operações financeiras

O IOF sobre operações de crédito de pessoas não reguladas

Entre a interpretação literal e a vocação extrafiscal

IOF
Crédito: Marcello Casal/Agência Brasil

No último dia 29 de setembro, foi iniciado o julgamento virtual do RE 590.186/RS, sob o rito de repercussão geral (Tema 104), no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) decidirá a (in)constitucionalidade do art. 13 da Lei 9.779, de 19 de janeiro de 1999. A questão envolve a possibilidade de o IOF abranger operações de crédito praticadas entre pessoas não reguladas pela União.

Em essência, há um embate entre dois raciocínios diversos, os quais foram abordados pelo relator do caso, o ministro Cristiano Zanin.

O primeiro repousa na mera interpretação literal, direcionada à compreensão de cada vocábulo que compõe o art. 153, V, da Constituição. Pergunta-se, por exemplo, o que significa uma operação de crédito. Ou ainda se examina a questão de seguinte maneira: lê-se a Constituição e o Código Tributário Nacional (CTN) à procura de alguma restrição do âmbito subjetivo; não se encontra; por consequência, decide-se pela inexistência de tal limitação.

É com base nesse raciocínio que se inicia o voto do ministro Zanin, citando o julgamento da ADI 1.763-DF. Nessa decisão, ao enfrentar a (in)constitucionalidade da instituição do IOF sobre as atividades de factoring, o STF limitou-se à interpretação gramatical[1]. Embora tenha reconhecido que as empresas de factoring não sejam reguladas pela União (i.e., pelo Sistema Financeiro Nacional), o STF declarou, em junho de 2020, a constitucionalidade da referida incidência.

Nas palavras do relator, ministro Dias Toffoli, “[a] expressão contida no texto da Constituição é simplesmente ‘operações de crédito’, não havendo qualquer qualificação relativa à operação realizada por este ou por aquele tipo de pessoa”[2]. Portanto, na ADI 1.763-DF, o STF examinou a competência tributária com base no argumento de que não haveria nada na Constituição ou no CTN que restringisse a incidência do IOF apenas a operações de instituições reguladas.

Por sua vez, existe um segundo tipo de raciocínio, destacado pelo ministro Zanin como relevante e inédito, por exigir a compreensão do imposto em si (IOF). Esse raciocínio abrange estudo do contexto histórico, da competência regulatória da União e dos motivos pelos quais se mitiga os Princípios da Legalidade e da Anterioridade para o IOF. É precisamente esse o raciocínio que o Tribunal Pleno do STF terá a oportunidade de enfrentar, pela primeira vez, quanto ao IOF.

A esse respeito, o ministro Zanin apresentou dois argumentos para sustentar a constitucionalidade do IOF sobre mútuos de pessoas não reguladas. Além de afirmar que o STF já teria afastado a exclusividade da função regulatória do IOF no RE 583.712/SP (Tema 102), disse também que essa função não seria exigência para o exercício de sua competência em virtude de todos os tributos possuírem funções extrafiscais e arrecadatórias, variando-se apenas a sua preponderância.

No âmbito do RE 583.712/SP, o STF julgou a (in)constitucionalidade do IOF sobre a transmissão de ações de companhias abertas e das consequentes bonificações emitidas[3]. Conforme reconhece o ministro Zanin, em nenhum momento nesse caso, o STF enfrentou se o IOF estaria restrito ao campo regulatório da União. Pelo contrário, esse debate seria inócuo, pois é evidente que, em tal decisão, tratava-se de uma incidência com função extrafiscal, vinculada ao campo regulatório da União. Embora o ministro Zanin tenha dito que tal incidência “nada tem de caráter regulador do sistema monetário e financeiro”, na verdade, trata-se de incidência do IOF sobre a transmissão de valores mobiliários de pessoas (leia-se: companhias abertas) submetidas à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia que compõe o Sistema Financeiro Nacional.

Ora, quando o IOF foi concebido, o então ministro da Fazenda, Octávio Gouveia de Bulhões, disse que tal imposto poderia ser “recomendável” para desestimular “movimentos altistas em Bôlsa”[4]. Daí a possibilidade de o IOF incidir na transmissão de ações de companhias abertas, no âmbito do Sistema Financeiro Nacional. A delimitação da competência tributária do IOF está vinculada ao campo regulatório da União, o qual é mais abrangente do que as instituições financeiras.

No campo das operações de crédito, fala-se em operações praticadas por instituições financeiras, sujeitas ao Banco Central. No campo das operações de títulos, abrange-se operações realizadas por pessoas submetidas à CVM. Nota-se: tanto o BC quanto a CVM são agentes supervisores do Conselho Monetário Nacional (CMN), todos vinculados ao Sistema Financeiro Nacional, regulado pela União. Assim, o RE 583.712/SP é condizente com a incidência do IOF no bojo do campo regulatório da União.

Já no que diz respeito à afirmação de que todos os tributos teriam funções extrafiscais e arrecadatórias, não há menor dúvida disso. Essa afirmação, porém, não leva à conclusão de que o campo de competência do IOF possa abranger operações fora da seara regulatória da União. A premissa da qual parte o ministro não conduz ao resultado que ele chegou.

É evidente que toda tributação implica alguma intervenção econômica (ao que se chama de função extrafiscal). Daí a doutrina, unanimemente, reconhecer que todo tributo tem função arrecadatória. Contudo, alguns impostos como o IOF foram vocacionados a veicular normas tributárias indutoras. Nesse caso, o exercício de sua competência é subordinado ao campo regulatório. Por isso, o constituinte dotou o Executivo da possibilidade de, dentro de certos limites, interferir no processo econômico (Estado-agente).

Não se deve confundir função extrafiscal com vocação extrafiscal. Enquanto a primeira demarca qualquer efeito indutor gerado por uma norma tributária, a vocação extrafiscal revela uma exigência constitucional. Trata-se, no caso da vocação extrafiscal, da própria delimitação da competência tributária.

No caso do IOF, essa vocação é clara, seja historicamente, seja sob a perspectiva das competências legislativa/regulatória, seja ainda por conta das mitigações aos Princípios da Anterioriedade e da Legalidade.

Historicamente, o IOF foi concebido para atuar como um instrumento de política extrafiscal, qual seja, dotar o Executivo federal de um meio para intervir em determinados mercados, como o monetário, de crédito, câmbio, seguros e transferências de valores.

Diferentemente do seu antecessor (Imposto do Sêlo), o IOF foi criado como um imposto de “uso flexível”[5] para que o CMN pudesse utilizá-lo como instrumento extrafiscal. A esse respeito, o ex-ministro do STF Aliomar Baleeiro já afirmou que o IOF possui um “caráter excepcional e extrafiscal”, não devendo ser utilizado para se obter “receita fiscal propriamente dita”[6].

Por isso que, desde a sua concepção, seja por uma destinação específica de seus recursos (prevista até 1969), seja por sua flexibilidade, o IOF possui evidente vocação extrafiscal, não podendo ser utilizado meramente para fins arrecadatórios.

Essa vocação extrafiscal é comprovada também pela vinculação da competência tributária com as competências legislativa e regulatória. As materialidades do IOF não foram escolhidas à toa. Cada uma delas indica mercados sobre os quais o Executivo Federal pode intervir. A tabela abaixo ilustra essa vinculação:

Tabela: Competência tributária (IOF) <=> Competência legislativa/regulatória[7]

Competência Tributária para instituir o IOF

(art. 153, V, da Constituição)

Competência Legislativa e Regulatória da União prevista na Constituição de 1988

Operações de crédito

  • Compete à União administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada (art. 21, VIII); e

  • Compete privativamente à União legislar sobre política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores (art. 22, VII).

Operações de câmbio

Operações de seguro

Operações relativas a títulos ou valores mobiliários

Para ainda dotar a União de agilidade nessa intervenção, há mitigação de Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, como o Princípio da Legalidade e o da Anterioridade. Para servir de instrumento extrafiscal, o IOF é dotado de flexibilidade por meio da exceção de algumas limitações ao poder de tributar.

Esse ponto é fundamental: se as Limitações ao Poder de Tributar foram excepcionadas em determinadas situações, é porque há critérios adotados pelo constituinte que justificam tais desvios. O constituinte não agiu de maneira arbitrária para, de um lado, sujeitar alguns impostos à Anterioridade e à Legalidade e, de outro, mitigar tais limitações. Buscou o constituinte, coerentemente, afastar tais Limitações em casos em que houvesse motivos para tanto.

No caso do IOF, a flexibilidade tem o condão de atrelar o exercício da sua competência a objetivos distintos daqueles previstos no Título VI (Da Tributação e do Orçamento). Em vez de mero coletor de impostos e provedor de serviços essenciais (Estado-passivo), o constituinte viu no IOF um exímio instrumento de intervenção.

Ora, caso pudesse o IOF incidir sobre operações que não estivessem sujeitas a tal intervenção (instituições não reguladas) haveria um paradoxo: embora o Executivo não possa intervir diretamente sobre determinado campo, seria admitida a intervenção indireta, por meio do IOF. Enquanto para uma intervenção direta, seria necessária lei, a intervenção indireta seria livre. Igualmente, haveria uma contradição em se admitir uma tributação (precipuamente) arrecadatória sem observância da Anterioridade. A partir do axioma da racionalidade do constituinte, tal raciocínio não parece aceitável.

A incidência do IOF sobre operações de crédito está inserida no Sistema Financeiro Nacional. Afinal, é no bojo desse sistema que se regula, pelo CMN e BC, as operações sujeitas ao IOF-crédito. É preciso insistir: a interpretação da competência tributária do IOF não deve ser meramente gramatical (o que são operações de crédito?), mas sim voltada ao imposto chamado IOF. Esse raciocínio está em linha com precedentes do STF em matéria tributária.

Por exemplo, ao examinar a (in)constitucionalidade de leis que instituíam IPVA sobre aeronaves[8]/embarcações[9], o STF não se limitou à mera interpretação gramatical (o que é um veículo automotor?), mas analisou a figura do IPVA. Com base na constatação de que o IPVA é sucessor da Taxa Rodoviária Única, o STF concluiu que, tipicamente, o IPVA só abrange veículos terrestres, jamais aeronaves ou embarcações. Assim, para decidir acerca da extensão da competência tributária do IPVA, o STF tomou conhecimento, antes, do imposto em si.

Igualmente, no julgamento do RE 583.712/SP (Tema 581), ao se debater se as atividades de plano de saúde estariam sujeitas ao ISS, o STF também não se limitou à interpretação gramatical (o que é um serviço?)[10]. Nesse caso, o ministro Luiz Fux enfatizou a necessidade de se interpretar a competência tributária do ISS a partir de vários métodos, “desde o literal até o sistemático e teleológico”[11].

Afastando-se da interpretação literal baseada na vinculação ao Direito Privado, o STF entendeu que incidiria ISS sobre tais atividades por corresponderem ao “oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades imateriais, prestados com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador”[12]. Novamente, o STF investigou o imposto em si, no caso o ISS, antes de enfrentar a extensão da competência tributária.

É precisamente esse raciocínio a ser feito no caso do IOF sobre mútuo de pessoas não reguladas. Não deve o STF se restringir gramaticalmente ao conceito de operação de crédito, a fim de averiguar a constitucionalidade do art. 13 da Lei 9.779/1999. Tal como feito com o IPVA e com o ISS, deve-se tomar conhecimento do próprio IOF. Tipicamente, o IOF é um instrumento de política extrafiscal, dotado de flexibilidade. De acordo com o contexto histórico de sua criação e da Constituição de 1988, o IOF abrange apenas as operações de crédito praticadas pelas instituições submetidas à regulação do Sistema Financeiro Nacional. Dessa forma, o alcance de operações de crédito fora do campo regulatório só poderia ocorrer mediante exercício da competência residual da União por meio de lei complementar, nos termos do art. 154, I, da Constituição.

Admitir que lei ordinária como a Lei 9.779/1999 possa alargar a competência do IOF implicaria alterar o perfil constitucional do IOF, pois este não mais figurará como um instrumento de intervenção em mercados regulados, mas apenas em mais um instrumento de arrecadação de recursos.

Além de violar o campo de competência, haveria um problema de Igualdade tributária. Enquanto a Constituição protege a generalidade dos contribuintes com as limitações ao poder de tributar, ela as mitiga aos contribuintes de determinados impostos (e.g., IOF), por conta de estes apresentarem especial vocação indutora. No entanto, a razão de ser desse discrímen é desvirtuada no uso, fora do seu campo regulatório, dos impostos constitucionalmente excepcionados do regime de limitações ao poder de tributar.

Desse modo, caso se reconheça a constitucionalidade do art. 13 da Lei 9.779/1999, os contribuintes do IOF não estarão protegidos pelas limitações ao poder de tributar, ao passo que o estarão os contribuintes dos demais impostos, sem razão constitucionalmente relevante para esse tratamento diferenciado. A razão que justificaria o tratamento distinto entre esses contribuintes – de um lado, a função precipuamente arrecadatória da generalidade dos tributos e, de outro, a vocação extrafiscal do IOF – está ausente no caso concreto, visto que o IOF apresenta a mesma função (arrecadatória) que a generalidade dos impostos.

Portanto, espera-se que, pela primeira vez, enfrente o STF a vocação extrafiscal do IOF, decidindo pela inconstitucionalidade do art. 13 da Lei 9.779/1999, pois o campo de competência do IOF se limita ao campo onde o Executivo federal pode intervir diretamente[13]. Daí o mote: “onde o Executivo não pode intervir por meio direto, tampouco cabe-lhe fazê-lo por meio do IOF”. Essa vocação extrafiscal do IOF é verificada historicamente, à luz da vinculação das competências tributária e legislativa/regulatória da União, bem como sob a perspectiva da mitigação aos Princípios da Anterioridade e da Legalidade. Caso o STF siga o caminho já traçado pela ADI 1.763-DF, então passaremos a conviver com a arbitrariedade no discrímen trazido pelo constituinte, ao arrepio da Igualdade tributária.


[1] STF, ADI 1.763-DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Dias Toffoli, j. 16.06.2020.

[2] STF, ADI 1.763-DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Dias Toffoli, j. 16.06.2020, p. 12.

[3] STF, RE 583.712/SP, Tribunal Pleno, rel. Min. Edson Fachin, j. 04.02.2016.

[4] BULHÕES, Octávio Gouveia de. Exposição de Motivos. In Comissão de Reforma do Ministério da Fazenda. Reforma da Discriminação Constitucional de Rendas (Anteprojeto). Publicação nº 6. Fundação Getúlio Vargas, 1965, p. 72.

[5] BULHÕES, Octávio Gouveia de. Exposição de Motivos. In Comissão de Reforma do Ministério da Fazenda. Reforma da Discriminação Constitucional de Rendas (Anteprojeto). Publicação nº 6. Fundação Getúlio Vargas, 1965, p. 71.

[6] BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Atual. por Misabel Abreu Machado Derzi, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2004, pp. 461-462. 

[7] Para uma tabela contendo também todos os dispositivos do exercício legislativo/regulatório da competência da União, cf. SCHOUERI, Luís Eduardo; GALDINO, Guilherme. Considerações sobre o Campo de Competência do IOF: Instrumento para a Atuação Extrafiscal da União. Revista de Direito Brasileira, vol. 30, nº 11, 2021, pp. 275-276. Disponível em:<https://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/view/7257> ou https://www.academia.edu/86934727/Considera%C3%A7%C3%B5es_sobre_o_Campo_de_Compet%C3%AAncia_do_IOF_Instrumento_para_a_Atua%C3%A7%C3%A3o_Extrafiscal_da_Uni%C3%A3o>.

[8] STF, RE 255.111-2/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, redator designado Min. Sepúlveda Pertence, j. 29.05.2002.

[9] STF, RE 134.509-8/AM, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, redator designado Min. Sepúlveda Pertence, j. 29.05.2002.

[10] STF, RE 651.703/SP, Tribunal Pleno, rel. Min. Luiz Fux, j. 29.09.2016.

[11] STF, RE 651.703/SP, Tribunal Pleno, rel. Min. Luiz Fux, j. 29.09.2016, p. 20.

[12] STF, RE 651.703/SP, Tribunal Pleno, rel. Min. Luiz Fux, j. 29.09.2016, p. 33.

[13] Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo; GALDINO, Guilherme. Considerações sobre o Campo de Competência do IOF: Instrumento para a Atuação Extrafiscal da União. Revista de Direito Brasileira, vol. 30, nº 11, 2021, pp. 265-281; SCHOUERI, Luís Eduardo; GALDINO, Guilherme. IOF-crédito sobre as Cessões de Crédito: Desconto de Títulos, Factoring e Solução de Divergência COSIT Nº 9/2016. Revista Fórum de Direito Tributário, ano 16, nº 93, 2018, pp. 9-51; SCHOUERI, Luís Eduardo; GUIMARÃES, Camilla Cavalcanti Varella. "IOF e as Operações de Mútuo”. In ROCHA, Valdir de Oliveira (org.). Grandes Questões Atuais de Direito Tributário. Vol. 3. São Paulo: Dialética, 1999, pp. 209–222.

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