Vanessa Karam de Chueiri Sanches

Viviane Christine Martins Ferreira

Em sua obra “E eu não sou uma mulher?”, escrita originalmente em 1981, no capítulo intitulado “A desvalorização contínua da mulheridade negra”, bell hooks traz o debate a respeito da ideia de “matriarcado”, em dimensão que teria sido apropriada por cientistas sociais (homens) americanos e que teria sido difundido pelos colonizadores para “rotular” mulheres negras no período escravocrata e pós escravocrata americano, para que fossem consideradas “privilegiadas”, num contexto social que insistia em mantê-las excluídas.
Conforme ensina hooks<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a> “uma das estratégias opressivas que escravizadores brancos usaram para prevenir rebeliões e revoltas de escravizados foi a lavagem cerebral, para fazer escravizados acreditarem que pessoas negras eram realmente mais bem cuidadas na condição de escravos do que se fossem pessoas livres. Escravizados negros que aceitaram a imagem de liberdade criada pelo senhor tinham medo de se liberarem das amarras da escravidão. Uma lavagem semelhante tem sido usada como lavagem cerebral de mulheres negras”.
Especificamente em relação às mulheres negras, hooks afirma que<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a> (p. 137):
<blockquote class="jota-article__citation">“uma vez que mulheres negras são iludidas e imaginam que temos um poder que, na realidade, não temos, a possibilidade de nos organizarmos coletivamente para lutar contra a opressão sexista e machista é reduzida. Entrevistei uma mulher negra que, geralmente, trabalhava como atendente e estava vivendo próximo à pobreza; ela ainda enfatizou, continuamente, o fato de que a mulher negra era matriarcal, poderosa, e que estava no controle da própria vida; na verdade ela estava à beira de um ataque de nervos, tentando manter um equilíbrio financeiro. É significativo que sociólogos que rotulam mulheres negras de matriarcas jamais tenham debatido o status social da mulher dentro do estado matriarcal, porque se tivessem feito isso pessoas negras teriam sabido imediatamente que de maneira alguma isso se assemelhava ao destino das mulheres negras. Sem dúvida, o falso sentimento de poder que mulheres negras são levadas a ter nos faz pensar que não precisamos de ativismos sociais, como um movimento de mulheres que nos libertaria da opressão sexista. A triste ironia é, obviamente, que mulheres negras são, com frequência, mais vitimadas pelo próprio sexismo que nos recusamos a identificar coletivamente como força opressora”.</blockquote>
O que hooks pretende apontar aqui é que alguns mitos e estereótipos foram forjados, distorcidos, criados ou fortalecidos pelos colonizadores escravocratas, especialmente em relação à mulher negra, para encobrir a subalternidade e opressão a que estas mulheres estavam (estão) sujeitas, sob a falsa imagem de que, na condição de “matriarcas”, elas eram dominadoras e tinham o controle sobre as suas escolhas.
Não se pretende neste texto, advirta-se, lançar considerações sobre concepções de matriarcado para a experiência africana, brasileira ou latino-americana, ou mesmo interrogar gênero e conceitos a este associados com base em epistemologias decoloniais, qual já o fizeram em densidade autoras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Maria Lugones, Oyèrónké Oyěwùmí, entre outras, mas chamar atenção, a partir das ponderações vistas em bell hooks, para a circunstância de que, a despeito do discurso masculino sobre as mulheres negras, estas, enquanto escravizadas, não detinham poder ou status social a compor estruturas concorrentes ao sistema colonial, patriarcal e escravocrata.
Denunciou bell hooks o manejo da linguagem e da expressão “matriarcado” sem que as mulheres negras escravizadas tivessem “poder” ou partilhassem dos estereótipos sexistas comumente atribuídos às mulheres brancas, como as ideias de fraqueza e fragilidade, pois aquelas sempre tiveram que colocar à disposição a sua força de trabalho, não lhe restando opção entre querer ou não trabalhar.
Assim, para a autora, a disseminação da noção de “matriarcado”, naquele contexto, visava apenas e tão somente dar uma falsa ideia de “poder” a mulheres que não tiveram qualquer possibilidade de gerir suas próprias vidas, porque desumanizadas e econômica e socialmente oprimidas por um sistema sexista e racista.
Para bell hooks, a criação da imagem de “matriarcado”, consequentemente, pode ter contribuído a dificultar a possibilidade das pessoas escravizadas, em geral, e mulheres negras, em particular, de se organizarem na luta contra as opressões a que estavam sujeitas.
Feitos os esclarecimentos iniciais, avançamos para explicar a aproximação entre as falsas compreensões de matriarcado trazido por bell hooks com a ideia do empreendedorismo trabalhista do século XXI. Vejamos.
O conceito de empreendedorismo está relacionado à ideia de disposição ou capacidade de idealizar, coordenar e realizar projetos, serviços, negócios<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>. Esta noção de “empreendedorismo” foi incorporada ao mercado de trabalho para justificar determinadas formas de prestação de serviços não alcançadas pelo arcabouço protetivo da legislação trabalhista.
Num mercado de trabalho cada vez mais precarizado, terceirizado e desumanizado, cujos direitos e garantias sociais vem sendo corroídos, há uma expansão significativa de trabalhadores/as intermitentes, flexíveis, temporários, informais e “uberizados”, que vem nestas novas formas de prestação de serviços a única resposta ao desemprego e ao desalento.
O sociólogo e professor da Unicamp Ricardo Antunes, explica que é neste contexto que “ganha corpo a ideia falaciosa, mistificadora, do empreendedor. É uma das poucas alternativas que o mundo do trabalho oferece frente à corrosão dos direitos e garantias sociais. É isso ou o desemprego completo. É por isso que o empreendedorismo é poderoso ideologicamente, porque é isso ou nada. Ao mesmo tempo, a maioria expressiva dos empreendedores vive aos solavancos”<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>.
Ora, sob opressão entre a ausência de renda ou trabalho socialmente protegido, cenário de fome, desemprego e desalento, não se pode compreender livre a adesão de trabalhadoras(es) na contemporaneidade às formas precárias de venda da força de trabalho, não sendo adequado chamar de empreendedor(a) quem não detém os meios de produção, a quem somente resta vender tempo de vida e trabalho sob as condições possíveis, atualmente nomeadas de “empreendedorismo”.
Justamente por isso, a ideia do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/empreendedorismo">empreendedorismo</a> nos modelos ampliados nos dias atuais é um mito, pois sob roupagem de criação de novos postos de trabalho que “supostamente” prometem garantir, ao mesmo tempo, renda, “gestão” e “autonomia” a trabalhadoras(es), esconde modalidades de trabalho degradantes e precárias e, como afirma Antunes, “a mistificação torna-se o remédio que só fará alimentar a doença”<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>.
Entre as(os) empresárias(os) por necessidade, a situação é agravada se observada a condição da mulher negra, especialmente levando em conta que segundo dados do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ipea">Ipea</a> e do<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ibge"> IBGE</a>, 45% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres, e que 63% deles, por mulheres negras que estão abaixo da linha da pobreza. É das mulheres negras também a maior taxa de desocupação em relação a todos os segmentos sociais (18,9%), recebendo a mulher negra 54,9% da renda de homens não negros, conforme aponta Boletim Especial do Dieese de 07/03/2022<a href="#_edn6" name="_ednref6">[6]</a>.
Assim, qual o mito do “matriarcado” observado em contexto estadunidense por bell hooks, a valorização do mito do empreendedorismo cria a falsa imagem de que o(a) trabalhador(a) tem o “poder” e a “gestão” da sua força de trabalho, quando, em verdade, continua sob submissão ao modelo de exploração de mão de obra, mas sem proteção social e trabalhista.
Portanto, a partir das realidades aqui apresentadas, chega-se à triste conclusão que o “mito do matriarcado” trazido por bell hooks para retratar a situação das mulheres negras escravizadas na realidade estadunidense não está distante do “mito do empreendedorismo” dos dias atuais, já que em ambos contextos são forjadas expressões para valorizar sentidos distantes da realidade, para esconder verdades perversas, enfraquecendo a possibilidade de formação de laços comunitários ou de mobilização por parte dos grupos afetados que, no caso contemporâneo, diferentemente da possibilidade de autorrealização por disposição ou capacidade de idealizar, coordenar e executar projetos, serviços e negócios com efetiva autonomia, ou de organização de estruturas hábeis a concorrer com sistemas hegemônicos, expõem pessoas à autoexploração, à margem da proteção social, as compelindo a aderir a mitos vigentes como únicas saídas para a sobrevivência.
<hr />
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> Hooks, bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. 9ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021, p. 136-137.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Hooks, bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. 9ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021, p. 137.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Disponível em <a href="https://languages.oup.com/google-dictionary-pt/">https://languages.oup.com/google-dictionary-pt/</a>.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> Disponível em <a href="https://nace.com.br/empreendedorismo-e-mito-em-pais-que-nao-cria-trabalho-digno-diz-sociologo-sociologo-098-2019/">https://nace.com.br/empreendedorismo-e-mito-em-pais-que-nao-cria-trabalho-digno-diz-sociologo-sociologo-098-2019/</a>.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a>Disponível em  <a href="https://nace.com.br/empreendedorismo-e-mito-em-pais-que-nao-cria-trabalho-digno-diz-sociologo-sociologo-098-2019/">https://nace.com.br/empreendedorismo-e-mito-em-pais-que-nao-cria-trabalho-digno-diz-sociologo-sociologo-098-2019/</a> - acesso em 24/04/2022.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[6]</a> Disponível em <a href="https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2022/mulher.pdf">https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2022/mulher.pdf</a>.

Mulheres

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JOTA

Em ambos contextos são forjadas expressões para esconder verdades perversas

O mito das matriarcas em bell hooks e o mito do empreendendorismo

"Mito do matriarcado” trazido por bell hooks para retratar situação das mulheres negras escravizadas nos EUA não está distante do “mito do empreendedorismo” dos dias atuais