Aluisio Gonçalves de Castro Mendes

Anderson de Paiva Gabriel

O advento do CPC 2015 trouxe, consigo, a consagração dos precedentes, como forma de maximizar a eficiência do Poder Judiciário e a segurança jurídica em nosso país, em um vanguardista hibridismo entre a civil law, derivado do sistema romano-germânico e no qual nosso direito possui raízes mais profundas, e a common law, oriundo do direito anglo-saxão e cuja influência se fazia notar com mais força em nossa Constituição de 1988 e em nosso modelo de controle de constitucionalidade.
Nesse sentido, o art. 926 do CPC 2015 estabeleceu que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, enquanto o art. 927 do mesmo diploma preconiza que os juízes e tribunais têm o dever de observar, em suas decisões, os denominados precedentes qualificados.
O diploma processual, inclusive, estipulou, nos termos do art. 489, § 1º, inciso VI, que a decisão que se afastar de precedente ou jurisprudência invocada pela parte, sem demonstrar a superação do entendimento ou a existência de distinção no caso em julgamento, deve ser considerada como sem fundamentação.
Não se tolera mais uma justiça anti-isonômica, lotérica<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, de forma que ao se identificar a multiplicidade de demandas em torno de um mesmo tema, deve-se buscar zelar, de forma pragmática<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, pela segurança jurídica e evitar a disparidade de entendimentos, que acabam culminando em sucessivos recursos, assoberbamento jurisdicional e morosidade<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Humberto Dalla e Roberto Aragão percucientemente frisam que “não se pode desconsiderar que quando o Poder Judiciário não se ocupa da harmonização de seus posicionamentos, perde credibilidade, legitimidade e a confiança da sociedade” <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Todavia, a despeito de transcorridos anos da promulgação do CPC 2015, observa-se que a adoção do sistema de precedentes ainda não foi completamente assimilada.
Assim, uma das primeiras iniciativas do ministro Luiz Fux, ao assumir a sua presidência, em setembro de 2020, consistiu na instituição de grupo de trabalho (GT) destinado à elaboração de estudos e de propostas voltadas ao fortalecimento dos precedentes no sistema jurídico, nos termos da <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3560">Portaria CNJ nº 240/2020</a>.
Sob a coordenação do ministro Joel Ilan Paciornik, o GT desenvolveu inúmeros estudos e apresentou duas propostas de atos, que devidamente submetidas ao Plenário do CNJ, lograram ser aprovadas por unanimidade.
A primeira delas consiste na <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4415">Resolução CNJ nº 444/2022</a>, responsável por instituir o Banco Nacional de Precedentes (BNP), um repositório e plataforma tecnológica unificada de pesquisa textual e estatística para consulta e divulgação por órgãos e pelo público em geral de precedentes judiciais, com ênfase nos pronunciamentos judiciais listados no art. 927 do CPC 2015 em todas as suas fases processuais.
Vale gizar, inclusive, que nos termos do art. 7º, §4º, da supracitada resolução, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a> deverá agregar ao BNP, oportunamente, ferramenta que permita a identificação e tratamento em lote dos processos aos quais os precedentes se apliquem, o que reduzirá o custo e tempo de tramitação processual, mas também aumentará significativamente a efetividade da Justiça Brasileira.
Aliás, o emprego da Inteligência Artificial no Direito, inclusive com uso do machine learning, se mostra, portanto, essencial para o futuro da Justiça<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, porquanto "atividades rotineiras e repetitivas na administração do Direito podem ser desenvolvidas em uma fração do tempo com grande nível de acurácia, permitindo a concentração do talento humano em áreas estratégicas"<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Já o segundo ato aprovado, em decorrência do GT, consistiu na <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4740">Recomendação CNJ nº 134/2022</a> que dispõe sobre o tratamento dos precedentes no Direito brasileiro.
Em seu art. 1º, já se ressalta que o sistema de precedentes representa uma nova concepção de jurisdição, em que o Poder Judiciário procura não apenas resolver de modo atomizado e repressivamente os conflitos já instaurados, mas se preocupa em fornecer, de modo mais estruturado e geral, respostas às controvérsias atuais, latentes e potenciais, de modo a propiciar a efetiva segurança jurídica.
Salienta-se, ainda, que a sistemática de solução de questões comuns e casos repetitivos, estabelecida pelo CPC 2015, deve ser utilizada com regularidade e representa uma técnica de gestão, processamento e julgamento dos processos, com a metodologia de decisão concentrada sobre questões essenciais de direito e a eventual suspensão de processos que versem sobre a controvérsia que está sendo decidida de modo concentrado (art. 6º).
O referido ato também discorre, ao longo do art. 14, sobre a técnica conhecida como distinção ou distinguishing, preconizando que esta permite ao juiz ou tribunal, afastar precedente de natureza obrigatória ou somente persuasiva, desde que identificada distinção material relevante e indiscutível, mas que não deve ser confundido e utilizado como simples mecanismo de recusa à aplicação de tese consolidada, nem ser considerada instrumento hábil para afastar a aplicação da legislação vigente, bem como estabelecer tese jurídica (ratio decidendi) heterodoxa e em descompasso com a jurisprudência consolidada sobre o assunto.
Com efeito, a indevida utilização do distinguishing, nos termos do art. 14, §5º, da Recomendação, constitui vício de fundamentação (art. 489, § 1o, VI, do CPC/2015), o que pode ensejar a cassação da decisão.
Por tal razão, recomenda-se que, ao realizar a distinção (distinguishing), o magistrado explicite, de maneira clara e precisa, a situação material relevante e diversa capaz de afastar a tese jurídica (ratio decidendi) do precedente tido por inaplicável, bem como que se imprópria a utilização do distinguishing como via indireta de superação de precedentes (overruling).
Tratando-se de hipótese de distinção ou de superação, haverá, naturalmente, a necessidade de ser exposta a devida fundamentação no sentido da inaplicabilidade da tese ao caso concreto em julgamento ou da formulação de novos fundamentos que denotem que a tese não deverá mais ser aplicada, em razão de modificações ocorridas, como, por exemplo, a decorrente de alteração legislativa (art. 42).
Ademais, recomenda-se que na própria decisão que altera orientação jurisprudencial pacificada anterior ou adotada em precedente vinculante haja manifestação expressa sobre a modulação dos efeitos da nova orientação, sob pena de que a decisão possa ser tida por omissa, e considerada, portanto, embargável de declaração, bem como que o tribunal leve em consideração preferencialmente o momento da conduta da parte e a orientação jurisprudencial firme existente à época, para fixar parâmetros da eficácia temporal do novo precedente (arts. 46 e 47), em linha com o pragmatismo jurídico consagrado na LINDB por meio da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13655.htm">Lei 13.655/2018</a>.
Merece destaque também o art. 25, apontando que a suspensão dos processos pendentes é elemento extremamente importante dentro da lógica do funcionamento e dos resultados pretendidos, sob o prisma do sistema dos julgamentos de questões comuns ou repetitivas, especialmente no que diz respeito à economia processual e, consequentemente, da própria duração razoável dos processos.
A nossa maturidade jurídica inaugura uma nova era e nos permite uma concepção brasileira de processo e justiça. Com o acolhimento dos precedentes judiciais no julgamento, há uma propensão à coerência, à integridade e à estabilidade dos julgamentos e, como consequência, também à redução do número de recursos, com a diminuição no tempo de tramitação os processos<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Também para Alexandre Câmara “é cristalina a tendência ao fortalecimento da jurisprudência e aos precedentes judiciais<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>”, ante necessidade contemporânea de uniformidade de decisões<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> e segurança jurídica. Dalla, a seu turno, registra que o caráter vinculante dos precedentes é filho da igualdade e da racionalização das decisões judiciais<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Nesse sentido, indubitável que os alvissareiros atos recentemente publicados pelo CNJ acerca da temática, isto é, a Resolução 444/2022 e a Recomendação 134/2022, consubstanciam relevantíssimo passo em prol do fortalecimento dessa cultura e contribuem sobremaneira para o aprimoramento do Sistema de Justiça brasileiro. Esperamos, confiantes e otimistas, que os anos vindouros evidenciem isso.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 786, p. 108-126, abr. 2001.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> GABRIEL, Anderson de Paiva. O Pragmatismo como paradigma do Direito Processual Penal contemporâneo: tecnologia, consenso e whistleblowing. Londrina: Thoth, 2022. p. 129
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; VARGAS, Daniel Vianna Vargas; SILVA, Felipe Carvalho Gonçalves da. O incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) no processo penal. Reflexões iniciais. Revista de Processo, vol. 279/2018, p. 283 – 312, Maio/2018.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> RODRIGUES, Roberto Aragão Ribeiro; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. O microssistema de formação de precedentes judiciais vinculantes previsto no novo CPC. Revista de Processo, Direito Jurisprudencial, v. 259, set. 2016. p. 1.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> GABRIEL, Anderson de Paiva; PINTO, Esdras Silva. O Futuro da Justiça: Prestação jurisdicional efetiva e em tempo razoável. In: SALOMÃO, Luis Felipe (Coord.). Magistratura do futuro. Rio de Janeiro: JC Editora, 2020. p. 167-197. Disponível em: <a href="https://www.editorajc.com.br/wp-content/uploads/LIVRO_MAGISTRATURA_DO_FUTURO.pdf">https://www.editorajc.com.br/wp-content/uploads/LIVRO_MAGISTRATURA_DO_FUTURO.pdf</a>, último acesso em 12 out. 2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> WALKER, Joshua. On Legal AI: um rápido tratado sobre a inteligência artificial no Direito. Thomson Reuters Brasil, 2021.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; SILVA, Larissa Clare Pochmann da Silva. Os impactos do novo CPC na razoável duração do processo. Revista de Processo | vol. 241/2015 | p. 15 - 25 | Mar/2015.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015. p. 425-426.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> VARGAS, Daniel Vianna. Estabilidade objetiva do IRDR: escritos sobre congruência e eficácia vinculante. Rio de Janeiro. 2018.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo: processo de conhecimento, procedimentos especiais, processo de execução, processos nos tribunais e disposições finais e transitórias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. v. 2. p. 766

Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

CPC 2015 trouxe consagração de precedentes como forma de maximizar a eficiência do Poder Judiciário

O papel do CNJ no aperfeiçoamento do sistema de justiça

CPC/2015 trouxe consagração de precedentes como forma de maximizar a eficiência do Poder Judiciário e a segurança jurídica