João Carlos Cochlar

O autofalante do Metrô Rio anuncia: “Atenção, apresentações artísticas não são mais permitidas nos vagões de acordo com a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro”. O Judiciário, afinal, poderia proibi-las?
A Assembleia Legislativa do Rio aprovou, em 2018, lei que garantiu apresentações culturais nos metrôs e barcas. Regra específica permitiu performances artísticas no interior de vagões e embarcações mediante regulamentação do governador do estado.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Foi produto de amplo debate na sociedade civil. Na votação, ficaram vencidos apenas os ex-deputados Carlos Osório e Flávio Bolsonaro.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Exatamente por conta dessa regra.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Flávio Bolsonaro não se deu por vencido e levou a questão ao Judiciário. Pediu que essa regra fosse declarada inconstitucional. Argumentou-se que feria os “princípios” da proporcionalidade e razoabilidade, o sossego público, a garantia da segurança e bem-estar dos passageiros e o descabimento da compulsoriedade de se assistir às apresentações no vagão ou barcas em movimento.
Todos esses argumentos, ainda que legítimos, colidem com o direito à livre manifestação artística. Tenso debate. Embora a lei previsse regulamentação do Executivo estadual, o então governador Wilson Witzel apoiou a tese da inconstitucionalidade. Apresentou parecer dizendo que as apresentações prejudicam a circulação e geram risco à integridade física dos passageiros e tripulantes. O Ministério Público opinou no mesmo sentido.
Flávio Bolsonaro não venceu na Assembleia Legislativa, mas ganhou nos tribunais no ano seguinte: 14 votos a 1 pela inconstitucionalidade.
<blockquote class="jota-article__eye">Entretanto, parece, neste caso, que o Judiciário não poderia fazê-lo por dois motivos. O primeiro tem a ver com a livre escolha política.</blockquote>
O Rio não segue o mesmo exemplo de outras grandes cidades. Metrópoles como Paris, Berlim e Nova Iorque<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> já revelaram e fomentam diversos talentos nos corredores e espaços prefixados das estações. Basta lembrarmos dos ícones Tracy Chapman e Jean-Michel Basquiat. Nenhuma delas, porém, permite apresentações nos vagões. Em Paris, por exemplo, é necessário um passe que só se obtém mediante disputadíssimo concurso para tocar nesses espaços. É uma escolha de lá.
O legislador fluminense fez escolha diferente. Cada opção busca, ao cabo, fomentar o direito à cidade.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> São legítimas. Aqui, busca-se estimular o contato com as expressões culturais e identitárias que circundam numa cidade efervescente como o Rio de Janeiro. A arte faz parte, ou deveria fazer, do cotidiano dos que frequentam os espaços públicos.
Cabe ao Poder Legislativo definir as regras. Não há direito fundamental à manifestação artística nos vagões do metrô. Mas se a lei permite, a Constituição não proíbe.
O segundo motivo tem a ver com a fundamentação das decisões em matéria constitucional. Especialmente no manuseio do chamado “princípio” da proporcionalidade e da razoabilidade, que foi a base normativa do acórdão. Discorreu-se que muitos artistas são pessoas desempregadas. Constrangem usuários a lhes dar dinheiro. Praticariam doutrinação política e ideológica.
Embora não houvesse referência empírica para essas assertivas, elas foram suficientes para sopesar o “sossego público” acima da liberdade de expressão.
Essas considerações, entretanto, são um nada constitucional. E o único voto vencido, o do desembargador Nagib Slaibi Filho, foi também o único a citar dispositivo constitucional em favor da sua fundamentação: o Estado apoiará e incentivará a valorização e a difusão de manifestações culturais.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Princípios constitucionais existem para limitar o poder. Já nos alertava o ministro Eros Grau, no julgamento da ADPF 101, o enorme risco de rebatizarmos discricionariedade judicial de ponderação entre princípios. “Os juristas – em especial os juízes – quando operam a ponderação entre princípios, fazem-no, repito, para impor seus valores, no exercício de pura discricionariedade”.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
A verdade é que sequer havia colisão de princípios constitucionais. Não existe na Constituição um direito ao sossego público, ou outro afim em igual estatura à da liberdade de expressão. A própria ideia de público guarda antagonismo com sossego. Público vem de povo, de coletividade. Envolve uma pluralidade de pensamentos e manifestações distintas que coexistem no tempo e no espaço, sobretudo urbano. É ideia convergente com a efervescência do Rio de Janeiro.
É grave que esse tipo de fundamentação ambiciona legitimar a decisão do poder que fala por último. Esse cerceamento não veio do Poder Legislativo ou do Executivo, legitimados para definir e executar as regras. Mas do Poder Judiciário, detentor da última palavra sobre a constitucionalidade das leis.
Não se gostar da lei é uma coisa. Declará-la inconstitucional é outra. A ponderação entre princípios desnatura o controle de constitucionalidade para um controle de conveniências. Corre-se risco de ir ao encontro do alerta feito por Gustavo Binenbojm em seu recente livro Liberdade Igual: “o Poder Judiciário – à exceção honrosa do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos – tem feito por merecer o título de novo censor máximo do país”.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
A cultura é responsável por definir uma identidade comum, tão fragmentada em tempos de polarização. Será tão mais forte quanto mais diversa e protegida. É fundamental para o reerguimento do Brasil pós-pandemia.
A defesa da liberdade de manifestação é a chave para garantirmos a expressão do “ser brasileiro” em todas as suas virtudes.
A última palavra cabe ao Supremo Tribunal Federal. A ALERJ já apresentou recurso extraordinário pedindo a reforma da decisão.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> É nova oportunidade para o Supremo – que derrubou a lei de imprensa, a censura prévia a biografias e o direito ao esquecimento – firmar mais um precedente que dê a tônica da positivação da liberdade de expressão no Brasil. O caso está sob cuidados do ministro Luís Roberto Barroso.
“Eu perguntei ao Deus do céu, uai, por que tamanha judiação?”. Foi este grande hino brasileiro que ouvi, por coincidência, na voz de um acordeonista que tocava no vagão ao meu lado. Mudou o dia para melhor.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Lei Estadual nº 8.120/2018.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ALERJ. Ordem do Dia: Projeto de Lei 2958-A/2014. Sessão ordinária de 4 set. 2018.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Sobre o metro de Nova Iorque pós-pandemia, cf. KILGANNON, Corey. After a ‘Terrible Silence,’ Many of N.Y.C.’s Subway Musicians Are Back. New York Times. 4 jun. 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> A respeito do tema, cf. REIA, Jhessica. Os palcos efêmeros da cidade: Táticas, ilegalismos e regulação da arte de rua em Montreal e no Rio de Janeiro. Tese de doutorado. UFRJ: Rio de Janeiro, 2017.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Art. 215 da Constituição da República.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> GRAU, Eros Roberto. Sobre prestação jurisdictional – direito penal. São Paulo: Ed. Malheiros, 2010, p. 42.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BINENBOJM, Gustavo. Liberdade Igual: o que é e por que importa?. Rio de Janeiro: Ed. História Real, 2020, p. 19.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> STF. RE 1.295.018/RJ. rel. min. Luís Roberto Barroso.

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JOTA

Decisão do TJ/RJ declarou inconstitucional regra que permitia performances artísticas em vagões e embarcações

O Judiciário pode proibir apresentações artísticas em concessões públicas?

Decisão do TJ/RJ declarou inconstitucional regra que permitia performances artísticas em vagões e embarcações