João Vítor Barros de Carvalho

Gabriel Martins Ramalho de Castro

No último dia 29 de julho, o Banco Central do Brasil informou publicamente que, por decisão do Conselho Monetário Nacional, lançaria em um mês a nova cédula de R$ 200,00 (duzentos reais). Desde o primeiro momento, a novidade gerou uma expectativa social controvertida – flutuante entre o ânimo da inovação, especialmente porque há dezoito anos não acontecia nada parecido, e a desconfiança sobre uma medida tão impactante em momento de crise sanitária com proporções inéditas.
Diferentemente do que a história nos remete de imediato, dessa vez a nova nota não foi anunciada pelo Banco Central como uma providência diretamente relacionada com o controle inflacionário. Na verdade, os poucos documentos fundamentadores demonstravam que a decisão foi pautada em duas circunstâncias específicas reflexo da pandemia de Covid-19, notadamente: (i) o aumento do gasto com a emissão de notas, decorrência natural do pagamento de auxílio emergencial; e, por outro lado, (ii) a redução da circulação dessas notas – ou o crescimento do entesouramento de recursos –, consequência do momento de incerteza vivenciado.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
De fato, dados recentes do Banco Central e Estudos Científicos (e.g. <a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer">estudo britânico publicado na Social Science Research Network – SSRN</a>) sobre economia em tempos de crise ratificam que ambos os fundamentos são ponderáveis. Sem prejuízo dessa constatação, porém, é preciso analisar se esses elementos por si só validam juridicamente a solução de circular uma nova cédula no mercado. Em outras palavras, pretende-se analisar, a partir da experiência nacional e internacional e do contexto socioeconômico atual do Brasil, se a medida assim fundamentada respeita os princípios que devem pautar os atos da administração pública.
Como se sabe, o Poder Público é balizado pelo princípio da legalidade estrita – i.e. deve-se respeitar os rigores da legislação. A criação da nova cédula seguiu a previsão geral da Lei nº 9.068/95, do Decreto nº 1.307/94 e, especificamente, a Lei nº 4.595/64, que criou o Conselho Monetário Nacional. Não há, portanto, qualquer vício formal na criação da cédula de novo valor.
A despeito disso, a tônica do capítulo e dos dispositivos que regulamentam o Conselho Monetário Nacional guardam ampla compatibilidade com outros princípios norteadores da administração pública, previstos na Constituição Federal de 1988 e consagrados pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que devem igualmente ser analisados: eficiência, motivação e proporcionalidade.
Nesse aspecto, o ato que determinou a criação nova cédula não parece ultrapassar nenhum desses testes constitucionais. Inicia-se pela análise da motivação adequada: intimado pelo Supremo Tribunal Federal a se manifestar sobre o ponto na ADPF nº 726/DF, o Banco Central reafirmou que a razão de ser da medida é o fato de que “não havia alternativa tecnicamente viável para fazer frente à crescente necessidade de numerário surgida com o pagamento de inúmeros benefícios financeiros pela União e por diversos entes subnacionais e com o elevado entesouramento verificado após a emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Covid-19)”. 
Apesar de ser retratado como um problema grave e sem outra solução, existem algumas incoerências internas e externas nos discursos que colocam em xeque essa suposta necessidade da medida. Quanto à incoerência interna, durante a <a href="https://www.youtube.com/watch?v=cq_UiEkBx-E" target="_blank" rel="noopener noreferrer">coletiva de lançamento</a> da nova cédula, o próprio Banco Central demonstrou que não há urgência para combater os efeitos imediatos da Covid-19 vinculados ao número de papel-moeda circulante. Nesse sentido, por exemplo, Carolina de Assis Barros, Diretora de Administração do BC, registrou textualmente que “a quantidade de papel-moeda em circulação é adequada”.
Em relação à incoerência externa, essa medida não foi adotada em nenhum outro lugar do mundo, embora se trate de uma pandemia global. Não se ignoram aqui as singularidades econômicas que circunscrevem cada país, mas a experiência internacional – que também teve um esforço conjunto e notável para o contingenciamento dos impactos da Covid-19 – deve servir de exemplo e ajudar na busca de outras soluções, provisórias e compatíveis com o momento. De todo modo, o fato de se buscar combater uma situação notoriamente temporária com uma medida definitiva – e com largos efeitos potencialmente perniciosos a longo prazo – já deixa claro que há deficiência de motivação no ato.
Não bastasse isso, a medida em discussão cria investimento no sentido oposto ao da integralização tecnológica, em contraponto ao movimento mundialmente seguido no setor. E nem se diga que pensar em digitalização do papel-moeda no atual momento do Brasil seria uma utopia: afinal, dados contundentes apontam que o contingente populacional que não dispõe de conta bancária ou acesso à internet no país é exatamente o mesmo, ou menor ainda, do que aquele que não tem renda mensal suficiente que lhes permita dispor de uma única nota da nova cédula[1].
Em verdade, as pesquisas recentíssimas demonstram que a pandemia contribuiu para pulverização da tecnologia inclusive nas classes economicamente desfavorecidas. Nesse sentido, atualmente as carteiras digitais já são o principal meio de negociações no país[2]. Não há razão, portanto, que possa legitimar esse investimento analógico relevante. O progresso, nesse particular, demanda um esforço convergente para ampliar e facilitar o acesso à digitalização da economia – e não uma saída paliativa que cria solução artificial para o problema.
Da mesma forma, o ato de criação da nova cédula não parece superar o princípio constitucional da eficiência. Ao menos três razões confirmam essa percepção.
Primeiro, como já antecipado, o Banco Central não apresentou documentos estruturados que embasassem a criação da nota. Sintomaticamente, também não existem estudos que demonstrem qualquer previsão – não apenas a curto, mas sobretudo a longo prazo – de solução amplamente eficaz da medida.
Segundo, a nova nota teria baixa probabilidade de resolver o gasto na fabricação de cédulas. É que, como na realidade brasileira a maior parte das transações comerciais feitas em cédulas envolve valores baixos[3], ou a nota de duzentos reais se tornaria inócua, ou ela aumentaria a despesa com fabricação de outras cédulas que necessariamente precisariam ser dadas como troco.
Terceiro, como demonstra <a href="https://www.hks.harvard.edu/centers/mrcbg/publications/awp/awp52" target="_blank" rel="noopener noreferrer">estudo</a> produzido pela Universidade de Harvard, notas de alta denominação facilitam a criminalidade em diversos aspectos. De forma específica, a emissão de notas de alto valor:
(i) simplifica a operacionalização do ato corruptivo. Isso porque, como é intuitivo, torna-se possível esconder mais dinheiro em menores compartimentos. Para ilustrar, vale destacar dados apurados pela Organização Transparência Partidária no sentido de que em uma pequena maleta executiva caberiam R$ 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil reais) em notas de R$ 200 (duzentos reais)[4]. E a experiência internacional comprova que esse não é um argumento pouco relevante: com base também nesse sólido prognóstico, a União Europeia retirou de circulação a nota de € 500,00 (quinhentos euros). Outro caso emblemático foi a Índia, que retirou de circulação as cédulas de quinhentos e mil rúpias – equivalente a R$ 25,00 (vinte e cinco reais) e R$ 50,00 (cinquenta reais) respectivamente – com o objetivo de reduzir o alocamento não declarado de valores;
(ii) estimula roubo e furto, especialmente em estabelecimentos pequenos. Dados coletados em 2019 e 2020 demonstram redução no número de furtos e roubos à caixa de estabelecimentos pequenos[5]. Os motivos estão vinculados à efetividade de novas políticas públicas, do louvável trabalho da inteligência da polícia e de novas tecnologias implementadas nos comércios. Apesar disso, a circulação da nova nota de elevada denominação coloca uma vez mais em evidência esse tipo de delito: com a transação da nota de R$ 200,00 (duzentos reais) haverá mais valor alto circulando em caixa.
Por fim, a criação da nova nota também não ultrapassa o requisito da proporcionalidade. Muito embora esse argumento soe um pouco tautológico considerando os fatores apresentados anteriormente, a análise da proporcionalidade não pode ser desconsiderada em medidas com escalas tão elevadas. E, pela cumulação dos riscos concretos demonstrados, a nova cédula se apresenta inadequada, desnecessária e desproporcional em sentido estrito.
Toda essa discussão está condensada na ADPF nº 726/DF, ajuizada pelo PSB, Podemos, e Rede Sustentabilidade. A judicialização, uma vez mais, se apresentou como a saída para balancear os freios e contrapesos dos Poderes. Resta aguardar quais serão os próximos capítulos desse paradoxo e torcer para que a extinção fique vinculada apenas à nova nota, afastando-se cada vez mais do seu animal estampado.
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[1] Mapeamento realizado pelo Comitê Gestor de Internet no Brasil apontou, em outubro de 2019, que 67% das residências brasileiras não dispunham de internet. Na mesma época, e também antes da pandemia e do aumento dos bancarizados para recebimento do auxílio emergencial, pesquisa do Instituto Locomotiva apontou que 45 milhões dos brasileiros não tinham conta bancária. Ainda que seja assim, dados apurados pela Fundação Getúlio Vargas apontam que a metade mais pobre da população economicamente ativa (i.e. 50 milhões de brasileiros) tem renda mensal de aproximadamente R$ 158,00 por mês.
[2] Levantamento feito pelo Instituto Locomotiva, divulgado em matéria do Jornal Diário do Comércio, publicada em 25 de junho de 2020. Íntegra disponível em: &lt;<a href="https://diariodocomercio.com.br/opiniao/o-fim-do-dinheiro-em-especie-se-aproxima/">https://diariodocomercio.com.br/opiniao/o-fim-do-dinheiro-em-especie-se-aproxima/</a>&gt;.
[3] Segundo relatório “O brasileiro e sua relação com o dinheiro”, feito pelo próprio Banco Central em 2018, 85% dos brasileiros costumam portar quantias inferiores a R$ 100,00 em dinheiro vivo.
[4] Levantamento feito pelo Instituto Organização Transparência Partidária, divulgado em matéria exibida pelo programa “Fantástico”, da Rede Globo, em 02 de agosto de 2020.
[5] <a href="https://www.novo.justica.gov.br/news/crimes-no-brasil-reduziram-em-janeiro-de-2020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Estudo publicado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública demonstra uma redução significativa do crime de roubo nos últimos anos</a>.  Esse fenômeno foi reportado em diversos Estados e no Distrito Federal. Apenas para ilustrar, confiram-se algumas reportagens:
(i) <a href="https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/04/14/pe-tem-reducao-de-60percent-em-furtos-a-estabelecimentos-e-de-46percent-em-roubos-no-1o-mes-da-pandemia.ghtml">https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/04/14/pe-tem-reducao-de-60percent-em-furtos-a-estabelecimentos-e-de-46percent-em-roubos-no-1o-mes-da-pandemia.ghtml</a>;
(ii) <a href="https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/seguranca/ceara-tem-maior-reducao-de-roubos-a-estabelecimentos-comerciais-no-nordeste-aponta-pesquisa-1.2148353">https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/seguranca/ceara-tem-maior-reducao-de-roubos-a-estabelecimentos-comerciais-no-nordeste-aponta-pesquisa-1.2148353</a>;
(iii) <a href="https://jornalsemanario.com.br/roubos-a-estabelecimento-comercial-tem-queda-de-705-em-bento-goncalves/">https://jornalsemanario.com.br/roubos-a-estabelecimento-comercial-tem-queda-de-705-em-bento-goncalves/</a>;
(iv) <a href="https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/06/08/interna_cidadesdf,862181/roubos-e-furtos-caem-21-no-df-mas-cresce-numero-de-assaltos-a-reside.shtml">https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/06/08/interna_cidadesdf,862181/roubos-e-furtos-caem-21-no-df-mas-cresce-numero-de-assaltos-a-reside.shtml</a>;
(v) <a href="https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/11/com-quarentena-crimes-patrimoniais-em-sp-caem-at-65-pontos-percentuais-mas-homicdios-sobem.ghtml">https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/11/com-quarentena-crimes-patrimoniais-em-sp-caem-at-65-pontos-percentuais-mas-homicdios-sobem.ghtml</a>.

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