Guilherme Lobo Pecoral

Irene Jacomini Bonetti

Maurício Terena

“Proteger os direitos das crianças indígenas é garantir a demarcação dos territórios.” Roger Ferreira Alegre, Guarani-Kaiowá - <a href="https://lunetas.com.br/demarcar-terras-indigenas-e-garantir-o-direito-das-criancas/">Portal Lunetas</a>
A tese do chamado <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-ao-vivo-marco-temporal-das-terras-indigenas-sessao-do-dia-30-8-2023-30082023">marco temporal condiciona a demarcação de terras indígenas</a> à efetiva ocupação destas áreas pelos povos originários no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988 ou, subsidiariamente, à comprovação de que ali não estavam em decorrência de conflito instaurado acerca do território em questão.
Esta construção jurisprudencial — cuja constitucionalidade encontra-se <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-retoma-julgamento-do-marco-temporal-das-terras-indigenas-entenda-a-discussao-07062023">sob escrutínio do Supremo Tribunal Federal</a> (STF) — ameaça alterar o processo de demarcação, subvertendo sua concepção histórica, impedindo a demarcação de novas terras indígenas e fragilizando a proteção daquelas já demarcadas. Construído de modo a viabilizar uma usurpação definitiva de inúmeros territórios que hoje são abrigo e condição de existência dos povos indígenas brasileiros, o marco temporal é definido pela <a href="https://apiboficial.org/files/2023/06/030231b2-e186-4f7f-835b-102c614ca194.pdf">Articulação dos Povos Indígenas do Brasil </a>(Apib) como uma “tese política transformada em dispositivo de interpretação constitucional ad hoc que limita os direitos dos povos indígenas às suas terras tradicionais por meio da aplicação de um corte temporal arbitrário, restritivo e inconstitucional”.
Enquanto aguarda a tramitação do <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157888">PL 2903</a> no Senado e o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365 no STF, <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/mendonca-pede-vista-em-acao-que-discute-marco-temporal-das-terras-indigenas-07062023">a tese já é responsável por sobrestar ao menos 214 processos com temática similar</a> e, por conseguinte, por deixar diversas comunidades indígenas sob forte insegurança pessoal e jurídica.
Os resultados da <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-ao-vivo-marco-temporal-das-terras-indigenas-sessao-do-dia-30-8-2023-30082023">votação no Senado e do julgamento no STF marcarão um posicionamento histórico do Estado brasileiro em relação às vidas dos povos indígenas</a>. Mais do que isso, se aprovado o PL, poderá legitimar e viabilizar uma série de violências contra elas. É um debate que interessa a toda a sociedade, decisivo para as presentes e futuras gerações. A proteção das terras indígenas hoje é indispensável não só para seus povos, mas para todas as crianças e adolescentes, que são as mais afetadas pela crise climática global.
Crianças e adolescentes indígenas representam um terço dos cerca de 820 mil indígenas do Brasil (<a href="https://www.unicef.org/brazil/situacao-das-criancas-e-dos-adolescentes-no-brasil#:~:text=O%20Brasil%20possui%20uma%20popula%C3%A7%C3%A3o,ind%C3%ADgenas%20do%20Pa%C3%ADs%20%C3%A9%20crian%C3%A7a.">estimativa IBGE 2019</a>). São eles os mais impactados em contexto de violência e mudanças climáticas — <a href="https://apiboficial.org/2023/06/07/apib-lanca-relatorio-de-riscos-e-violacoes-de-direitos-associados-a-tese-do-marco-temporal/">o cenário que a tese do marco temporal antevê, caso seja aprovada</a> —, em razão de sua condição peculiar de desenvolvimento e da discriminação a que estão historicamente sujeitos no acesso a múltiplos direitos.
A garantia do direito dos povos indígenas às suas terras é um pressuposto para a proteção de suas vidas. De fato, conforme reiterado exaustivamente pela Apib no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, por exemplo,<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/adpf-709-a-voz-indigena-contra-o-genocidio-08072020"> não é possível uma proteção aos povos indígenas que não inclua a salvaguarda de seus territórios</a>.
O avanço de conflitos fundiários, agronegócio, mineração, desflorestamento e outras formas de intrusão e exploração ilegal das terras indígenas, demarcadas ou não, têm gerado violência, danos à saúde dos povos indígenas e degradação da natureza. É o que leva ao triste dado de alta mortalidade infantil indígena no país – ao menos 744 crianças de 0 a 5 anos perderam suas vidas no ano de 2021 (<a href="https://cimi.org.br/2022/08/relatorioviolencia2021/">Cimi 2022</a>) –, o qual está inserido em um cenário de ausência de serviços básicos de saneamento, saúde, assistência e segurança diretamente ligado à desproteção dos territórios.
Ao ameaçar as poucas garantias constitucionais que os povos indígenas têm, expressas no artigo 231 da Constituição Federal, a tese do marco temporal, além de ofender a esse dispositivo, representa também um grave risco a todo o arcabouço de direitos advindo do artigo 227, que consagra a prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente. Desse modo, uma eventual adoção deste paradigma causará um efeito direto não só na vida das inúmeras crianças que habitam as terras ameaçadas, mas também no que se refere ao <a href="https://criancaenatureza.org.br/pt/clima/legal-policy-brief/">direito de todas as crianças e adolescentes ao meio ambiente ecologicamente equilibrado</a>.
<a href="https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/estudo-comprova-que-povos-indigenas-e-tradicionais-sao-essenciais-para#:~:text=%E2%80%9CAs%20florestas%20precisam%20das%20pessoas,guardi%C3%B5es%20das%20florestas%20do%20Brasil.">Isso porque as terras indígenas representam hoje a mais importante barreira contra o avanço do desmatamento</a>, garimpo ilegal e mudanças climáticas, fenômenos que <a href="https://www.unicef.org/reports/climate-crisis-child-rights-crisis">ameaçam</a> profundamente as presentes e futuras gerações. O desmatamento associado às queimadas na região amazônica, por exemplo, tem causado <a href="https://www1.folha.uol.com.br/amp/colunas/marcia-castro/2023/05/a-mortalidade-indigena-por-exposicao-a-fumaca-das-queimadas.shtml">doenças respiratórias em crianças</a>, nascimentos prematuros e mortalidade fetal, mesmo em <a href="https://veja.abril.com.br/agenda-verde/incendios-na-amazonia-aumentam-poluicao-de-sp-em-ate-mil-por-cento/">regiões distantes da floresta</a>.
Um estudo da organização <a href="https://www.wri.org/research/climate-benefits-tenure-costs">World Resources Institute</a> de 2016 revela que as terras indígenas demarcadas no Brasil têm potencial de evitar a emissão de 31,8 milhões de toneladas anuais de CO2 (o que equivale  a tirar cerca de 6,7 milhões de carros de circulação por um ano). Já o <a href="https://reporterbrasil.org.br/2023/04/a-floresta-doente-as-criancas-munduruku-que-nao-brincam-e-podem-estar-contaminadas-por-mercurio/">garimpo</a> — o qual tende a ganhar força com a aprovação do marco temporal — tem sido meio de devastação ambiental, poluição de rios, violência e exploração sexual de meninas, além de agente causador de contaminação direta por mercúrio em crianças e adolescentes. Em 2021, uma <a href="https://www.mdpi.com/1660-4601/18/17/9222">pesquisa </a>realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) verificou níveis alarmantes de concentração de mercúrio entre os indígenas Munduruku decorrentes do garimpo, tendo o estudo verificado casos de atraso motor, anemia grave, problemas de visão, perda de memória e doenças neurológicas em crianças e adolescentes causadas pelo metal cujo uso, apesar de proibido, é disseminado nas atividades de mineiração ilegal.
Nesse contexto, é preciso lembrar que o artigo 225 da Constituição Federal já consagra o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Considerando a relação entre a qualidade de vida em um clima estável com o desenvolvimento de crianças e adolescentes, é íntima a conexão entre o artigo 225 e o 227, revelando o dever prioritário do Estado de enfrentar as mudanças climáticas e, consequentemente, proteger, reconhecer e demarcar terras indígenas. É dever constitucional, assim, afastar qualquer retrocesso nesse sentido, como o representado pelo marco temporal.
A ameaça se estende para além dos riscos materiais. Não há como dimensionar a violência que consiste no apagamento cultural colocado diante da reiterada e histórica contestação de terras indígenas, revestida por velhas e novas teses jurídicas com o mesmo fim: a aniquilação de povos que tenham uma relação não predatória com a terra. Nesse sentido, é também imperiosa sua proteção.  Terras indígenas compõem elementos essenciais da identidade e ancestralidade para as futuras e atuais gerações, e constituem um patrimônio material, imaterial e de resistência dos povos indígenas no Brasil, amparado pelo artigo 216 da Constituição.
Trata-se, ainda, de obrigação do Estado brasileiro assumida em compromissos internacionais. O artigo 30 da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, internalizada por meio do Decreto 99.710/1990, determina que às crianças indígenas não será negado ''o direito de ter sua própria cultura, professar ou praticar sua própria religião ou utilizar seu próprio idioma em comunidade com os demais membros de seu grupo''.
O Comitê dos Direitos da Criança, por meio do Comentário Geral 11, detalha que o exercício desses direitos culturais dos povos indígenas está intimamente relacionado ao uso das terras tradicionais, visto que é de considerável importância para o desenvolvimento e gozo de sua cultura. Apoiado também nestes dispositivos, o Relator Especial da ONU sobre Direito dos Povos Indígenas, <a href="https://news.un.org/pt/story/2023/06/1815882">José Franscisco Calí Tzay, com muita preocupação, pediu ao STF e ao Senado, </a>em junho deste ano, que ajam em consonância com as normas internacionais existentes relacionadas aos direitos dos povos indígenas e não validem a tese do marco temporal, a qual, em suas palavras, é “contrária aos padrões internacionais”.
A criança e o adolescente indígena, portanto, têm direito a usufruir da biodiversidade associada aos seus modos de vida, tradições culturais e religiosas, e fruir da sua infância e adolescência com equilíbrio ambiental. A proteção de suas terras é condicionante, inclusive, para a preservação de seu direito e sua <a href="https://mff.com.br/films/waapa/">cultura do brincar</a>. Ainda, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que, nesses territórios, em suas florestas, árvores, solo e cultura, podem residir o futuro e a esperança para o enfrentamento das mudanças climáticas e a solução de conflitos socioambientais.
O debate em torno do marco temporal, assim, vai muito além de uma disputa meramente jurídica e diz respeito à possibilidade de existência e qualidade de vida de todas as crianças e adolescentes, em reparação e justiça ao passado, garantia de direitos no presente e compromisso com o futuro.

52957602192_dc1a59aaa2_k

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Votação no Senado e julgamento no STF marcarão posicionamento histórico em relação às vidas dos povos indígenas

O marco temporal como ameaça ao presente e futuro de crianças e adolescentes

Votação no Senado e julgamento no STF sobre o marco temporal marcarão posicionamento histórico em relação às vidas dos povos indígenas