Paulo Fernando Pinheiro Machado

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<blockquote class="jota-article__quote">“Para governar, a questão não é seguir uma teoria mais ou menos válida, mas construir com qualquer material disponível. O inevitável deve ser aceito e aproveitado.”
Napoleão Bonaparte</blockquote>
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<footer class="jota-article__quote-cite">Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), na Grécia Antiga, já observara uma contradição aparentemente insolúvel no processo de conhecimento humano. Ao passo em que toda a experiência deriva do contato dos sentidos com a realidade concreta e particular, todo o conhecimento humano se dá a partir de um lento processo de abstração racional de partes desse contato sensitivo com a realidade. O conhecimento humano, assim, é limitado, e toda a teoria já nasce desatualizada. Nós só podemos teorizar sobre o mundo de ontem, nunca sobre o de hoje.</footer>
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A partir dessa contradição, o mestre estagirita desenvolveu uma classificação do conhecimento humano em três categorias: a episteme, que equivale ao conhecimento científico; a techne, que equivale ao conhecimento técnico-manual; e, finalmente, a phronesis, que é a sabedoria prática, isto é, o conhecimento advindo da experiência vivida, que não pode ser reduzido a livros ou manuais. A phronesis, desde a Antiguidade, é representada pela virtude cardeal da Prudência, “a mãe de todas as virtudes”, segundo São Tomás de Aquino.
Uma das características da Modernidade, em especial a partir do pensamento de René Descartes (1596-1650), é a de confundir essas três categorias, que cada qual se presta a uma forma específica de conhecimento e de ação humana correspondente, subjugando-as todas sob o manto da episteme, em um movimento de redução do conhecimento humano ao conhecimento científico, que é apenas uma parte muito limitada dele.
Essa confusão entre episteme e phronesis se tornou endémica no mundo contemporâneo, em especial na área da economia. A episteme, o conhecimento científico, é sempre provisório e limitado, construído a partir de cortes abstrativos na percepção de uma realidade passada. Como a realidade está sempre em movimento, e a vida humana se dá no tempo, a episteme é sempre uma guia pouco confiável para a phronesis, a sabedoria prática de agir em um mundo em constante mutação. A ação baseada exclusivamente na episteme corre o risco de gerar consequências negativas não antecipadas, já que, como diz o velho ditado, na prática a teoria é sempre outra.
Veja a leitora, por exemplo, o debate acerca do atual processo inflacionário na economia internacional. As análises que a classificam como um fenômeno transitório, fruto da desarticulação das cadeias de fornecimento causada pelas medidas de lockdown implementadas para enfrentar a pandemia de Covid-19, são baseadas em um modelo teórico desenvolvido a partir de certas características presentes na economia internacional nos últimos 40 anos, mas que não mais se verificam no momento presente. É uma receita vencida.
O raciocínio é mais ou menos o seguinte: com o desenvolvimento do processo de globalização a partir do final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a economia internacional se caracterizou por um processo deflacionário, estabelecido em três eixos: salários baixos, bens de consumo baratos e energia também barata e abundante. A deflação nesses três eixos principais se estabeleceu graças ao processo generalizado de outsourcing, isto é, a produção de bens e serviços se descentralizou, buscando os lugares com mão-de-obra, insumos e energia mais baratos, geralmente identificados no Sudeste da Ásia. Criou-se, assim, uma simbiose econômico-financeira entre países produtores e países consumidores, em especial entre EUA e China, no fenômeno batizado por Niall Ferguson de “Chimerica”.
Em uma economia global estruturalmente deflacionária como essa, uma crise generalizada no sistema, como a que ocorreu em 2008 e que voltou a ocorrer em 2020, com a pandemia, poderia ser enfrentada por uma medida inflacionária como o quantitative easing (QE), isto é, com a criação de liquidez, ou de moeda, que, injetada artificialmente na economia impediria que ela entrasse em uma depressão mantendo o nível inflacionário artificialmente em padrões ainda muito baixos quando comparados com a série histórica.
Nesse sentido, segue o argumento, a pressão inflacionária atual não teria origem nem na quantidade de moeda em circulação – a maior da história da humanidade – nem em outros elementos estruturais da economia internacional, mas seria apenas um subproduto transitório da realocação das cadeias globais de fornecimento, ocasionada pelo fim da pandemia. O modelo estaria correto e o mesmo remédio – QE – poderia continuar a ser aplicado indefinidamente.
Repare a leitora que a realocação das cadeias globais de fornecimento representa, de fato, uma alteração estrutural na economia internacional, fazendo com que ela entre em um novo modo de operação, inédito na história da humanidade e para o qual ainda não existem modelos teóricos. Trata-se, na verdade, de um aspecto de um movimento mais profundo, de desglobalização, que já tivemos a oportunidade de analisar <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-deglobalizacao-e-o-renascimento-do-lloyd-brasileiro-08042022">aqui nesta coluna</a>. Nesse processo atual de desglobalização, as cadeias de fornecimento estão se reorganizando com base não em prioridades de eficiência econômica, mas sim de segurança e de defesa nacional.
A produção nessa nova economia global se rearticula <a href="https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-06-24/-onshoring-is-so-last-year-the-new-lingo-is-friend-shoring?leadSource=uverify%20wall">segundo a lógica do onshoring e do friend-shoring</a>, isto é, segundo uma lógica de reorganização das economias nacionais segundo um processo de renacionalização das cadeias produtivas ou, na melhor das hipóteses, de realocação de partes delas para países considerados amigos. Nota-se, assim, uma tendência de abandono do offshoring e da terceirização de parte da produção para outros países, o que era a verdadeira essência do processo de globalização, que seguia uma rationale de eficiência econômica. Trata-se do fim da era de mão-de-obra, insumos e energia baratos que marcou a economia global nas últimas quatro décadas. Ou seja, adentramos em uma nova era estruturalmente inflacionária, na qual o receituário antigo não é apenas inoperante como contraproducente mesmo.
O maior erro que políticos e tomadores de decisão podem cometer nesta nova economia global é o de agir com base em modelos teóricos desenvolvidos em outras épocas, para outros mundos. A humanidade já está em uma era totalmente nova, na qual o único conhecimento possível para singrar por essas águas nunca dantes navegadas é o da phronesis, da prudência, a sabedoria prática oriunda da escola da vida. Tudo o mais não passa de perigosa abstração. An nescis, mi fili, quantilla prudentia mundus regatur?<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “Você não sabe, meu filho, com quão pouca sabedoria o mundo é governado?”

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JOTA

A falta de modelos teóricos para operar em um mundo totalmente novo

O maior erro que tomadores de decisão podem cometer na nova economia global

A falta de modelos teóricos para operar em um mundo totalmente novo