Carolina Cyrillo

Siddharta Legale

A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cidh">Corte Interamericana de Direitos Humanos</a> proferiu a sentença Luis Fernando Guevara Díaz vs. Costa Rica em 22 de junho deste ano e divulgou-a agora, em setembro<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. O caso é revolucionário para o avanço da jurisprudência interamericana em termos interpretativos, institucionais e sociais. A hipérbole não é exagerada. É possível considerar essa decisão como a certidão de nascimento de um “direito antidiscriminatório interamericano”.
O caso envolveu a demissão discriminatória do trabalhador do Ministério da Fazenda que, mesmo elogiado no exercício as suas funções como “trabajador miscelâneo” — uma espécie de auxiliar de serviços gerais —, e que mesmo tendo sido aprovado em primeiro lugar nas provas, foi posteriormente demitido e preterido no concurso por outro trabalhador.
O motivo não declarado foi a discriminação em função da deficiência mental, que, recentemente, vem sendo denominada de capacitismo. Casos análogos a esse existem na jurisprudência da Corte IDH, mas não com a mesma intensidade em seus argumentos em relação à vinculação do art. 26, referente ao desenvolvimento progressivo dos direitos sociais e ao princípio da igualdade. Nesse sentido, a decisão atual avança, por exemplo, em relação ao caso Ximenes Lopez vs. Brasil (2006).
Em primeiro lugar, em termos interpretativos, a decisão Guevara Díaz consolida a linha de precedentes que conferem status normativo ao art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) para a proteção dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA).
De um lado, supera o entendimento da Corte IDH, tanto dos anos 1980 e início dos 1990 que compreendiam o princípio do desenvolvimento progressivo como mero princípio de interpretação, quanto o dos anos 2000 e 2010 que entendia que, para ser exigível e possível de judicializar o DESCA, era necessário a demonstração da vinculação ou interdependência com um direito civil ou político, como a vida ou integridade.
Por outro lado, houve um aprofundamento notável de um robusto e intenso diálogo intergeracional entre os juízes sobre a normatividade do art. 26 da CADH. A Corte IDH, por 4 a 2, formou a maioria com os juízes Ricardo Pérez Manrique, Eduardo Ferrer Mac-gregor, Verónica Gómez e Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch, preservando a integridade da sua jurisdição ao reafirmar a possibilidade de cobrar direitos sociais na linha do que a própria Corte IDH já vinha decidindo nos casos Lagos Del Campos vs. Peru (2016), Poblete Vilches vs. Chile (2018), Nossa Terra vs. Argentina (2020), entre outros.
Em segundo lugar, em termos institucionais, certos argumentos são dignos de nota. Inicialmente a existência de um dissenso dentro da Corte que não é de hoje. A origem é oriunda dos votos do ex-juiz da Corte IDH, Eduardo Vio Grossi, cujos argumentos da necessidade de ler o art. 26 à luz do art. 31 da Convenção de Viena de Direitos dos tratados. Os votos dos juízes Humberto Sierra Porto e Patricia Goldberg, com todo respeito, não adotam a melhor interpretação ao insistir em uma posição formalista anacrônica, apoiada em princípios para a interpretação dos tratados em geral, sem atribuir a devida densidade normativa ao princípio pro persona.
Além do mais, essa interpretação é inapropriada para a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) que é um tratado especial, um documento vivo, uma espécie de Constituição interamericana, carregada por direitos existenciais e não previsões gerais de um tratado de cooperação entre países para importação e exportação de mercadorias, por exemplo. Tanto é assim que a própria CADH possui normas próprias de interpretação, como princípio pro persona que impõe a escolha da fonte mais protetiva e da interpretação mais favorável à pessoa humana, na forma do art. 29 da CADH. Essa é a regra de interpretação da CADH. É óbvio que a norma mais favorável ao ser humanos e aos grupos vulnerabilizados é a que confere normatividade ao art. 26 da CADH e não o contrário. A adoção Protocolo de São Salvador — adicional à CADH — não poderia jamais ter o condão de rebaixar ou diminuir a normatividade referido artigo.
Não cabe ao juiz interamericano interpretar restritivamente direitos humanos, como fizeram na posição vencida. Ao contrário, a Corte IDH, por esse princípio, possui o dever de estimular que os Estados e a sociedade se engajem na adoção de padrões mais elevados de proteção dos direitos humanos. Isso serve à construção de um Estado democrático e interamericano de Direito<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, que realiza um controle interno ou difuso de convencionalidade destrutivo das violações e construtivo de políticas públicas, para promover mais direitos para mais humanos. Deve-se estimular que suas decisões seja meta decisões para outros casos no plano interno, por meio de ações estratégicas em direitos humanos que respeitem a coisa julgada interpretada da decisão da Corte IDH.
Em terceiro lugar, em termos sociais, a nova interpretação atribuída ao art. 26 foi inovadora, quando determina a leitura entrelaçada com o art. 24 à luz do princípio da igualdade e não discriminação, que são consideradas normas de jus cogens, ou seja, normas imperativas de direito internacional. Afinal, não basta reconhecermos violações individuais.
A decisão da maioria comprometeu-se e atentou para o desenho universal das instituições que reproduzem macro e microagressões, desigualdades e discriminações. Na linha do excelente voto concorrente do juiz Mudrovitsch, o peticionário sofreu discriminação no acesso e permanência em seu emprego. Não se decidiu apenas o caso concreto. Firmou-se o entendimento que é necessário atuar na dimensão coletiva para (re)construir instituições nacionais através de uma cultura anticapacitista e antidiscriminatória.
O magistrado deixou tão claro esse dever que enfatizou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos funciona como uma Corte de Precedentes ou um como preferimos um Tribunal Constitucional Interamericano<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, cujos standards devem se espraiar para exercer uma espécie de “terapia social”, a partir da construção de uma sociedade aberta de intérpretes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Nunca é demais lembrar o básico quando ele é esquecido. O Direito Internacional não é composto apenas por tratados. Ele possui como fontes: os tratados, os princípios gerais de direito e os costumes, nos termos do art. 38 do Regimento da Corte Internacional de Justiça. Além do mais, os tratados de direitos humanos são instrumentos vivos. Tanto é assim, que o princípio adotado pela CADH, por excelência, é o princípio pro persona, já mencionado.
A propósito, o costume da América Latina, comprovado pela prática reiterada dos Estados (consuetudo) e a sensação de obrigatoriedade (opinio juris) tem sido reconhecer a normatividade dos direitos sociais em suas Constituições, desde a Constituição mexicana de 1917 e da abundante jurisprudência das Cortes Constitucionais, como inclusive foi demonstrado ostensivamente pelo primeiro voto adicional do juiz brasileiro Mudrovitsch, que honra a tradição dos melhores votos adicionais dos magistrados brasileiros na Corte IDH, como Cançado Trindade que, até hoje, é o que mais produziu votos adicionais na história da mesma.
Portanto, no divã da Corte IDH pode-se muito, mas não tudo. A Corte IDH não pode tomar decisões descoladas da realidade social, ao realizar a análise semi psicanalítica das neuroses e psicoses dos preconceitos, discriminações e autoritarismos no comportamento estatal. É inadmissível uma posição solipsista, refém da forma, por uma mera coerência sintática, em detrimento da substância. Ela não pode ignorar o significado social compartilhado e as contribuições pioneiras da sociedade latino-americana para direitos sociais. Ao ter a coragem de tocar em nossos traumas hemisféricos, observa-se que a Corte IDH revela que somos o que somos, com nossas virtudes e defeitos e não o que gostaríamos de ser, em nossos tratados e constituições.
A decisão se revela, por isso, tão revolucionária ao escancarar o abismo entre o real e o ideal, entre o discurso estatal e a necessidade de reconstruir as práticas institucionais e estruturais em bases reais com novos significados, práticas, ações, políticas públicas, não apenas para proteção e promoção dos direitos das pessoas com deficiência, mas também para o combate à discriminação dos grupos vulnerabilizados por políticas públicas estatais, não inclusivas. Em suma, conjugar o art. 26 (desenvolvimento progressivo) com o art. 24, ambos da CADH, é dar origem a um “direito antidiscriminatório interamericano” que confere aos DESCA o caráter de norma imperativa de direito internacional.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/09/seriec-453-esp-compressed.pdf">https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_453_esp.pdf</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CYRILLO, Carolina; FUENTES-CONTRERAS, Édgar Hernán; LEGALE, Siddharta. The Inter-American Rule of Law in South American constitutionalism. In: Sequência (Florianópolis), vol. 42, n. 88, pp. (1-27), 2021. pp. 19-20. <a href="https://www.scielo.br/j/seq/a/s5ZDFH8mH3rG5RNpM9h7FXn/">https://www.scielo.br/j/seq/a/s5ZDFH8mH3rG5RNpM9h7FXn/</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> LEGALE, Siddharta. A Corte Interamericana de Direitos Humanos como Tribunal Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

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JOTA

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O nascimento do direito antidiscriminatório interamericano

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