Análise

O legado da pandemia para a política criminal contemporânea

Covid-19 e os crimes previstos no CP colocam em evidência a feição do direito penal voltado à defesa de direitos fundamentais

Crédito: Pixabay

A força modificativa de períodos de exceção como o em que vivemos atualmente, naturalmente, produz consequências no direito e no sistema de justiça. É nesse quadro de excepcionalidade que vale refletir como a política criminal é atingida pelo momento.

Vislumbramos que a epidemia do Corona vírus produz, pelo menos, três efeitos imediatos de ordem político-criminal: na sua relação com a tecnologia; na reafirmação de um direito penal-administrativo e na necessidade de compreender o direito penal como instância de proteção coletiva.

Uma política-criminal receptiva à tecnologia

A necessidade de distanciamento entre as pessoas como medida capaz de impedir o colapso do sistema de saúde fez com que os atos judiciais necessários para o julgamento dos processos criminais fossem suspensos e, depois de verificada a incerteza na normalização desse quadro, resultou na adoção de soluções tecnológicas para tanto. O incentivo derradeiro de atos judiciais por meio de teleaudiência ou videoconferência foi dado pelo CNJ[1], que permitiu a realização desses atos de forma remota e à distância.

Nota-se, neste ponto, um esvaziamento da resistência a essa prática de parte da doutrina brasileira[2] que pretendia, inclusive, uma proibição legal desta espécie de ato, porque pretensamente distanciador do juiz e cidadão. A pretensão, que estava prevista no § 1º do art. 3º-B do CPP, introduzido pela Lei 13.964/2019, foi vetada e produziu o efeito contrário, conforme entendimento esposado pelo Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), órgão do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos estipulada pelo Enunciado 32, que dispõe: “Em razão do veto presidencial ao §1º do art. 3º-B (que proibia a realização do ato por videoconferência), nos casos em que se faça inviável a realização presencial do ato (devidamente fundamentada) faculta-se o uso de meios tecnológicos.

Não há mesmo motivos para essa resistência. Além de já haver previsão legal da videoconferência no CPP (art. 185 e 222), a pandemia serviu para dar destaque aos seus ganhos operacionais: além de evitar o contato e o contágio entre pessoas pelo Covid-19, a medida serve para a economia de recursos.

Ademais, há outro impacto significativo na instrução processual: a realização de audiências de instrução à distância por meio da videoconferência revela a conveniência de superação das chamadas cartas precatórias, destinadas ao cumprimento destes atos por outros juízes situados em outras cidades, presencialmente, mediante a correspondência de documentos escritos entre o juiz da causa e o juiz deprecado (aquele que cumprirá o ato).

A oitiva à distância por vídeo, além de não proibida[3], é menos morosa, mais barata[4] e também proporciona sua realização pelo juiz da causa, o que prestigia ainda mais a identidade física do juiz e a imediatidade da prova colhida (CPP, art. 299), o que melhora sua valoração na decisão final[5].

Outros impactos poderiam ser apontados como mudanças tecnológicas produzidas pela epidemia no sistema de justiça criminal como a ordinarização do home office (trabalho à distância), a virtualização das ordens judiciais, a massificação do processo eletrônico, a automação dos fluxos processuais, a conectividade entre instituições e jurisdicionados e os marketplaces jurídicos, principalmente na advocacia privada.

Em outro polo, porém, a tecnologia também traz consigo novas oportunidades para práticas criminosas, sobretudo em razão do aumento de atividades comerciais realizadas pela internet[6]. Golpes como da taxa extra, em que entregadores de produtos adquiridos pela internet cobram taxas extras pela entrega do produto e fraudam o equipamento que realiza a operação bancária de pagamento, ou ainda, vendas de produtos em sites de empresas fantasmas tiveram aumento significativo nesse período.

Neste ponto, parece restar confirmado um traço característico do criminoso atual: o cometimento dos ilícitos que proporcionam vantagens econômicas decorre do aumento de uma oportunidade de ganho, como apregoa a teoria criminológica da escolha racional. Para esta escola: “Os criminosos são sujeitos racionais, os quais, em sua atuação delitiva, obedecem a considerações de eficiência, calculando os custos e as vantagens que cada ação lhes proporciona.”[7].

Este oportunismo, que reclama uma resposta penal recrudescida, enseja a aplicação da causa agravante de pena prevista no art. 61, II, “j”, do nosso Código Penal (ter cometido o crime em ocasião de calamidade pública), dispositivo quase imperceptível que deve ser reavivado neste quadro, notadamente para fazer frente ao infeliz e lamentável aumento da violência doméstica contra a mulher e crimes contra a licitação.

Os noticiários atuais demonstram que, embora destinados à proteção de bens jurídicos completamente diferentes entre si, o número de investigações destes dois tipos de delitos aumentou vertiginosamente[8] [9]. É o aumento de oportunidade de cometimento destes delitos que explica suas escaladas, seja m em razão da maior disponibilidade de tempo das mulheres em suas casas à mercê de agressores, ante a necessidade de cumprir o isolamento e a quarentena, seja aumento dos casos de dispensa de licitação autorizado e alargado pela lei 13.979/2020 (art. 4º).

Aliás, o aumento de casos deste segundo delito (dispensa indevida de licitação) serve para a segunda grande observação que a epidemia evidencia junto a política criminal contemporânea: a administrativização do direito penal.

Administrativização do direito penal[10]

Não é de hoje que o direito penal se serve de complementação normativa para definição de vários elementos normativos de diversos tipos penais. Mas inegavelmente, a epidemia do Covid-19 evidencia bem essa prática.

O art. 4º da Lei nº 13.979/2020, com Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020, prevê uma nova hipótese de dispensa de licitação temporária, para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do corona vírus, aplicável apenas enquanto perdurar. Esse foi o motivo de aumento de investigações destes crimes no Brasil, o que revela uma inescrupulosa e persistente maneira de agir de parte dos gestores e empresários brasileiros e reafirma a necessidade de funcionamento escorreito de inúmeras instâncias de controle e da lei de licitações no Brasil.

Mas o exame do art. 89 da Lei de Licitações revela que seu cometimento pode dar-se mediante o descumprimento das formalidades pertinentes à dispensa ou inexibilidade, muitas delas definidas em atos normativos complementares de direito administrativo.

O mesmo ocorre com os principais delitos ligados à crise da pandemia do Covid-19, previstos nos arts. 267 e 268, ambos do CP. Os conceitos de “germes patogênicos” e “determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” são dados por normas infralegais, emitidas por autoridades sanitárias específicas.

Como nunca, o direito penal moderno vale-se de complementos administrativos para definir condutas típicas. Normas penais em branco, conceitos jurídicos indeterminados e elementos normativos do tipo são, diuturnamente, inseridos nos tipos penais modernos por variados motivos, bastando anotar, dentre tantos, a incapacidade técnica de definição dos limites dos riscos de determinadas condutas incriminadas e a crise de consenso mínimo do parlamento atual, causa de leis redigidas mediante concessões políticas. Assim, a pretensão clássica de que os tipos penais se ressentem de uma descrição cerrada, suficientemente clara para indicar qual é a conduta proscrita, é relativizada em nome da dinâmica de comportamentos nocivos que o mundo moderno freneticamente é capaz de criar.

Mas porquanto a administrativização do direito penal seja uma prática quase irreversível e vise a bons propósitos, ela traz para o direito penal os mesmos vícios de descrédito que assolam, em alguma medida, alguns serviços estatais, sentimento reflexo da crise na política que assola vários países.

No caso do Covid-19 a questão se dramatiza uma vez que a competência para cuidar da saúde pública é concorrente entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme prevê o art. 23, II, da CF, situação recém declarado na ADI n.º 6391. Isso significa que a edição de atos versando políticas sanitaristas (qualquer deles) pode servir de hipótese normativa para a caracterização do crime do art. 268 do Código Penal.  Ocorre que, a crença de que esses atos buscam unicamente atender ao interesse público, mesmo devendo ser pautados exclusivamente por decisões técnicas de setores sanitaristas e epidemiológicos, supostamente indene à ingerências político-ideológicas, resta contaminada pela desconfiança de que não são corretos e adequados.

A crise atual de confiança, fomentada também pela abertura estrondosa de opiniões pelas mídias sociais, atinge qualquer decisão ou ato, ainda que estritamente técnico-científico. Nem atos médicos, químicos ou biológicos escapam desse fenômeno.

Se de um lado a administrativização do direito penal permitiu uma maleabilidade necessária ao direito penal moderno, trouxe consigo o espiral da desconfiança de que ele (o direito penal) pode ser instrumento de decisões permeadas por interesses escusos, distantes do genuíno interesse público primário, sintetizados por Luis Roberto Barroso como a razão de ser do Estado e que o determina a promover justiça, segurança e bem-estar social[11].

Afora essa razão, as medidas de restrição individual impostas pela epidemia parecem evidenciar que o direito penal também se presta a defesa de direitos fundamentais de terceira geração – como a saúde pública.

Proteção de direitos difusos pelo direito penal

Restringir a circulação de pessoas durante uma epidemia a fim de evitar contaminação em escala descontrolada é, inegavelmente, uma medida drástica e que somente deve ser tomada quando produzir resultados protetivos qualitativamente superiores ao sacrifício que ela representa à autonomia individual.

Não é uma operação simples porque não se sacrificam direitos individuais com uma simples coletivização do interesse contraposto, sob pena de artificializarmos o conflito e sempre predeterminarmos automaticamente seu julgamento para um lado da balança. Uma decisão desta espécie deve ser pautada por índices jurimétricos e por uma política-criminal que conte com algum respaldo científico, cultural e comunitário, o que, como acima citado, em tempos de administrativização do direito penal, tem sempre um déficit de credibilidade.

De todo modo, após a assunção pelo Estado do papel de coordenador de tantas funções diferentes, muitas promocionais e protetivas, verifica-se uma movimentação na criminalização de condutas que atentem contra direitos difusos e coletivos, titularizados por pessoas indeterminadas.

Em verdade, como bem explica Claus Roxin, a função promocional do Estado está umbilicalmente ligada a necessidade de garantir prestações públicas para a existência digna do cidadão, o que legitima, vez por outra, a utilização do Direito Penal como apoio para essa finalidade: “No Estado moderno, junto a esta proteção de bens jurídicos previamente dados, surge a necessidade de assegurar, se necessário através dos meios do direito penal, o cumprimento das prestações de caráter público de que depende o indivíduo no quadro da assistência social por parte do Estado.

Com esta dupla função, o direito penal realiza uma das mais importantes das numerosas tarefas do Estado, na medida em que apenas a proteção dos bens jurídico constitutivos da sociedade e a garantia de prestações públicas necessárias para a existência possibilitam ao cidadão o livre desenvolvimento da sua personalidade, que a nossa Constituição considera como pressuposto de uma condição digna[12]”.

É certo que o capítulo em que se inserem os tipos penais dos artigos 267 e 268 do CP  – dos crimes contra a saúde pública – data da redação original do Código Penal, o que revela que há tempo a defesa de direitos coletivos é feita pelo direito penal. Na verdade, esse bem jurídico é o maior responsável pelo encarceramento brasileiro atual já que o tráfico de drogas, que protege a saúde pública, é o crime que enseja o maior número de prisões no país.

Outros tantos delitos novos foram editados com esta feição, dos quais podemos citar os crimes de trânsito, meio ambiente, de organização criminosa, lavagem de capitais, etc., e que partem desta nova crença de função do direito penal.

Como sustentamos em outra oportunidade: “Segundo Baratta, esse novo modelo de Estado (promocional) deverá dar a resposta para as necessidades de segurança de todos os direitos, inclusive de ordem prestacional (direitos sociais, econômicos e culturais), e não somente daqueles direitos chamados de prestação de proteção, em particular contra agressões de natureza delitiva, praticada por determinadas pessoas. A partir desse novo ponto de vista, identifica-se o dever de o Estado tomar todas as providências necessárias para a realização ou concretização dos direitos fundamentais.

Essa falta de compreensão do papel do Estado moderno explica porque o legislador criminalizou condutas de agentes públicos que indevidamente restringem direitos individuais, como a prisão indevida de alguém, mas deixa de exercer o mesmo controle equivalente, inclusive com uso do direito penal, contra os atos que violam direitos de terceira dimensão, como a soltura indevida de alguém. Ambos comportamentos são potencialmente nocivos aos direitos fundamentais, mas a nova Lei de Abuso, presa à uma percepção ultrapassada de proteção monocular individual, não cuida desse duplo viés protetivo do Estado contemporâneo.[13]

Seja como for, a epidemia do Covid-19 e os crimes previstos nos arts. 267 e 268 do CP colocam em evidência a feição do direito penal voltado à defesa de direitos fundamentais de 3ª geração, percepção protetiva um tanto quanto prejudicada em razão do predomínio de uma concepção exclusivamente individualista do direito penal e que se mostra ultrapassada em várias perspectivas, sobretudo no Brasil.

Conclusão

Embora em uma perspectiva geral a pandemia tenha revelado um indesejável estado de conflito entre os saberes científicos com a política governamental, o que dificulta identificar qual a marca que ela deixará na consciência pública, ao menos podemos percebe algumas novas conformações de ordem político-criminal. De qualquer modo, resta-nos aguardar o desfecho deste momento para detectarmos outras modificações e adaptações necessárias para o desenvolvimento do direito enquanto coordenador do convívio social.

—————————————-

[1] Resoluções 313 e 314/2020. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/04/Resolu%C3%A7%C3%A3o-n%C2%BA-314.pdf. Acesso em 21 mai 2020.

[2] Por todos, DOTTI, René Ariel. O interrogatório a distância: um novo tipo de cerimônia degradante. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_134/r134-23.PDF>. Acesso em: 21

mai. 2020.

[3] Importa destacar que as previsões normativas sobre a realização de audiência presenciais de interrogatórios de acusados em geral, como art. 9º. §3º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o art. 5º. §5º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, exigem a presença do réu perante um juiz de direito, mas não necessariamente sua presença física. A obrigação legal afigura-se atendida com a realização do ato virtual porque compatível com a contemporaneidade, atualidade e simultaneidade pretendidas entre a detenção e a oitiva em juízo, objetivo teleológico dessas normas.

[4] Afinal, economiza recursos necessários para o transporte de presos detidos em presídios distantes do fórum, evita de fugas e resgate de presos no transporte com escolta policial no trajeto até o fórum e permite o destacamento de policiais em suas funções primordiais de patrulhamento ostensivo.

[5] Ao contrário do sustentam os opositores das audiências virtuais, há um ganho cognitivo porque o registro do ato permite que o juiz veja e reveja as gravações audiovisuais, analisando inúmeras vezes, detalhadamente, as linguagens verbais ou não verbais expressadas no depoimento.

[6] “De fevereiro para março, quando começou a quarentena, foi registrado aumento de 44% em ataques de phishing direcionados ao segmento, segundo a Federação Brasileira de Bancos (Febraban)”. Notícia do boletim do CAOP do Consumidor do Ministério Público do Paraná de 03/05/2020. (Golpes financeiros crescem durante a quarentena. Disponível em http://www.consumidor.mppr.mp.br/2020/05/472/Golpes-financeiros-crescem-durante-a-quarentena.html. Acesso em 21 de mai. 2020).

[7] SILVA SÁNCHEZ, Jésus-María. Eficiência e direito penal. Traduzido por Mauricio Antonio Ribeiro. Barueri/SP: Manole, 2004. Estudos de Direito Penal. v. 11, p. 11.

[8] Dados do Centro de Apoio Criminal e Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo apontam para crescimento de 30% nos casos em um mês. Disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/noticias/noticia?id_noticia=22511423&id_grupo=118. Acesso em 21 mai. 2020.

[9] Compras emergenciais na pandemia são investigadas em 11 estados e no DF: https://www.metropoles.com/brasil/policia-br/compras-emergenciais-na-pandemia-sao-investigadas-em-11-estados-e-no-df. Acesso em 21 mai. 2020.

[10] A expressão administrativização do direito penal é polissêmica e pode expressar diferentes ideias. Neste texto, como será esclarecido, procura-se expressar o emprego de normas administrativas, muitas delas infralegais, para compor o sentido de algumas normas penais. Outra acepção da locução é dada pelo professor Silva Sanches para quem o direito penal das sociedades pós-industriais assume, em ampla medida, a forma de raciocínio tradicionalmente própria do administrativo e por isso se converte, inclusive, em um direito de gestão ordinária de problemas sociais (SILVA SÁNCHEZ, J-M. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, 2ª ed., Madrid, 2001, p. 121).

[11] BARROSO, Luis Roberto. Prefacio à obra Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo o principio de supremacia do interesse público. 2ª tiragem. Editora Lúmen Júris. Rio de Janeiro, 2007. p. 13-14.

[12]  ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Trad. Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet; Maria Fernanda Palma; Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega 1998, p. 28.

[13] SOUZA, Renee do Ó. Comentários a Nova Lei de Abuso de Autoridade. Salvador, juspodvm. 2020, p. 32/33.