Leonardo e Silva de Almendra Freitas

Até onde a vista alcança, jamais foi posto em questão o clássico e categórico diagnóstico do grande José Carlos Barbosa Moreira quanto à “prioridade lógica” do juízo de admissibilidade recursal, de cuja solução “depende necessariamente a passagem ou não ao exame de mérito”, dado que “de uma postulação inadmissível não há como nem porque investigar o fundamento”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Assim, um simples silogismo bastaria para atribuir colorido meramente retórico à pergunta-título, inclusive no tocante à repercussão geral da questão constitucional debatida, afinal, como o ministro Luiz Fux tipificou expressamente na célebre ARE 663.637 AgR-QO, trata-se de “novo requisito de admissibilidade”, o que encontra correspondência na própria literalidade da sua previsão constitucional (art. 102, §3º.) e da respectiva disciplina legal (p. ex., art. 543-A, CPC/1973, e art. 1.035, §1º., CPC/2015).
Na verdade, a única disputa digna de nota, a esse propósito, restringe-se ao momento da sua análise, isto é, se ela deve se dar antes ou depois da verificação das demais varáveis afetas ao juízo de admissibilidade.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Certo, o próprio Barbosa Moreira concede a possibilidade de um juízo (positivo) de admissibilidade implícito quando seja enfrentado o mérito recursal, mas parece evidente que a exceção aberta pelo saudoso mestre não contemplava 2 (duas) notáveis particularidades do instituto em foco, a saber: a exigência de fundamentação específica e expressa da sua análise (pressuposta, p. ex., pelo art. 1.035, §11, CPC/2015) e a competência privativa do Plenário do STF para tal deliberação.
Mas, na prática, o estado das coisas está um tanto desalinhado da teoria: uma rápida consulta revela que é rotineiro o julgamento monocrático do mérito de recursos extraordinários – seja para lhes dar<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, seja para lhes negar provimento<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> – sem a indicação de eventual leading case com o “selo” da repercussão geral nem, naturalmente, a manifestação do(a) relator(a) acerca da (in)existência do requisito.
<blockquote class="jota-article__eye">Embora mais raros, também há julgamentos colegiados incursos na mesma “omissão”, merecendo destaque recente assentada que envolvia tema aparentemente inédito<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.</blockquote>
O denominador comum de todos esses casos parece estar na existência de “jurisprudência dominante” acerca da matéria, circunstância que, num primeiro exame, os colocaria dentro do raio de aplicação da seguinte disposição do RISTF:
“Art. 323. (...) §2º. Tal procedimento não terá lugar, quando o recurso versar questão cuja repercussão já houver sido reconhecida pelo Tribunal, ou quando impugnar decisão contrária a súmula ou a jurisprudência dominante, casos em que se presume a existência de repercussão geral”.
Sua redação corresponde ipse litteris à do antigo §1º., introduzido pela Emenda Regimental 21/2007, o qual foi, assim, apenas reposicionado pela Emenda 42/2010. No interregno entre ambas, o Plenário dedicou-se a 2 (dois) leading cases que iluminam formidavelmente a verdadeira ratio do enunciado, reforçando a “desconfiança” com o atual estado de coisas.
O primeiro é o RE 563.965-RG (DJe 17/04/2008), no qual foi vencida a proposta da min. Cármen Lúcia para, através de interpretação a contrario sensu do dispositivo focalizado e do art. 543-A, §3º, CPC/1973 (= art. 1.035, §3º., I, CPC/2015), assentar a presunção de falta de repercussão geral quando houvesse sintonia entre o acórdão e a jurisprudência dominante do STF.
Prevaleceu, na ocasião, a antítese da min. Ellen Gracie, segundo a qual “a existência de julgados em outros processos, antes de afastar a repercussão geral, a afirma, indicando que se trata de matéria que ultrapassa os interesses subjetivos da causa”.
O segundo é a RE 582.650-QO (DJe 23/10/2008), cuja própria ementa estampa que se “[aplica], plenamente, o regime da repercussão geral às questões constitucionais já decididas pelo Supremo Tribunal Federal, cujos julgados sucessivos ensejaram a formação de súmula ou de jurisprudência dominante”.
Salvo melhor juízo, tais julgados são conclusivos quanto a não estar dispensada a análise do requisito em foco – ou sua certificação formal – mesmo na específica situação contemplada pela literalidade do atual art. 323, §2º., RISTF, sendo expressiva, a esse propósito, a ponderação final da min. Ellen Gracie no primeiro precedente acerca da possibilidade de “os órgãos de origem apli[carem] indistintamente os efeitos da repercussão geral nos casos em que há mera presunção legal, com os riscos da posterior modificação do entendimento neste Corte”.
Realmente, outra interpretação parece estar desautorizada pelo art. 323-A, RISTF, que versa especificamente sobre a reafirmação de jurisprudência sob o rito da repercussão geral, hipótese que se converteria em non sense se o requisito estivesse a priori descaracterizado ou, ainda, se o mérito recursal pudesse ser liquidado monocraticamente<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
E o ponto não poderia ser renegado como um apelo vazio à ortodoxia processual, tendo, ao contrário, inegáveis repercussões práticas, como, p. ex., pré-excluir o aprofundamento de discussões com traços marcantemente casuísticos – ou seja, uma situação sem repercussão geral –, como a posta no interessante RE 964.139 ED-AgR (DJe  23/03/2018), cuja possível transcendência não foi aferida nem pelo voto condutor nem pelo vencido. Muito provavelmente, o desfecho teria sido outro se o relator não tivesse optado pelo julgamento monocrático da espécie.
Mas, sem dúvida, mais importantes são suas implicações sistêmicas, sendo sintomática a prolação, num curto espaço de tempo, de decisões monocráticas em sentidos diametralmente opostos (RE 1.258.477, min. Rosa Weber, DJe 20/03/2020; e ARE 1.226.027, min. Luiz Fux, DJe 21/05/2020), o que dificilmente teria ocorrido se existisse manifestação conclusiva e vinculante do Plenário sobre o tema – como, aliás, entendeu-se necessário há alguns anos<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, mas ainda se acha pendente.
Esses singelos exemplos parecem suficientemente eloquentes quanto a conveniência da reaproximação entre a teoria e a prática. Certamente, o tão declamado “sistema de precedentes” – e, no fim do dia, o próprio STF – só teria(m) a ganhar com isso.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, 7ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, pp. 258-262.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Exemplificativamente: RE 1.300.433, rel. min. Dias Toffoli, DJe 18/12/2020; RE 1.294.530, rel. min. Edson Fachin, DJe 18/12/2020; RE 1.301.385, rel. min. Roberto Barroso, DJe 18/12/2020; RE 1.295.927, rel. min. Nunes Marques, DJe 15/12/2020; RE 1.298.996, rel. min. Cármen Lúcia, DJe 09/12/2020; RE 1.297.760, rel. min. Alexandre de Moraes, DJe 03/12/2020; RE 1.292.578, rel. min. Marco Aurélio, DJe 12/11/2020; RE 1.295.933, rel. min. Gilmar Mendes, DJe 06/11/2020; RE 1.293.735, rel. min. Rosa Weber, DJe 05/11/2020; e RE 1.294.199, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe 05/11/2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Exemplificativamente: RE 1.298.070, rel. min. Roberto Barroso, DJe 08/01/2021; RE 1.293.327, rel. min. Edson Fachin, DJe 14/12/2020; RE 1.301.253, rel. min. Nunes Marques, DJe 18/12/2020; RE 1.296.405, rel. min. Cármen Lúcia, DJe 17/11/2020; RE 1.233.378, rel. min. Gilmar Mendes, DJe 04/10/2019; RE 1.040.520, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe 02/08/2018; e RE 1.039.055, rel. min. Rosa Weber, DJe 11/10/2017.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> RE 1.259.614, rel. min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 05/06/2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> É particularmente reveladora a descrição feita pela min. Ellen Gracie, no segundo precedente, do procedimento-padrão adotado para casos envolvendo “matérias já pacificadas”, que eram, então, “tratados monocraticamente, exatamente porque já há jurisprudência consolidada”, quadro que, ao que tudo indica, não se alterou profundamente mesmo já passados 12 (doze) anos.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> RE 592.152 AgR, rel. p/ Acórdão rmn. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJe 17/05/2017.

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JOTA

O distanciamento entre a teoria e a prática no tocante à repercussão geral

O juízo de mérito do recurso extraordinário pressupõe sua admissibilidade?

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