Tributário

O ITCM no contexto da Covid-19

Necessidade de aumento das receitas tributárias dos estados no combate à pandemia

STJ: correção monetária de rendimento em aplicação financeira é tributável
Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Diante dos crescentes gastos na área da saúde e da perda arrecadatória decorrentes da situação de calamidade pública instaurada pela pandemia da Covid-19, os Estados-membros têm se deparado com um difícil dilema de finanças públicas para gerar, o quanto antes, mais receitas: ou obter autorizações de crédito extraordinário, as quais são limitadas pela grave crise fiscal dos governos subnacionais, ou aumentar a carga tributária, a qual tem como óbice a queda vertiginosa das atividades comerciais e de prestação de serviços.

No momento atual, ambas as opções envolvem sérias dificuldades de implementação, mas a segunda ao menos abre um caminho muito pouco debatido pelos tributaristas: o aumento de alíquotas do imposto sobre transmissão causa mortis (ITCM). Essa alternativa é interessante, porque não agride o desenvolvimento econômico, tão necessário nesse difícil momento.

De acordo com a jurisprudência do STF, é constitucional a progressividade de alíquotas do ITCM[1]. O Ministro Ricardo Lewandowski defendeu o entendimento segundo o qual a progressividade, no caso de impostos reais, só poderia ser adotada se houvesse expressa previsão constitucional, e desde que não se baseasse, direta ou exclusivamente, na capacidade econômica do contribuinte[2]. Mas prevaleceu o posicionamento pela constitucionalidade da progressividade do ITCM, no sentido de que todos os impostos estão sujeitos ao princípio da capacidade contributiva, mesmo aqueles que não tenham caráter pessoal. A Suprema Corte deu prioridade ao postulado da justiça fiscal em detrimento da dicotomia entre impostos reais e pessoais.

Vale observar que é mais defensável o aumento de alíquota do ITCM, do que a elevação de alíquota do ITBI, imposto de competência municipal. Enquanto o primeiro imposto incide sobre as transmissões feitas a título gratuito, o segundo se dá a título oneroso. Ademais, o ITCM não impacta novas transações, como ocorre com o ITBI, além de se prestar à redistribuição de riqueza.

O Senado Federal, por meio da Resolução n° 9/1992, fixou em 8% a alíquota máxima do ITCM (art. 1°), permitindo a sua progressividade em função do quinhão que cada herdeiro efetivamente receber (art. 2°). Contudo, passados quase trinta anos da promulgação da Resolução e mais de sete anos do julgamento do RE 562.045/RS, dez estados não adotaram a progressividade de alíquotas (Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Roraima e São Paulo), mantendo, no geral, o valor fixo de 4%, salvo Mato Grosso do Sul (6%) e Minas Gerais (5%). O Amazonas, que vive um colapso no sistema de saúde, manteve a módica alíquota de 2%. São Paulo, que é o estado onde os contribuintes mais acumulam riqueza, também chama a atenção por sua inércia. Existe alguma justificativa para tamanha concentração de renda num momento de pandemia?

Por outro lado, algumas unidades da Federação, mesmo adotando a progressividade no ITCM, não se valeram da alíquota máxima estabelecida pelo Senado, casos do Distrito Federal (6%), Maranhão (7%), Pará (6%), Piauí (6%), Rio Grande do Norte (6%), Rio Grande do Sul (6%) e Rondônia (4%), preferindo amenizar a carga tributária para os contribuintes.

Parece evidente a resistência cultural e histórica brasileira, o que conduz a uma certa conivência entre estados e contribuintes que contribui para se perpetuar a desigualdade social. Talvez o Covid-19 seja um mote para a mudança que se faz necessária.  Com o aumento expressivo dos gastos públicos na área da saúde, se revela questionável a manutenção da atual política fiscal no âmbito do ITCM, pois a utilização da alíquota máxima de 8% pode gerar um importante aumento de receita estadual sem que haja um impacto tão negativo na economia – em comparação aos efeitos provocados por outros impostos.

Isto porque, caso se tentasse aumentar a carga tributária sobre o consumo (ICMS), os estados estariam desestimulando ainda mais a aquisição de bens e serviços e criando um imenso ônus para a população – já privada dos seus empregos, salários e rendas eventuais decorrentes dos efeitos da calamidade pública. Somando-se a isso, em razão de não terem competência tributária para exigir o imposto de renda, restaria aos estados apenas o IPVA, cuja tributação sobre o patrimônio é altamente limitada pela queda nacional na produção e venda de veículos desde o início da pandemia.

Diante das premissas descritas acima, entendemos que, na esfera estadual, uma das alternativas para a geração de receita é a edição de lei temporária (duração de dois ou três anos, por exemplo) para a majoração da alíquota máxima do ITCM até 8% por todos os Estados-membros, além de se estabelecer uma base de cálculo adequada para esta faixa de alíquota, a qual seja capaz de alcançar o patrimônio deixado pelos indivíduos mais abastados da sociedade, incluídos aqueles de classe-média alta.

Nesse último aspecto, verifica-se que, mesmo entre os governos subnacionais que adotam a progressividade do ITCM, falta racionalidade na variação de alíquota versus base de cálculo, até se alcançar o percentual máximo. Por um lado, há os estados da Bahia, do Ceará, de Goiás, da Paraíba, de Pernambuco e de Sergipe, cuja base de cálculo do imposto sobre transmissão causa mortis varia entre, aproximadamente, R$ 180.000,00 e R$ 605.000,00 para a faixa de alíquota de 8%. Por outro, há os casos do Distrito Federal, do Maranhão, do Mato Grosso, do Pará, do Piauí, do Rio Grande do Norte, do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, nos quais os valores acima de um a três milhões de reais, a depender do ente federado, serão objeto de alíquotas máximas que variam entre 6% e 8%.

Obviamente, a realidade econômica de cada governo subnacional influenciará na seleção de qual a melhor base de cálculo para as alíquotas mais elevadas. Contudo, como se percebe à primeira vista, há amplo espaço para o aumento da carga tributária do ITCM, principalmente em virtude da inexistência da progressividade de alíquotas em dez dos estados da Federação.

Por fim, merece reflexão o próprio conteúdo da Resolução n° 9/1992. Deveriam os Estados-membros, mesmo diante de uma grave situação econômica, ficar limitados à fixação de uma alíquota máxima de 8% para o ITCM? Não seria agora o momento adequado para que o Senado Federal altere, temporariamente, o limite da alíquota do ITCM para 10 ou 12%, por exemplo, permitindo que os governos estaduais aumentem a sua receita pública sem interferir na tributação sobre o consumo? A nosso ver, a resposta merece ser positiva.

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[1] STF, RE 562.045/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 27.11.13, Inf. 694.

[2] Sobre o tema, confira: ÁVILA, Márcio. Curso de Direito Tributário (2ª ed.). Rio de Janeiro: Multifoco, 2019, p. 291-295.