Fernanda Leoni

* Este artigo foi o vencedor da seleção entre os textos enviados por alunos do Curso Direito e Desenvolvimento, promovido pela startup ELLIF (Empreendedorismo, Liderança, Inovação e Futuro) e pelo Centro de Lideranças Públicas (CLP), com apoio do JOTA.
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A literatura de <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/politicas-publicas-transporte-on-demand-mobilidade-urbana-16072021">políticas públicas</a> classifica como atores, também denominado stakeholders, todos aqueles “indivíduos, grupos ou organizações que desempenham um papel na arena política” (SECCHI, 2013, p. 99), independentemente de sua posição ou interesse legítimo, mas levando em consideração os benefícios ou prejuízos que recebem em decorrência da tomada de uma decisão.
A atual complexidade do tema traz à discussão um sem número de possíveis atores a depender do tipo de política pública em debate, sendo citados com mais frequência os poderes instituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), os órgãos autônomos a eles correlacionados ou não (Ministério Público, Tribunais de Contas), as organizações da sociedade civil, as entidades e organismos internacionais, os burocratas, os grupos de interesse, entre outros.
Especialmente sobre a atividade desempenhada pelo Poder Judiciário, mesmo que recorrente sua caracterização como relevante ator nas mais diversas categorias de políticas públicas, ainda não há um posicionamento consolidado acerca da efetiva caracterização de seus atos. Esse tema, desde sempre problemático, ganha relevância na atualidade, sobretudo tomando-se em conta a extensa rede de participantes das arenas de decisão, a ampliação das atribuições do Judiciário após a Constituição Federal de 1988 e a complexidade da formulação de políticas públicas nas democracias recentes ou não consolidadas.
Sobre o assunto, é comum a abordagem do papel do Judiciário a partir da análise do fenômeno da judicialização de políticas públicas que, seguindo um movimento mundial, expandiu-se consideravelmente nos últimos anos. Nesta situação, parece-nos não haver qualquer atipicidade na função exercida pelo Judiciário, a quem cumpre exatamente o dever de adequar os casos concretos às normas legais, afastando o abuso de poder e concretizando os direitos garantidos pela Constituição Federal.
Mas a dúvida que fica é quanto à possibilidade ou não de se caracterizar o Poder Judiciário como policymaker, isto é, como efetivo implementador de políticas públicas, o que, como se sabe, é tarefa árdua e extremamente controversa na literatura atual. Não obstante a discussão acadêmica ainda não conclusiva, a realidade nos mostra que, na prática, há situações em que o Judiciário percorre todo o ciclo de políticas públicas.
Note-se que a discussão está longe de alcançar um senso comum, a exemplo do que ocorre com a própria aceitação da constitucionalidade da judicialização de políticas públicas, em que o Judiciário recebe duras críticas acerca de uma possível exorbitância dos poderes a ele atribuídos. Isso se visualiza, sobretudo, na pretensa falta de legitimidade democrática deste poder que, diferentemente dos demais poderes instituídos, não tem os seus membros indicados diretamente pelos cidadãos.
Robert A. Dahl, em artigo publicado em 1957 (2009, p. 25-43), já discutia a impossibilidade de se considerar o Judiciário como mera entidade jurídica, outorgando-lhe o caráter, hoje mais aceito, de entidade de natureza política. Neste estudo, o autor conclui pela caracterização do Judiciário – neste caso, especificamente abordando a atuação da Suprema Corte Americana – como verdadeiro implementador de políticas públicas, comprovando a sua assertiva a partir da avaliação de numerosos casos julgados.
Também se voltando à análise do papel do Judiciário no ciclo de políticas públicas, Mariana Magaldi de Souza (2010, p. 77-118) identifica quatro principais atuações deste Poder no policy cycle, a saber, o de veto player role (no exercício do controle de constitucionalidade ou adequação de normas relativas às políticas públicas), o de policy player role (quando adapta o conteúdo da norma ao caso concreto), o de referee role (nos casos em que exerce a coerção para determinar o cumprimento de determinadas normas) e o de alternative societal representative (sempre que atuar, ainda que indiretamente, como protetor do indivíduo e garantidor de direitos).
Em nosso sistema, talvez a atuação do Judiciário como veto player seja a mais comum, já que é a ele que foi concedida a função de controle das normas em face da Constituição Federal, o denominado controle de constitucionalidade. No Brasil, este controle pode ser exercido tanto de forma difusa – quando na análise de um caso concreto o Judiciário verifica a inconstitucionalidade de um ato normativo e, em decorrência disto, deixa de aplicá-lo – quanto de forma concentrada – hipótese em que o órgão legitimado (Supremo Tribunal Federal) realiza a análise abstrata da compatibilidade da lei com a Constituição.
Também é comum a sua atuação como policy player role, sempre que na interpretação judicial haja uma adequação do conteúdo da política pública aos termos da lei. Essa atuação é visualizada nas hipóteses de judicialização de políticas públicas e pode ter efeitos diversos a depender do modo como formulada a demanda – se esta adaptação se der no âmbito de uma ação de controle de constitucionalidade da política pública, a decisão decorrente terá efeitos erga omnes, alcançando a todos; já se a ação for de natureza individual e concreta, os efeitos da decisão são inter partes e apenas beneficiam as partes no processo.
Visualizado mais frequentemente nos últimos anos é o papel do Judiciário como referee role, o que também costuma ocorrer nas hipóteses de judicialização das políticas públicas. Há um crescente movimento de ativismo judicial percorrendo o Judiciário brasileiro, a exemplo do que já vinha ocorrendo em outros países, que impacta no próprio relacionamento entre os poderes instituídos, consistindo em mais um fator de complexidade na temática das políticas públicas.
Por fim, no exercício do papel de alternative social representative role, cuja definição é que mais se aproxima daquela que caracteriza um policymaker, o Judiciário funciona como uma grande arena de discussão de políticas públicas, sobretudo daquelas voltadas às desigualdades sociais, tendo atuação assemelhada a que desenvolvem as entidades da sociedade civil. Aqui, cumpre ressaltar que o fator impeditivo para aproximar de vez essa conceituação daquela que prevê o Judiciário como implementador de políticas públicas é a já citada suposta falta de legitimação democrática.
Como mencionado, a prática jurídica nos mostra que há casos em que o Judiciário acaba atuando como implementador de políticas públicas, seja quando exerce o controle (ou mais precisamente a apreciação de tutelas que demandam uma atuação pública), seja quando atua em esfera diversa da jurisdicional, mas ainda assim no desempenho de determinada atividade de interesse público.
A primeira hipótese é a discutida quando se está a tratar genericamente de judicialização de políticas públicas. Em nossa visão, quando o Judiciário aprecia demanda individual em que se requer o provimento de uma vaga em creche ou da concessão de medicamentos não há, precisamente, o exercício do controle de políticas públicas. A conclusão não será se aquela política é ou não adequada, se atende ou não a um programa de governo, se tem recursos suficientes e com aplicação condizente aos seu propósitos, mas sim se aquele demandante terá o seu requerimento atendido. Em outros termos, não há uma avaliação da política pública, em si, mas do enquadramento daquele indivíduo no rol de beneficiários.
Nesta situação, independentemente do cumprimento da decisão partir do Executivo, a implementação adveio da intervenção direta do Judiciário, que ao prover determinado pedido, alterou toda uma sistemática de atuação, na grande maioria dos casos sem nem mesmo conhecer os detalhes ou especificidades daquela política. Há, como se verifica, efetiva implementação por parte do Poder Judiciário.
A segunda hipótese é aquela em que o Judiciário, fora de sua atuação típica ou jurisdicional, perpassa por todo o ciclo de uma política pública, incluindo a etapa de implementação. É o que ocorre em casos como o Projeto Começar de Novo, que objetiva fornecer postos de trabalho e cursos de capacitação para egressos do sistema carcerário; e os mutirões penitenciários, em que os magistrados realizam revisões de prisões e inspeções em estabelecimentos prisionais. Aqui fica claro que a política é formulada, implementada e avaliada pelo próprio Judiciário, sem qualquer intervenção dos demais poderes instituídos.
Essas considerações, a par de sua brevidade, são para lançar ao debate o fato de que atribuir ao Judiciário a função de um simples ator em políticas públicas é bastante simplório e que a sua atuação como policymaker não necessariamente trará risco à democracia. Claro está, por outro lado, que por não sendo esta a sua função precípua, o Judiciário deve estar atento a questões como a disponibilidade de recursos (financeiros ou materiais) para a implementação de políticas públicas, a possibilidade de utilização de instrumentos de parceria com a iniciativa privada; a limitação de suas atribuições a determinadas áreas de atenção; a observância de uma atuação subsidiária em relação ao Executivo e ao Legislativo, entre outros fatores.
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Referências bibliográficas:
DAHL, Robert A. Tomada de decisões em uma democracia: a suprema corte como entidade formuladora de políticas nacionais. Revista de Direito Administrativo. v. 252, Rio de Janeiro: FGV, p. 25-43, 2009.
SECCHI, Leonardo, Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo: Cengage Learning, 2013.
SOUZA, Maria Magaldi. How courts engage in the policymaking process in latin américa: the different functions of the judiciary. In SCARTASCINI, Carlos, STEIN, Ernesto e TOMMASI, Mariano (Coord.). How democracy works: political institutions, actors and arenas in latin american policymaking. Cambridge: David Rockefeller Center for Latin American Studies. p. 77-118, 2010.

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JOTA

A atuação dos magistrados como policymakers não traz, necessariamente, risco à democracia

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