Fernanda Morgan Pimentel

Muito se fala sobre a problemática relacionada à incidência do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/itcmd">ITCMD</a>) nas hipóteses de transmissão causa mortis quando o autor da herança possuía bens e/ou direitos, era residente ou teve o processamento de seu inventário no exterior. A Constituição Federal, no artigo 155, § 1º, III, antecipando-se a um possível conflito federativo entre os estados, exigiu que a União editasse lei complementar previamente à instituição do imposto em âmbito estadual. Inclusive, foi sob essa perspectiva que decidiu o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a> (STF) ao invalidar as leis estaduais que haviam permitido a cobrança do imposto sem prévia autorização nacional. Mas a uniformidade de tratamento também se mostrou necessária para além daquilo que já havia antevisto a CF/88.
Basta percebermos que, atualmente, há potencial embate de normas estaduais com relação à incidência do ITCMD envolvendo bens móveis transmitidos por meio de inventário extrajudicial. Nesses casos, cada estado regulamenta de um jeito; e esse jeito particularizado gera uma situação que beira à conflituosidade. Vejamos o que diz a legislação, a começar pela Constituição Federal.
A CF/88 é peremptória quando afirma que, nos casos envolvendo processamento de inventário extrajudicial para a transmissão de bens móveis, é devido o ITCMD para o estado de processamento do inventário. Nesse sentido, ressalte-se o disposto no art. 155, § 1º, II, da CF/88, quanto à competência do estado, onde se processa o inventário ou arrolamento, relativamente a bens móveis, títulos e créditos, relativamente à arrecadação do imposto de transmissão causa mortis.
Percebam que é sob as luzes desse dispositivo que deve ser lida a disciplina jurídica do instituto. Por exemplo, quando se lê na Resolução nº 326, de 26/6/2020 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>, que o imposto pode ser pago em qualquer tabelionato de notas, deve-se entender que, embora de livre escolha do inventariante, o tabelionato, no caso de transmissão de bens móveis, deve estar circunscrito ao estado a que competir o imposto sobre bens móveis, de modo que cabe ser pago o ITCMD na sede do tabelionato eleito para o inventário em se tratando de bens móveis. Com efeito, a Resolução do CNJ, embora não seja lei em estrito sensu, é ato normativo e deve, igualmente, ser interpretada a partir do que diz a Constituição.
Dita leitura constitucional pode ser depreendida do próprio texto do artigo 1º da Resolução, que ressalva, expressamente, a aplicabilidade do CPC sobre a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário por via administrativa[1][2].
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<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/itcmd-entenda-o-que-como-funciona-20082021">Entenda o que é ITCMD e como ele é calculado</a></li>
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Consideremos, então, o seguinte cenário: processado o inventário no estado do Rio de Janeiro, qualquer tabelionato de nota desse estado pode ser sede para prova da quitação do imposto. Acontece, com bastante frequência, de o domicílio do autor da herança não coincidir com o estado em que se pretende processar o inventário.
É precisamente nesse meio de caminho que reside o problema.
Para ilustrar, façamos um comparativo entre a legislação estadual de São Paulo e a do Rio de Janeiro. A lei fluminense toma como parâmetro o domicílio do autor da herança, apenas afirmando que, quando o falecido, na data da sucessão, não tinha domicílio certo ou tinha mais de um domicílio, ocorrendo o processamento do inventário no Rio, será devido o ITCMD ao estado[3]. Isso significa dizer que só excepcionalmente a transmissão de bens móveis por inventários extrajudiciais gerará arrecadação para o Rio (a exceção se refere ao caso em que inexistente ou desconhecido o domicílio certo do autor da herança).
Por outro lado, prevê a legislação de São Paulo, de forma mais consentânea com o disposto na CF/88, que a regra de recolhimento se orienta pelo processamento do inventário (art. 3º, § 2º, da Lei 10.705/2000).
A lei estadual de SP é silente quanto aos casos em que somente o domicílio do autor da herança está situado em solo paulistano, mas o inventário é processado fora dele. A vida real, contudo, não é nada silente. Comumente se vê, nessas situações, que São Paulo recolhe o imposto, ainda que o inventário seja processado no Rio. Conclusão: o Rio perde arrecadação, porque não prevê o processamento do inventário como elemento atrativo de sua competência tributária.
Observem, contudo, que, se respeitada a letra do artigo 155, § 1º, III, da CF/88, o imposto seria devido ao Rio, independentemente do local de domicílio do autor da herança. Mas, na ausência de previsão legal da competência tributária pela legislação estadual do RJ, haverá uma espécie de “renúncia de receita” pelo estado, e será São Paulo que arrecadará o imposto de transmissão mesmo na hipótese de inventário extrajudicial por escritura pública lavrada fora do estado de São Paulo, desde que o “de cujus” fosse lá domiciliado.
Não obstante isso, imaginemos a situação inversa daquela que foi narrada acima: um cenário em que o último domicílio do autor da herança seja o estado do Rio e, em São Paulo, se dê o processamento do inventário. As leis de ambos os estados preveem que o imposto seja devido para si. Daí exsurge um risco quadruplicado: junto do potencial conflito federativo, todas repercussões inerentes a ele, como <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/guerra-fiscal">guerra fiscal</a>, insegurança jurídica e dificuldade de compreensão do contribuinte acerca das regras de recolhimento do imposto.
Paralelamente, também é preciso considerar que pode acontecer de o contribuinte pagar duas vezes, ou, senão isso, ser, ao menos, duplamente cobrado (tanto por São Paulo quanto pelo Rio). Temos aí configurado um imbróglio com o qual o cidadão se depara, mas em relação ao qual não se exigiu lei complementar nacional.
Se já não bastasse, há de se considerar, quanto ao ITCMD, um segundo embaraço normativo que pode confundir o contribuinte. Ora, se refere à divergência existente entre as corregedorias dos tribunais de justiça dos estados quanto ao momento de recolhimento do imposto.
É sabido, dada a significação do fato gerador do ITCMD, que a obrigação tributária somente nasce com a transmissão do bem móvel ou imóvel, seja por herança, seja por doação. Nesse sentido, é entendimento pacífico no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">Superior Tribunal de Justiça</a> (STJ) que o imposto somente deve ser pago após a homologação da partilha. Isso porque, nos termos do art. 35, parágrafo único do CTN, nas transmissões causa mortis, ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos sejam os herdeiros ou legatários. Apesar de a herança ser transmitida no momento da abertura da sucessão, a exigência do ITCMD depende do conhecimento do montante correto do patrimônio transferido por sucessão e dos seus respectivos herdeiros ou legatários, para que se possa averiguar fatos geradores distintos mencionados no parágrafo único do artigo 35.
Dessa forma, há corregedorias de justiça que já adaptaram seus respectivos códigos de normas extrajudiciais para conformar-se ao que decidiu o STJ, no sentido de que o imposto recairá somente quando da efetiva transmissão, após o formal da partilha, que faz nascer a possibilidade de se verificar o aspecto material, pessoal e quantitativo da hipótese normativa do ITCMD, tornando possível a realização do lançamento e exigência do imposto em inventários extrajudiciais.
Mas os códigos de normas extrajudiciais de estados como Rio e São Paulo estabelecem que a prova de quitação do imposto deve ser apresentada antes da lavratura do formal de partilha, o que acaba por antecipar a cobrança de pagamento do imposto.
À tal antecipação, está correlacionada uma entendível preocupação das Fazendas ao dever de fazer o controle do pagamento do imposto, apenas depois de efetuado o formal de partilha, que transmite a propriedade do bem móvel[5].
Tal preocupação, é, por certo, compreensível, mas não é, contudo, lei de regência do ITCMD. E ainda que se entenda de forma diversa, fato é que deve haver um mínimo de homogeneidade normativa por parte das legislações dos diferentes estados.
O mesmo se pode falar dos códigos de normas extrajudiciais da Corregedoria de Justiça dos tribunais locais, que devem obedecer a alguma regra padronizada acerca da incidência do ITCMD, quanto ao seu momento de incidência e também quanto ao local em que é devido o imposto.
Com base nessa compreensão, foi dirigido ao CNJ um pedido de providências de autoria do deputado federal Paulo Ganime. O objetivo foi de instar o conselho a orientar os tribunais locais a convergirem entre si quanto aos elementos que regem a cobrança do ITCMD nos inventários extrajudiciais envolvendo os bens móveis, tanto no que tange ao momento de recolhimento quanto ao local de incidência do ITCMD.
Ora, se pretendeu ir além, buscando dar notoriedade pública ao imbróglio narrado. O referido imbróglio está ligado (como causa e, também, consequência) da evidente falta de racionalidade econômica das regras de recolhimento do ITCMD de bens envolvendo a transmissão de bens móveis em sede administrativa.
No que toca à mencionada irracionalidade, registre-se que ela pode ser vista sob duas perspectivas: de forma mais abrangente, ela é verificável em âmbito nacional, devido às incongruências normativas relacionadas à prova de cobrança cartorial do imposto.
Ademais, é possível notá-la na circunstância particularizada no Rio de Janeiro, onde se impõe alíquota progressiva que chega a 8%; não obstante, o estado perde arrecadação, porque deixa de recolher o imposto nos casos em que não sediar o último domicílio do autor da herança.
Com efeito, tem-se, no estado do Rio, exemplo emblemático de que cobrar caro não é cobrar bem. Logo, é preciso buscar otimizar a cobrança, retirando o enfoque da arrecadação por meio do aumento da alíquota.
Inclusive, é esse mesmo racional que fundamenta o pedido feito ao CNJ, para que o conselho edite ato normativo geral, recomendando a padronização das normas de cobrança do ITCMD incidente na transmissão causa mortis de bens móveis por meio cartorial.
<hr />
[1] Dispositivo aparentemente similar, mas que nada menciona sobre o local de processamento do inventário extrajudicial, e não afasta as regras do CPC, também está contido no artigo 215 do Código de Normas da Corregedoria de Justiça do E. TJRJ, senão vejamos: “É livre a escolha do Tabelião de Notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens, objeto do ato ou negócio”.
[2] O atual Código de Processo Civil brasileiro estabelece o seguinte, em seu artigo 48:
Art. 48. O foro de domicílio do autor da herança, no Brasil, é o competente para o inventário, a partilha, a arrecadação, o cumprimento de disposições de última vontade, a impugnação ou anulação de partilha extrajudicial e para todas as ações em que o espólio for réu, ainda que o óbito tenha ocorrido no estrangeiro.
Parágrafo único. Se o autor da herança não possuía domicílio certo, é competente: I - o foro de situação dos bens imóveis; II - havendo bens imóveis em foros diferentes, qualquer destes; III - não havendo bens imóveis, o foro do local de qualquer dos bens do espólio.
[3] O artigo 5º da Lei n. 7.174 de 28 de dezembro de 2015 assim dispõe: Art. 5º O imposto é devido ao Estado do Rio de Janeiro: II - na transmissão de bem móvel ou de bem imóvel situado no exterior, bem como de direitos a eles relativos, se nele estiver localizado o domicílio: c) do falecido, na data da sucessão, observado o disposto no § 3º deste artigo; ou § 3º Quando o falecido, na data da sucessão, não tinha domicílio certo ou tinha mais de um domicílio, o imposto relativo aos bens móveis é devido ao Estado do Rio de Janeiro se nele for processado o inventário judicial ou administrativo, nos termos do Código de Processo Civil.
[4] Estabelece o Código da Corregedoria Geral da Justiça do Rio de Janeiro, Parte Extrajudicial, Seção IV, artigo 241, VII:
Seção IV - Das normas gerais para a lavratura de atos notariais.
Art. 241. Antes de lavrar a escritura, o Tabelião observará: VII - a prova do pagamento do imposto de transmissão.
Da mesma maneira, segundo o disposto no Código de Normas de Serviço, Cartórios Extrajudiciais, Tomo II, do E. TJSP, Subseção II, artigo 15:
15. O Tabelião de Notas manterá arquivos para os seguintes documentos necessários à lavratura dos atos notariais, em papel, microfilme ou documento eletrônico:
b) Comprovante ou cópia autenticada do pagamento do Imposto sobre Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis, de direitos reais sobre imóveis e sobre cessão de direitos a sua aquisição - ITBI e do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação - ITCMD, quando incidente sobre o ato, ressalvadas as hipóteses em que a lei autorize a efetivação do pagamento após a sua lavratura.
[5] Em caso de inadimplência pelo adquirente do bem, restará cabível a inscrição em dívida ativa, com posterior protesto da dívida ativa tributária e ajuizamento da execução fiscal, na forma da lei 6.830/80, com penhora do próprio bem registrado, se for o caso  de inadimplência.

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JOTA

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