O texto da PEC n° 23/2021, apresentada pelo Executivo em agosto de 2021, teve sua admissibilidade aprovada na Comissão de Constituição e Justiça, por 32 votos a favor e 26 contrários, em 16/09/21, nos termos do parecer do Relator, o Deputado Darci de Matos (PSD-SC). Agora, o texto encontra-se na comissão especial onde o mérito será debatido.

A PEC n° 23/2021, conhecida como “PEC do Calote”, promove uma série de alterações no regime constitucional de pagamento dos precatórios oriundos de condenações judiciais da Fazenda Federal, a fim de evitar alegado colapso das finanças do Governo Federal, a que o Ministro da Economia se referiu como “meteoro de gastos”.[1]

O Governo Federal informa que, de acordo com as informações encaminhadas pelo Poder Judiciário para composição da próxima lei orçamentária, cerca de R$ 90 bilhões deveriam ser direcionados para gastos com sentenças judiciais no orçamento federal de 2022, o que comprometeria a execução de políticas públicas assistenciais e outras despesas discricionárias.[2]

Diante desse cenário, a proposta pretende alterar dispositivos dos arts. 100, 109, 160, 166 e 167 da Constituição Federal, bem como acrescer os arts. 80-A e 101-A ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com o objetivo, em linhas gerais, de:

(i) afastar o pagamento de precatórios fora do rito tradicional, ou seja, evitar que a parcela “superpreferencial” dos precatórios escape da previsibilidade orçamentária típica do procedimento natural de quitação desses requisitórios, (ii) permitir o depósito de parte ou da totalidade do precatório à disposição do juiz da execução quando o credor for simultaneamente devedor da Fazenda Pública, (iii) permitir que o depósito mencionado no item anterior ocorra mesmo na hipótese de cessão do precatório, (iv) estabelecer o parcelamento dos precatórios vultosos quando o volume total de pagamentos exceder determinado percentual da Receita Corrente Líquida da União[3], (v) autorizar o encontro de contas dos valores de precatórios com aqueles devidos por pessoa jurídica de direito público interno, bem como a dedução dos valores devidos dos montantes a serem repassados relacionados às respectivas cotas nos Fundos de Participação, e (vi) prever a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial Selic, acumulada mensalmente, como critério de atualização e compensação da mora no precatório, independentemente da natureza da condenação judicial.

Ainda, a proposta de emenda (vii) limita a competência para ajuizamento de ação em face da União, no Distrito Federal, preservando-a apenas para demandas coletivas; (viii) flexibiliza a chamada “regra de ouro” no orçamento fiscal e da seguridade social ao prever possibilidade de ressalva na lei orçamentária anual de contratação de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital; e (xi) cria o “Fundo de Liquidação de Passivos da União”[4].

A despeito dos inúmeros pontos passíveis de discussão acerca de sua constitucionalidade contidos no texto da PEC nº 23/2021, o presente artigo propõe uma reflexão específica sobre a proposta de inserção do §2º, no art. 160, da Constituição Federal, com a consequente renumeração do atual parágrafo único do referido dispositivo (que passaria a ser o §1º).

Vejamos o que diz o atual art. 160 da Constituição Federal e seu respectivo parágrafo único:

“Art. 160. É vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos, nesta seção, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, neles compreendidos adicionais e acréscimos relativos a impostos.

Parágrafo único. A vedação prevista neste artigo não impede a União e os Estados de condicionarem a entrega de recursos:

I - ao pagamento de seus créditos, inclusive de suas autarquias;

II - ao cumprimento do disposto no art. 198, § 2º, incisos II e III.”

A PEC nº 23/2021 propõe a seguinte redação ao dispositivo:

“Art. 160. ………………

1º A vedação prevista neste artigo não impede a União e os Estados de condicionarem a entrega de recursos: ....

2º Os contratos, acordos, ajustes, convênios, parcelamentos ou renegociações de débitos de qualquer espécie, inclusive tributários, firmados pela União com os entes federativos conterão cláusulas para autorizar a dedução dos valores devidos dos montantes a serem repassados relacionados às respectivas cotas nos Fundos de Participação ou aos precatórios federais.” (Grifos aditados)

A proposta pretende inserir mais uma exceção ao caput, do art. 160, que veda categoricamente a retenção pela União de recursos provenientes de transferências constitucionais obrigatórias a serem entregues a Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Em tese, a nova exceção serviria para permitir o encontro de contas entre os precatórios judiciais devidos pela União e os valores devidos pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, em virtude de acordos, convênios, renegociações e parcelamentos. É dizer, em ajustes celebrados entre os entes federados e a União, seriam incluídas cláusulas de modo a possibilitar a quitação de dívidas contraídas por esta última, reconhecidas judicialmente e, portanto, cujo pagamento é obrigatório, mediante respectivo abatimento de seus valores das parcelas a serem pagas em função de cumprimento contratual, ou de renegociações e parcelamentos por parte dos demais entes.

Até aí estamos falando de meios de possibilitar o cumprimento de obrigações judiciais pela União, com base em ajuste que permita a dedução de seu montante de eventuais valores devidos pelas demais unidades federadas. Ou seja, o ente poderá reduzir a parcela a ser paga com base no valor dos precatórios federais que possui.

A questão é que a redação proposta avança para permitir que as cotas dos Fundos de Participação também sejam objeto desse encontro de contas, de modo a que os valores eventualmente devidos pelos Estados, Distrito Federal e Municípios sejam automaticamente deduzidos do montante a ser repassado mensalmente, pela União, a esses mesmos entes, por força da determinação constante nos arts. 157 a 159 da Constituição Federal. Diante disso, sobressaem dois questionamentos: 1) o que isso tem a ver com o alegado impacto das condenações oriundas de sentenças transitadas em julgado no orçamento federal? 2) a inserção de nova exceção ao caput, do art. 160, da Constituição Federal é constitucional?

Em relação ao primeiro, parece claro que se está diante de duas situações diferentes. Uma coisa é o encontro de contas entre precatórios federais e débitos estaduais e municipais, mediante cláusula contratual. Aqui a dívida federal, já reconhecida por decisão judicial transitada em julgado, permitiria ao ente uma redução nas suas obrigações com a União. Completamente diferente é a autorização por cláusula contratual da dedução de valores devidos em função de contrato, renegociação ou parcelamento das cotas dos Fundos de Participação a que fazem jus os Estados, Distrito Federal e Municípios, independentemente do acertamento judicial da dívida, e cujo direito à percepção é expressamente assegurado pelo texto constitucional.

Em relação ao segundo, a questão perpassa pela própria exegese do art. 160 da Constituição Federal, que, destaque-se, é norma constitucional originária, tendo as Emendas Constitucionais nº 03/93 e nº 29/00, incluído, respectivamente, a possibilidade de condicionamento de créditos pelos Estados e a possibilidade de retenção quando se trate de pagamento de créditos de autarquias, ou ainda, quando se trate de emprego mínimo de recursos em ações e serviços públicos de saúde. Nem por isso a interpretação do dispositivo deixa de ser controversa. Ao contrário, o decurso do tempo trouxe outros dispositivos constitucionais (art. 167, §4º[5]) e legais (art. 40, §1°, II, da Lei de Responsabilidade Fiscal[6])[7] que só reforçam os questionamentos em torno daquilo que autoriza o parágrafo único, do art. 160, da Constituição Federal.

É que, aparentemente, o caput do art. 160 institui uma regra, cujo parágrafo único contradiz, a demandar um esforço interpretativo de harmonização que a prática judicial não tem feito.

Nesse ponto, foi célebre a polêmica instaurada em torno da interpretação deste dispositivo quando o Estado de Minas Gerais entrou em litígio judicial com a União, em 1999, em razão da apropriação por esta última do repasse de recursos devidos ao Estado, para saldar dívidas deste.[8] As cláusulas do acordo de renegociação de dívidas firmado entre os dois entes, em 1996, autorizavam, em caso de inadimplência, a intervenção da União nas contas bancárias do Estado, para se apropriar dos recursos necessários à quitação das obrigações assumidas. A Procuradora Geral do Estado de Minas Gerais à época, a Professora Misabel de Abreu Machado Derzi, levou o imbróglio à apreciação da Corte Suprema, propondo interpretação ao dispositivo, compatível com o princípio federativo. O caso recebeu pareceres de diversos juristas[9], defendendo temperamentos à aplicação do referido parágrafo único, do art. 160, contudo, não teve o mérito apreciado em função do pedido de desistência do Estado.

Seja como for, o fato é que o parágrafo único, do art. 160, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, tem sido utilizado para fundamentar a retenção de recursos oriundos de transferências constitucionais obrigatórias em razão de dívidas de Estados e Municípios com a União, sem a cautela necessária à garantia de manutenção do equilíbrio federativo, servindo até mesmo para justificar a retenção de transferências voluntárias.

Sobre a gênese do dispositivo, Ives Gandra Martins chegou a afirmar que:

“Na ocasião em que se discutia na Constituinte a matéria, mantive, por telefone, longa conversa com Francisco Dornelles, presidente da Comissão que cuidava do Sistema Financeiro, Orçamento e Tributação. Acreditava Dornelles que, com a receita alargada (direta e indireta) que os Municípios e os Estados passariam a ter, não mais precisariam do financiamento da União, podendo honrar inclusive os compromissos passados. Transmiti-lhe o meu ceticismo, pois entendia que tais entidades não estavam querendo trocar o rótulo da sua situação, isto é, deixar de ter financiamentos para ter receitas, razão pela qual continuariam pressionando a União no concernente aos financiamentos.

Não sei qual o efeito da longa conversa (mais de uma hora); o certo, todavia, é que a ressalva foi colocada, de tal forma que a União hoje pode autocompensar-se nas transferências, recebendo seus créditos junto a Estados, Distrito Federal e Municípios.

De certa forma, o parágrafo único pode transformar-se em excelente instrumento para a União exigir rígida política de contenção de despesas a Estados e Municípios.”[10]

Não é possível aferir a veracidade do fato narrado, contudo, mesmo que o parágrafo único do art. 160 pudesse ter atendido ao instinto centralizador do constituinte originário neste aspecto, como bem expõe Regis Fernandes de Oliveira, o princípio federativo sobrepaira interpretações menores.[11]

É inegável que as transferências obrigatórias, representadas pelos Fundos de Participação dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios, representam um importante instrumento de cooperação federativa, que racionaliza tanto a arrecadação quanto os gastos, além de constituir instrumento indispensável para redução dos desequilíbrios inter-regionais. Formam, portanto, a base do sistema de equalização de receitas no Brasil. Ademais, constituem recursos próprios do ente receptor, não sujeitos a quaisquer condições, de forma que a sua retenção no contexto federativo atual representa uma grave ofensa às finanças dos entes subnacionais.

Em função disso, acreditamos que a exceção ao caput contida no parágrafo único do art. 160 deve ser interpretada restritivamente, sob pena de tornar-se incompatível com o pacto federativo.[12] Assim, o que o dispositivo permite é que dentro da liberdade patrimonial de que gozam os entes federados, possam eles espontaneamente vincular receitas próprias à prestação de garantia ou contragarantia à União. Aí sim, caso descumprida a obrigação principal, assegurado o exercício do contraditório e da ampla defesa por parte do ente, poderá a União condicionar a entrega dos recursos provenientes de transferências obrigatórias ao pagamento da dívida, ressalvada sempre a possibilidade de tutela judicial. De modo algum, poder-se-á interpretar o aludido dispositivo como uma autorização à satisfação imediata de seus créditos pela União, porquanto “condicionar a entrega” e “compensar valores” não são expressões dotadas de mesmo significado.

Logo, as alterações no dispositivo, propostas pela PEC nº 23/2021, que visam ampliar o alcance do atual parágrafo único, do art. 160, da Constituição Federal para permitir que ajustes, contratos, convênios e parcelamentos firmados entre os entes federados e a União contenham cláusulas autorizadoras da dedução imediata de valores porventura devidos das cotas dos Fundos de Participação, padecem de inconstitucionalidade, na forma dos arts. 1º e 60, § 4º, I, da Carta Magna.

Acaso a proposta seja convertida em emenda constitucional, possivelmente, trará à tona o debate acerca da interpretação do art. 160 da Constitucional Federal e dos limites ao poder de reforma da Constituição com base no pacto federativo.

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[1] Vide: https://www.cnnbrasil.com.br/business/meteoro-de-gastos-citado-por-guedes-e-conta-de-ate-r-90-bi-com-precatorios/

[2] Vide EM nº 00206/2021 ME https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01jvpv07agu4t5420pop5ld6hu953328.node0?codteor=2054008&filename=PEC+23/2021

[3] Conforme o texto sugerido, seriam parcelados, em ordem decrescente de valor, os precatórios que fizessem com que a soma dos valores requisitados da União superassem 2,6% (dois inteiros e seis décimos por cento) da receita corrente líquida acumulada dos doze meses anteriores em que requisitados.

[4] Constituído por a) recursos decorrentes da alienação de imóveis, rendimentos de fundos integralizados com esses mesmos imóveis e b) de participações societárias da União, c) de dividendos por ela recebidos decorrentes de empresas estatais, d) de outorga de delegações de serviços públicos e demais espécies de concessão negocial, e) de antecipação de valores a serem recebidos, pela União, a título do excedente em óleo em contratos de partilha de petróleo, e da f) arrecadação decorrente do primeiro ano de redução de benefícios fiscais a que se refere à EC nº 109/2021.

[5] “Art. 167 § 4º É permitida a vinculação das receitas a que se referem os arts. 155, 156, 157, 158 e as alíneas "a", "b", "d" e "e" do inciso I e o inciso II do caput do art. 159 desta Constituição para pagamento de débitos com a União e para prestar-lhe garantia ou contragarantia. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 109, de 2021)”

[6] “Art. 40. Os entes poderão conceder garantia em operações de crédito internas ou externas, observados o disposto neste artigo, as normas do art. 32 e, no caso da União, também os limites e as condições estabelecidos pelo Senado Federal e as normas emitidas pelo Ministério da Economia acerca da classificação de capacidade de pagamento dos mutuários. (Redação dada pela Lei Complementar nº 178, de 2021)

1o A garantia estará condicionada ao oferecimento de contragarantia, em valor igual ou superior ao da garantia a ser concedida, e à adimplência da entidade que a pleitear relativamente a suas obrigações junto ao garantidor e às entidades por este controladas, observado o seguinte: [...]

II - a contragarantia exigida pela União a Estado ou Município, ou pelos Estados aos Municípios, poderá consistir na vinculação de receitas tributárias diretamente arrecadadas e provenientes de transferências constitucionais, com outorga de poderes ao garantidor para retê-las e empregar o respectivo valor na liquidação da dívida vencida.”

[7] A constitucionalidade do art. 40, §1º, II, da LRF é questionada por alguns autores como André Mendes Moreira (“O modelo de federalismo fiscal brasileiro” in SCAFF, Fernando Facury; TORRES, Heleno Taveira; DERZI, Misabel de Abreu Machado; BATISTA JÚNIOR (Coords.) Federalismo s(em) juízo. São Paulo: Noeses, 2019) e José Maurício Conti (Federalismo Fiscal e Fundos de Participação. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p. 124).

[8] STF, PET 1654/99 e PET-AgRg 1665-MG.

[9] Publicados na Revista da Procuradoria-Geral do Estado de Minas Gerais, v. 1, nº 1, janeiro/junho de 1999.

[10] MARTINS, Ives Gandra; BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil (promulgada em 5 de outubro de 1988). Vol. 6, Tomo II, São Paulo, Saraiva, 2001. p. 94-95.

[11] OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 538.

[12] ALVES, Raquel de Andrade Vieira. Federalismo Fiscal Brasileiro e as Contribuições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 67. No mesmo sentido: MOREIRA, André Mendes. “O modelo de federalismo fiscal brasileiro” in SCAFF, Fernando Facury; TORRES, Heleno Taveira; DERZI, Misabel de Abreu Machado; BATISTA JÚNIOR (Coords.) Federalismo s(em) juízo. São Paulo: Noeses, 2019. p. 224; CONTI, Federalismo Fiscal e Fundos de Participação. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p. 122; BARROSO, Luís Roberto. Parecer nº 01/2009. Sentido e alcance do parágrafo único do art. 160 da Constituição: parâmetros para a retenção de receitas estaduais pela União Federal. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº 64, 2010. p. 305.

O 'meteoro' que atinge o pacto federativo

PEC promove alterações no regime de pagamento dos precatórios oriundos de condenações judiciais da Fazenda Federal