Francisco Eduardo Carrilho Chaves

Até recentemente, com o advento da pandemia do covid-19 e quando o país se viu diante de exigências de grandes laboratórios internacionais para fornecimento de vacinas, o pagamento antecipado em contratos firmados pela Administração não era um assunto que provocasse verdadeiro interesse.
Algumas decisões de tribunais e enunciados de procuradorias jurídicas, aqui e ali, davam conta de casos concretos em que a legislação era desrespeitada, mas nada que levasse a uma discussão mais profunda pela comunidade jurídica. Nesse meio tempo, a praxe administrativa foi se movimentando como água em terreno acidentado, procurando por onde pudesse fluir. Devemos reconhecer, desde já, duas realidades. A primeira é a existência de situações que desafiam a legislação atual e para as quais podemos considerá-la ultrapassada e incompleta. A outra, expressa-se por meio do ditado popular que nos ensina que “o uso do cachimbo faz a boca torta”.
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O pagamento antecipado voltou a suscitar discussões acaloradas no Plenário do Senado quando da votação da Medida Provisória (MP) 1.047/2021.
Sigamos a linha do tempo dos normativos legais editados recentemente com o intuito de dotar a máquina pública de condições de enfrentar a pandemia e que trataram do pagamento antecipado, não sem antes fazer o imperioso alerta de que adiantar pagamento não é sinônimo perfeito de pagar antes de o bem ser entregue ou o serviço prestado.
Dentre inúmeras possibilidades, pagar antecipadamente pode ser pagar antes do adimplemento da obrigação pelo fornecedor, mas também pode ser pagar à vista quando o previsto contratualmente seria fazê-lo em 30 ou 60 dias, bem assim o é pagar em parcela única quando inicialmente combinou-se a quitação em várias parcelas. Não se discute, portanto, que pagamento antecipado constitui universo que abrange, mas não se resume a, pagar antes de receber, o que, em termos do direito financeiro, significa efetuar o pagamento antes mesmo que a despesa seja liquidada.
Editada a MP 961, em 6/5/2020, convertida na Lei 14.065, em 30/9/2020, a legislação passou a prever expressamente a possibilidade de haver pagamento antes da entrega de bem ou serviço nas licitações e nos contratos realizados no âmbito da administração pública durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo (DLG) 6/2020. Estado esse que se esgotou em 31/12/2020. Logo, a lei também perdeu vigência nessa data.
Na MP 1.026/2021, de 6/1/2021, convertida na Lei 14.124 em 10/3/2021, dentre outras medidas excepcionais, passou-se a admitir celebrar contratos para compra de vacinas e insumos para vacinas contendo cláusulas especiais, caso estas sejam necessárias para que a compra ocorra. Permite-se ali também o pagamento antecipado do produto ou serviço, tolerando-se até a possibilidade de perdimento do valor adiantado e eximindo o contratado de penalidades, além de “outras condições indispensáveis, devidamente fundamentadas” (art. 12). Ou seja, qualquer vindicação é potencialmente aceitável. Avaliamos que nesta e na Lei 14.125/2021, do mesmo 10 de março, o Brasil dobrou-se a exigências de corporações internacionais e feriu gravemente sua soberania, mas, ainda assim, nenhuma delas pode vergar o ordenamento jurídico.
No dia 1º/4/2021 foi publicada a Lei 14.133, conhecida como a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLC), que contém disposições pelas quais é cabível entender que o pagamento antecipado é admitido, especialmente o inciso XII do art. 92 e o art. 145.
Por fim, em 3/5/2021, o Executivo publicou a citada MP 1.047/2021, aprovada em 2/9/2021 pelo Senado, na forma do Projeto de Lei de Conversão (PLV) 19/2021, que aguardava sanção no momento da conclusão deste artigo.
O texto aprovado permite pagamento antecipado na “aquisição de bens e a contratação de serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia da covid-19”. Portanto, o espectro é bem mais amplo do que o da Lei 14.124/2021, que se mantém regulando especificamente a aquisição de vacinas e insumos e a contratação de bens e de serviços necessários à implementação da vacinação contra a covid-19 (p.u. do art. 1º, tanto da MP como do PLV). Não é finalidade deste trabalho, identificamos preocupante grau de imprecisão nos limites de aplicação da Lei 14.124/2021 e da MP 1.047/2021 (e do correspondente PLV), cuja intersecção tem potencial para causar certa confusão interpretativa.
A maioria dos normativos citados dá azo ao entendimento de que o pagamento antecipado abrange pagar antes de adimplida a obrigação pelo contratado. A Lei 14.065/2020 é taxativa nesse sentido. Mas, será que essas leis poderiam estipular isso?
Apesar de, desde o ano passado, o Congresso vir aprovando leis ordinárias sobre normas gerais de licitações e contratos com o intuito de permitir que se pague antes do recebimento do bem ou a prestação do serviço, temos sérias objeções a essa prática. A lei deve estar de acordo com a Constituição.
O administrador público somente pode fazer aquilo que a lei determina ou autoriza, conforme reza o princípio da legalidade administrativa estrita (art. 37, caput, da CF), que difere do princípio da legalidade geral (art. 5º, II, CF), norteador da liberdade contratual civil, pelo qual somente a lei pode obrigar o indivíduo a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Pessoas físicas e jurídicas, em regra, podem estipular em contrato tudo aquilo que não seja proibido pelo ordenamento. Não é o que ocorre, porém, com as pessoas da administração pública.
Ainda que, prima facie, o conteúdo de contratos seja matéria de direito civil, cuja competência legislativa plena é da União (art. 23, I, CF), quando se está a tratar do dispêndio público, há derrogações. Toda a matéria atinente a auferir receitas e a executar despesas públicas está na seara do direito público. Mais especificamente, do direito financeiro. Assim, o pagamento de valores decorrentes de contratos firmados pela Administração é regido por essas últimas, que dispõem sobre como ele poderá ser realizado. Tais normas não se confundem com normas gerais de licitações e contratos, matéria cuja competência privativa para legislar é também da União (art. 22, XXVII, CF) e que disciplinam como se formalizarão as licitações, as contratações diretas e suas respectivas avenças.
O pagamento é o último dos quatro estágios ordinários da despesa pública. As anteriores são: previsão, empenho (que depende de se concluir licitação ou de se contratar diretamente) e liquidação, nesta ordem, conforme se extrai da interpretação concatenada da Constituição com os arts. 58 a 70 da Lei 4.320/1964, que estatui as normas de direito financeiro e para elaboração e controle dos orçamentos, recepcionada pela atual ordem constitucional com status de lei complementar, tanto pelo art. 163, I, quanto pelo art. 165, § 9º, II, da CF. Este último é expresso em exigir lei complementar para estabelecer normas de gestão financeira. O pagamento é tanto uma etapa da despesa pública quanto um ato de gestão financeira.
De acordo com os arts. 62 e 63 da Lei 4.320/1964, a liquidação da despesa é definida como a verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito e somente pode ocorrer depois da sua regular liquidação. Ou seja, há uma ordem legalmente estabelecida: comprova-se a entrega do material adquirido ou a prestação efetiva do serviço contratado para então se emitir a ordem de pagamento. Primeiro liquida para depois pagar.
Afigura-nos evidente que somente uma lei complementar pode alterar a sistemática prevista na Lei 4.320/1964, ao tempo em que se observa ser vedado à medida provisória dispor sobre matéria reservada à lei complementar (art. 62, § 1º, III, CF).
Assim, s.m.j., as vias eleitas para as normas legais editadas desde o ano passado autorizadoras a que contratos firmados pela Administração possuam cláusulas estipulando pagamento antes da liquidação da despesa não aderem ao que exige a Lei Maior. Para que o permissivo fosse constitucional, uma lei complementar dando essa autorização deveria ter sido aprovada. Segundo percebemos, tais normas são inconstitucionais, ainda que não tenham sido assim declaradas pelo Poder Judiciário até o momento. Em relação a comandos pelos quais o pagamento antecipado é aceito, mas a hipótese por nós rejeitada não está expressa, entendemos que a única exegese constitucionalmente aceita a exclui.
Por honestidade intelectual, a despeito de não existir a lei complementar referida no parágrafo anterior, registramos que se defende a possibilidade do pagamento prévio à entrega do bem ou do serviço mesmo antes das leis mais recentes, com base, principalmente, em julgados do Tribunal de Contas da União (TCU)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Há também orientação normativa da Advocacia-Geral da União (AGU). Bem assim, sabemos que a praxe administrativa coleciona exemplos dessa conduta.
Os defensores dessa possibilidade associam o art. 40 da Lei 8.666/1993 ao art. 38 do Decreto federal 93.872/1982. A alínea d do inciso XIV do art. 40 da Lei de Licitações de 1993 indica claramente que eventuais adiantamentos de pagamento devem ter como contrapartida descontos sobre o preço anteriormente ajustado. Por sua vez, o comando do Decreto admite, na estreita hipótese nele prevista, que tal ocorra. Todavia, o art. 42 do mesmo ato regulamentar é expresso quanto à necessidade de prévia e regular liquidação da despesa.
O art. 40 da Lei 8.666/1993, não fala em pagar antes de receber, apenas admite antecipar pagamento. Também não o faz o art. 38 do Decreto 93.872/1982, e o art. 42 deste Decreto exige, em todos os casos, a regular liquidação da despesa antes do pagamento.
Afirmamos que esses normativos devem ser lidos dentro do contexto da ordem jurídica vigente, na qual a lei complementar é a que detém competência para dispor sobre Direito Financeiro, em cujo bojo encontram-se as normas aplicáveis à despesa pública, da qual o pagamento é uma de suas etapas. E esta norma, a Lei 4.320/1964, exige que se liquide para poder pagar.
Sobre as decisões do TCU, é preciso contextualizá-las. Exercendo o controle externo sobre casos concretos excepcionais, para os quais o regular e efetivo exercício de suas competências o obriga a dar soluções que permitam chegar a decisões de mérito em seus feitos, em respeito aos princípios da segurança jurídica e da duração razoável do processo. Neles, reuniram-se condições especialíssimas e excepcionais do dia a dia administrativo, nas quais se entendeu desnecessário punir gestores de boa fé.
O Tribunal consolidou a exigência dos seguintes requisitos para, em singulares atos de gestão submetidos, a posteriori, ao seu escrutínio, aceitar o pagamento antecipado e não apenar os responsáveis ou imputar-lhes débito: i) previsão no ato convocatório; ii) existência, no processo licitatório, de estudo fundamentado comprovando a real necessidade e economicidade da medida; e iii) estabelecimento de garantias específicas e suficientes que resguardem a Administração dos riscos inerentes à operação.
A partir daí, erroneamente, passou-se a atribuir a essas deliberações do órgão técnico de contas, pro futuro, os atributos da abstração e da generalidade (características de norma legal), de forma a que estaria tudo certo se cumpridas suas premissas. Ousamos discordar.
É sempre bom lembrar que as manifestações do TCU não são aptas a fazer com que lei ordinária passe a ter força de lei complementar ou a suplante o impeditivo constitucional a que medida provisória veicule matéria de lei complementar. Bem assim, os comandos infralegais citados no bojo deste trabalho, não ab-rogam ou derrogam as disposições da Lei 4.320/1964.
A aproximação à Orientação Normativa AGU nº 36, de 2011, não pode ser muito diferente. Por ela, a antecipação de pagamento somente é admitida em situações excepcionais e presente o interesse público, observado o seguinte: i) ser condição sem a qual não seja possível obter o bem ou assegurar a prestação do serviço ou propicie sensível economia de recursos; ii) haja previsão no edital ou no instrumento de contratação direta; iii) sejam adotadas garantias ou cautelas.
Nesse sentir, concluímos asseverando nossa percepção de que todas as disposições legais com status de lei ordinária que, direta ou indiretamente, permitam à Administração Pública pagar antes da regular liquidação da despesa são inconstitucionais, bem assim que decisões do Tribunal de Contas ou orientações normativas não criam a lei formal de natureza complementar exigida pela Carta de 1988.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Exempli gratia: Acórdãos 134/1995-Plenário, 59/1999-Plenário, 276/2002-Primeira Câmara, 5161/2014-Segunda Câmara, 358/2015-Plenário, 4143/2016-Primeira Câmara e 2856/2019-Primeira Câmara.

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JOTA

Reflexões sobre a legislação, seus fundamentos e a praxe

O pagamento antecipado nos contratos da Administração Pública

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