Natália Néris

Em 18 de novembro de 2015 aconteceu em Brasília a Marcha das Mulheres Negras. O evento que contou com uma mobilização nacional prévia de um ano foi numericamente um dos maiores atos realizados pelo Movimento Negro nos últimos tempos. Adotando como lema a frase “Contra o racismo, a violência e pelo Bem Viver” na <a href="http://www.marchadasmulheresnegras.com/">Carta da Marcha</a>, nos cartazes, nas manifestações nas redes sociais, observa-se que a ideia do direito à vida (e não à mera sobrevivência) perpassava as todas as demandas apresentadas.
Marchavam em Brasília cerca de 20 mil mulheres pacificamente no começo da manhã até que se ouviram disparos de armas de fogo na Esplanada dos Ministérios. Manifestantes pró-impeachment acampados no local, dentre eles <a href="http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/11/policial-e-preso-por-tiros-em-marcha-de-mulheres-negras-em-brasilia.html">dois policiais militares efetuaram os disparos para cima alegando temor à manifestação.</a>
As mulheres negras ao relatar os fatos nas redes sociais associaram tal evento às suas próprias vivências: corpos negros são de fato lidos como ameaça e são passíveis de reação violenta e desproporcional.
As evidencias deste argumento são diárias e fez-se tragicamente contundente, 10 dias depois. Em 28 de novembro, uma noite de sábado em Costa Barros no Rio de Janeiro quatro policiais militares dispararam <a href="http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2015/12/pms-atiraram-111-vezes-com-fuzil-e-pistola-contra-jovens-no-rj.html">111 tiros contra o carro</a> em que se encontravam Roberto de Souza Penha e Carlos Eduardo da Silva de Souza de 16 anos, Cleiton Correa de Souza de 18 anos, Wilton Esteves Domingos Junior de 20 anos e Wesley Castro Rodrigues de 25 anos, cinco jovens negros, que voltavam de um passeio e que como evidenciou a perícia não portavam armas e tampouco atiraram contra policiais (versão apresentada pelos mesmos).
A denúncia da sistemática violência policial é uma das pautas mais antigas do Movimento Negro. O marco das mobilizações recentes (ou contemporâneas) deste movimento social se deu justamente através de um ato no ano em 1978, em pleno regime militar, nas escadarias da Praça da Sé. O protesto pela morte de Robson Silveira da Luz de 27 anos, no 44º Distrito Policial de Guaianazes, negro que foi torturado até a morte após ser preso sob a acusação de roubo de frutas em uma feira marca o início de uma fase reivindicativa do movimento social – que passa a direcionar ao Estado suas demandas exigindo inclusive sua inserção em textos normativos.
A luta nesse sentido encontrou algum eco ao longo do processo constituinte. Foram apresentadas por negros e negras entre 1987 e 1988 demandas de diversas ordens no processo de elaboração da Carta: acesso ao trabalho, acesso à educação e alteração de currículo escolar, acesso à terra, à cultura e demandas relacionadas diretamente ao que levou negros e negras às ruas ainda na Ditadura: segurança e violência policial.
No que se refere à este tema apresentaram-se os pleitos como a consideração da tortura física e/ou psicológica como crime contra a humanidade; unificação das Policias Civil e Militar (e instituição de cursos permanentes de reciclagem e melhores critérios de seleção e admissão de policiais no sentido de garantir o respeito à integridade física e moral do cidadão independente de sua raça ou cor); que crimes relacionados ao abuso do poder cometidos pela policia fossem julgados pela justiça comum; respeito à integridade física e moral dos detentos e presidiários, estabelecimento de atividade produtiva rentável ao/à presa sendo esta renda revertida em prol de sua família na proporção de 80% sendo os 20% demais em prol do sistema penitenciário e proibição da manutenção de Casa de Detenção de Menores.
Hoje em 2015, ao abrirmos a Constituição Federal encontramos dispositivos relativos à proteção ou promoção da cidadania da população negra presentes principalmente nos Artigos 3º (que prevê que um dos objetivos fundamentais da Republica é promover o bem de todos, sem discriminação), 5º (imprescritibilidade e inafiançabilidade do crime de racismo), 7º (sobre trabalho e proibição de diferenças salariais com base na raça), 215º, 216º e 242º (que versam sobre educação e cultura) e o 68º no ato das disposições transitórias (que trata do reconhecimento e titulação de terras de remanescentes de quilombos). Não observamos, entretanto, a incorporação de grande parte das demandas relacionadas à segurança e violência policial no texto constitucional.
É evidente que a inserção de temas em textos legais não garante por si efetivação do gozo de direitos, mas a resistência em legislar sobre segurança nos termos colocados pelo movimento social nos revela a indisposição do Estado brasileiro em lidar com a faceta mais cruel do racismo.
A continuidade da indiferença do sistema judiciário em relação a fatos como a chacina de Costa Barros - e tantas outras -, a ausência de legislação específica ou o existência de algumas que endossam as mortes à exemplo do Artigo 284 do Código do Processo Penal (sobre autos de resistência) seguirá fazendo com que Robsons, Robertos, Carlos Eduardos, Cleitons, Wiltons, Wesleys morram e que suas avós, mães, irmãs e primas sigam marchando correndo riscos - mesmo no ato de protestar -, em pleno regime democrático.
O direito (e suas instituições) enquanto campo que pode servir à emancipação e proteção (como se mostrou em algumas áreas por meios de conquistas legais) seguirá para a população negra tendo um caráter marcadamente paradoxal a medida que tem servido também como meio de legitimação da opressão e da morte dessa população.

Protesto pela morte dos cinco jovens assassinados por PMs

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JOTA

Apesar dos avanços representados pela inscrição de demandas em textos legais, a população negra ainda luta pela efetivação de um direito fundamental: a vida

O paradoxo do direito para negros e negras

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