eficazes para o questionamento de atos emanados do Poder Público pode definir um estado como autoritário.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Feitas estas breves considerações sobre o autoritarismo ainda presente no país, a literatura sobre o tema<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, fazendo uso de um retrocesso histórico nacional levanta alguns pontos que nos levaram a este dualismo entre uma “democracia” mascarada por resquícios autoritários.
Em linhas gerais, é possível destacar: (i) as origens coloniais da Administração, com a inauguração de um Estado sem sociedade; (ii) modelos ibéricos de burocracia, com alta centralização, hierarquização e profissionalização; (iii) uma sociedade hierarquizada marcada pela escravidão; (iv) após a independência, a adoção da monarquia de traços absolutistas, desprovidas de instituições intermediárias sólidas; (v) a inauguração da uma República militar, em crise com ideais liberais; (vi) as repetidas suspensões do regime democrático no período republicano, especialmente durante a estruturação de grande parte das instituições públicas brasileiras, nas décadas de 1930 e 1940, com o apogeu do pensamento nacionalista autoritário brasileiro; e (vii) um processo de redemocratização lento e negociado após o regime militar de 1964, com acentuada permanência de estruturas, pessoal e instrumentos jurídicos ditatoriais.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">Em certo grau, todos os pontos citados proporcionaram de alguma forma uma espécie de normalização do autoritarismo do Estado Brasileiro, seja mediante a manutenção de algumas práticas, regras, princípios ou até mesmo posicionamento jurisprudenciais que serviram como pilares para ações despóticas, acarretando em um esvaziamento da participação democrática na Administração Pública.</blockquote>
Já concluindo, deixo a reflexão de DEMIAN GUEDES, de que nem o direito administrativo, nem o Estado brasileiro, foram criados ou moldados para a democracia. Para justificar seu posicionamento o autor observa as origens históricas acima dispostas, principalmente no que toca a falta de vocação democrática e a permanência de um pensamento autoritário, marcada pelo protagonismo estatal e pela baixa participação social na vida política e pela proeminência do Poder Executivo no cenário político-institucional.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Por fim, deixo constatação do recentíssimo estudo de Yascha Mounk, em o Povo contra a democracia, em que a autor constatou um aumento em todos os países da quantidade de pessoas que toleraria e até desejaria uma ditadura militar.
Aí está a nossa catástrofe.
-------------------------------
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> GUEDES, Demian. Autoritarismo e Estado no Brasil: tradição e processo administrativo. Belo Horizonte: Letramento, 2016, pg. 136
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> GUEDES, Demian. Autoritarismo e Estado no Brasil: tradição e processo administrativo. Belo Horizonte: Letramento, 2016, pg. 21.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BONAVIDES, Paulo. Ciência política. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 321
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> O´DONNEL, Guillermo. On the State, Democratization and some Conceptual Problems: A Latin American View with Glances of Some Postcomminist Countries. World Development, nº 21, v 8, 1993, p. 1359.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> UEDES, Demian. Autoritarismo e Estado no Brasil: tradição e processo administrativo. Belo Horizonte: Letramento, 2016, pg. 51.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> GUEDES, Demian. Autoritarismo e Estado no Brasil: tradição e processo administrativo. Belo Horizonte: Letramento, 2016, pg. 51.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> GUEDES, Demian. Autoritarismo e Estado no Brasil: tradição e processo administrativo. Belo Horizonte: Letramento, 2016, pg. 17.

old-books-436498_1920

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A origem da patologia do autoritarismo no processo administrativo brasileiro

O passado nunca está morto, nem passado

A origem da patologia do autoritarismo no processo administrativo brasileiro