Lucas Carneiro

As formas de operacionalizar os pagamentos que realizamos todos os dias têm evoluído muito rapidamente e isso não é novidade para ninguém. Em pouco tempo, deixamos de ser um país que praticamente transacionava apenas com papel-moeda para ingressar em uma realidade em que convivemos com cartões de crédito, <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pix">Pix</a>, carteiras digitais (wallets), pagamentos por aproximação (contactless), criptomoedas, tap on phone, link de pagamento, pagamentos internacionais etc. Estamos vivendo uma revolução com impactos em toda a sociedade.
Prova disso é que, nos últimos anos, houve uma considerável bancarização da população brasileira, tendo ocorrido um crescimento ainda maior desse fenômeno durante os períodos mais críticos da pandemia<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Também é possível verificar o aumento do uso de cartões pelas famílias brasileiras (a proporção dentro do gasto familiar passou de 32,6% em 2018 para 54,9% em 2021) e o crescimento vertiginoso da adesão aos pagamentos “digitais”, considerando que, em menos de três anos, os pagamentos por aproximação saltaram de zero para cerca de R$ 90 bilhões e os gastos não presenciais com cartões foram de cerca de R$ 70 bilhões para mais de R$ 160 bilhões<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Contudo, esse ainda não é o fim da história. A tendência é que as inovações continuem a acontecer, sobretudo em razão dos avanços tecnológicos promovidos pelo setor (especialmente em virtude das diversas <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/fintechs">fintechs</a> que surgiram e continuam a surgir) e das louváveis agendas governamentais favoráveis a essas inovações, como é o caso da Agenda BC#, conduzida pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/banco-central">Banco Central</a> do Brasil<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Apesar de essas inovações estarem trazendo enormes benefícios à sociedade, é inegável que elas também estarão envolvidas em diversas controvérsias que possivelmente serão levadas à apreciação do Judiciário. Em razão disso, é importante analisar se os órgãos judiciais estão aptos a entender e lidar com a dinâmica dos mercados relativos às inúmeras modalidades de pagamento, bem como com os diversos perfis de players envolvidos nessas operações (fintechs, instituições financeiras tradicionais, infraestruturas de mercado financeiro, sociedades de crédito direto etc.).
A título exemplificativo, uma operação de compra através de cartão de crédito conta com, no mínimo, quatro agentes em seu fluxo: o emissor, a bandeira, a credenciadora/adquirente e o estabelecimento comercial<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Cada um desses agentes possui uma responsabilidade específica dentro do arranjo, havendo uma série de contratações únicas entre cada um deles (contrato de credenciamento, regulamento da bandeira etc.) e funções muito bem delineadas. A complexidade não se limita a esse fato, uma vez que há inúmeras outras especificidades relativas às novas tecnologias financeiras.
Sendo assim, estamos diante do risco de o Judiciário não acompanhar as evoluções das dinâmicas do setor, aplicando às disputas judiciais soluções que foram desenhadas para uma realidade completamente distinta. Por exemplo, o nosso Código Civil é de 2002, época em que o uso de cartões de crédito e de débito ainda era bastante incipiente e concentrada. Por sua vez, a Súmula 479 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que prevê que as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias, foi editada há mais de dez anos em um cenário em que fraudes e delitos tinham uma dinâmica completamente distinta.
Sendo assim, é muito importante que esse setor essencial para a economia entenda que o Judiciário precisa compreender as suas dinâmicas e que, em razão disso, é necessário que haja um esforço no sentido de transmitir conhecimento aos órgãos judiciais, aclarando dúvidas sobre as novas modalidades de pagamento e tecnologias financeiras. Não dá para evoluir em tecnologia e deixar de lado um importante agente para a continuidade desse terreno favorável à inovação.
É importante que essa iniciativa de compartilhar conhecimentos com o Judiciário parta não só dos players individuais, mas também das associações e entidades ligadas ao setor, que podem exercer um papel importante na coordenação desse esforço coletivo. Nessa agenda, o uso de tecnologias será essencial para esclarecer ao Judiciário as dinâmicas relativas às modalidades de pagamento e às tecnologias financeiras em geral.
A adoção dessas medidas será crucial para evitar que esse segmento e o Judiciário caminhem em ritmos e sentidos diferentes (ou até opostos), o que poderia acabar se tornando um fator desfavorável ao desenvolvimento do setor, afetando os inúmeros impactos positivos que ele tem trazido à sociedade.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BANCO CENTRAL DO BRASIL. Estatísticas de Relacionamentos, CPFs e CNPJs Envolvidos. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/ccsestatisticas. Acesso em 18 nov. 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> INSTITUTO PROPAGUE. Mercado de pagamento em dados – Balanço 2021. Disponível em: https://institutopropague.org/wp-content/uploads/2022/04/Mercado-de-pagamentos-em-dados-Edicao-3-.pdf. Acesso em 18 nov. 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BANCO CENTRAL DO BRASIL. BC #. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/bchashtag. Acesso em 18 nov. 2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> RAGAZZO, Carlos. Regulação de Meios de Pagamento [livro eletrônico]. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

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JOTA

Não dá para evoluir em tecnologia e deixar de lado um importante agente na continuidade do terreno favorável à inovação

O Judiciário está preparado para lidar com as novas tecnologias financeiras?

Não dá para evoluir nas tecnologias financeiras e deixar de lado o Judiciário, agente crucial na continuidade do terreno favorável à inovação