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O Imposto de Renda pode incidir sobre a inflação?

Primeira Seção do STJ terá um novo encontro com o conceito de renda

21/10/2021|05:16
Atualizado em 04/11/2021 às 15:47
imposto de renda
Crédito: Fernanda Carvalho/fotos publicas

A Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas, do Superior Tribunal de Justiça, por meio de seu Presidente, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, após manifestações favoráveis do MPF e das partes, confirmou a indicação de cinco processos[1] como potenciais recursos repetitivos (art. 1.036, §5º, do CPC e arts. 256 a 256-D, do RISTJ), envolvendo o tema da não incidência de IRPJ/CSLL sobre a parcela de correção monetária das aplicações financeiras.

Os recursos especiais deverão ser julgados pela Primeira Seção do STJ, responsável pela uniformização da jurisprudência daquela Corte relativamente a temas de Direito Público.

Adotou-se a medida a partir da constatação de que a matéria se inclui entre aquelas que ostentam “potencial de repetitividade ou com relevante questão de direito, de grande repercussão social, aptas a serem submetidas ao Superior Tribunal de Justiça, sob a sistemática dos recursos repetitivos” (conforme despacho publicado no DJe em 6/10/2021).

A iniciativa implementada se mostra bastante oportuna, uma vez que poderá resultar na superação de um quadro de preocupante insegurança jurídica, a desafiar o sofisticado sistema de precedentes judiciais previsto no Código de Processo Civil em vigor.

Tal sistema de precedentes centra-se na uniformização da jurisprudência, que deve ser mantida estável, íntegra e coerente, pelos tribunais em geral (art. 926 do CPC[2]) – notadamente pelos Tribunais Superiores.

O tema tributário aqui focado vem sofrendo injustificável alteração de jurisprudência no STJ, à margem de rígidos critérios de revisão jurisprudencial impostos pelo CPC (art. 927, §§ 3º e 4º[3]).

Desde 2015, o STJ vem julgando no sentido da não incidência de IRPJ/CSLL sobre a parcela de correção monetária das aplicações financeiras (REsp 1.511.632, rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 23/9/2015 e REsp 1.574.231, rel. Min. Regina Helena Costa, DJe 27/4/2017).

Tais decisões, juntamente com acórdão (unânime) da Segunda Turma (REsp 1.667.090, rel. Min. Og Fernandes), balizaram inúmeros julgados dos TRFs e do próprio STJ sobre a matéria: REsp 1.886.192 (rel. Min. Herman Benjamin); REsp 1.899.210 e REsp 1.900.212 (rel. Min. Sérgio Kukina); REsp 1.865.929 (rel. Min. Gurgel de Faria); REsp 1.889.285 e AgInt no REsp 1.865.179 (rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho); REsp 1.865.239 e REsp 1.895.874 (rel. Min. Assusete Magalhães).

Com efeito, alinhado ao STF[4], o STJ consagrou há muito o entendimento de que as incidências de IRPJ e CSLL só podem recair sobre o efetivo acréscimo patrimonial disponível apurado pelo contribuinte.

Em 2007, examinando a pretensa cobrança de IRPJ/CSLL sobre a parcela de correção monetária das demonstrações financeiras das empresas, a Primeira Seção do STJ assentou: “a correção monetária não traduz acréscimo patrimonial (...) não gera qualquer incremento no capital, mas tão somente o restaura dos efeitos corrosivos da inflação”, arrematando: “não há como fazer incidir, sobre a mera atualização monetária, Imposto de Renda, sob pena de tributar-se o próprio capital.” (AgRg nos EREsp 436.302/PR, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 17/9/2007).

Tal entendimento foi reafirmado inúmeras vezes (EAG 1.019.831/GO, Primeira Seção, rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe 1/2/2011; AgRg no Ag 1.385.824, Primeira Turma, rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 24/5/2001; AgRg no REsp 1.327.039, Segunda Turma, rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 6/11/2012, por exemplo).

Prestigiando a tradicional orientação do STJ, em voto proferido no julgamento do REsp 1.660.363/SC (em 13/4/2021, 1ª Turma), a Ministra Regina Helena Costa assinalou que, em ao menos dois Recursos Repetitivos (REsp 1.131.360/RJ, DJe 30/6/2017 e REsp 1.112.524, DJe 30/9/2010) a CORTE ESPECIAL decidiu que a correção monetária é mero instrumento de recomposição do poder de compra da moeda, e não de remuneração de capital. Ao final, fez veemente alerta para o risco de indesejável incoerência jurisprudencial a se configurar no caso de o STJ firmar orientação em sentido diverso apenas quanto à correção monetária incidente nas aplicações financeiras:

impõe-se a manutenção do entendimento da Corte Especial deste Tribunal Superior, premissa fundamental para a solução do presente Recurso Especial, justamente por traduzir a coerência e a estabilidade daquela compreensão firmada por tal órgão jurisdicional, concretizando o comando da norma estampada no art. 926 do Código de Processo Civil de 2015, o qual impõe a uniformidade da jurisprudência.”

Amparados na sólida jurisprudência acima destacada, e movidos pela confiança legítima na sua estabilidade, valor consagrado na lei processual vigente (artigos 926 e 927, §4º, do CPC), milhares de contribuintes socorreram-se da Justiça, propondo ações sobre o tema.

Em recente julgado (ARE 951.533), o STF deu provimento a recurso extraordinário interposto pelo contribuinte contra acórdão do STJ, reformando-o para impedir a aplicação retroativa de mudança jurisprudencial ocorrida após o ajuizamento de ação judicial lastreada no entendimento então reinante – precisamente o que poderá suceder quanto ao tema vertente.

No aludido precedente, o STF decidiu que a nova orientação acerca de certo tema tributário, fixada pela Primeira Seção do STJ – órgão responsável pela uniformização da jurisprudência – não pode ser aplicada a processo ajuizado ao tempo em que imperava entendimento diverso.

Reconheceu-se afronta ao princípio da segurança jurídica, uma vez que a mudança jurisprudencial não teria sido acompanhada de qualquer espécie de regra de adaptação, passando a ser aplicada, de imediato, não só às ações movidas após o referido julgamento, mas também àquelas que já haviam sido ajuizadas”.

De volta à questão jurídica examinada, parece desarrazoado reconhecer-se a não incidência de IRPJ/CSLL sobre a parcela de correção monetária aplicada nas demonstrações financeiras e admitir-se a tributação sobre a parcela de correção monetária incidente nas aplicações financeiras.

Sucede, todavia, que, mais recentemente, a tradicional jurisprudência do STJ vem apresentando preocupante e injustificável oscilação. Inexiste qualquer fato novo ou mesmo proposta de rediscussão da matéria que possa legitimar uma mudança radical na orientação daquela Corte Superior, sem afronta aos comandos dispostos nos artigos 926 e 927, §4º, do CPC.

Os resultados (correção monetária e juros) das aplicações financeiras são tributados linearmente pelo Fisco, com a consequente inclusão do montante derivado da mera atualização monetária na base de cálculo de IRPJ e CSLL, quando essa poderá contemplar apenas os juros incidentes. Há, assim, violação frontal e objetiva da regra de competência tributária do imposto de renda, circunscrita ao acréscimo patrimonial verificado, além de afronta ao princípio da capacidade contributiva, constitucionalmente assegurado.

A questão aqui tratada não envolve majoração de tributo (IRPJ/CSLL) derivada de mera correção monetária de sua base de cálculo, autorizada pelo artigo 97, §2º, do CTN. Isso porque sequer se configura o fato gerador da exação (o acréscimo patrimonial). Logo, não se alcança qualquer base de cálculo, que só pode ser cogitada a partir da efetiva ocorrência daquele.

A base de cálculo corresponde ao “aspecto quantitativo da obrigação tributária”[5] – que não chega a se concretizar na espécie em foco, à míngua da ocorrência do indispensável fato gerador (acréscimo patrimonial).

A correção monetária, além de se situar fora do conceito jurídico-constitucional de renda, deve, para fins de apuração do produto líquido, real e tributável, necessariamente, ser abatida do resultado bruto da aplicação financeira, sob pena de imposição fiscal arbitrária que, na ânsia de tudo tributar, acaba por incidir sobre aquilo que renda não é. Logo, para fins de legítima incidência de IRPJ/CSLL, impõe-se o expurgo dos efeitos da inflação sobre o resultado bruto da aplicação financeira, sob pena de se tributar o patrimônio do contribuinte.

Noutro passo, o artigo 4º, parágrafo único, da Lei 9.249/1995 não se comunica com o tema aqui versado. O dispositivo não veda em absoluto a dedução da correção monetária, tendo apenas extinguido a sistemática de correção monetária das demonstrações financeiras[6] - o que, em absoluto, autoriza a incidência de IRPJ/CSLL sobre a parcela de correção monetária das aplicações financeiras.

Ademais, o artigo 9º da Lei 9.718/1998[7] nada dispõe acerca de acréscimo patrimonial para fins de IRPJ/CSLL, não servindo de fundamento legal para a incidência das aludidas exações.

E nem se diga que a estabilização econômica experimentada nas décadas recentes teria suprimido a inflação em nosso País.

O governo federal instituiu um chamado “regime de metas” que procura estabelecer um hiato de flutuação no qual o fenômeno inflacionário pode transitar sem risco de descontrole monetário. Tal sistema de metas está positivado no Decreto nº 3.088/1999, cujo artigo 1º assim estabeleceu:

“Fica estabelecida, como diretriz para fixação do regime de política monetária, a sistemática de "metas para a inflação".

1o As metas são representadas por variações anuais de índice de preços de ampla divulgação.”

A inflação é um fenômeno material, juridicamente regulado e institucionalmente reconhecido pelo Banco Central do Brasil.

O Supremo Tribunal Federal, no mister de guardar a Constituição, já foi chamado inúmeras vezes a examinar o conceito de renda e de lucro previsto nas normas de competência estabelecidas na Carta da República.

Em recentíssimo julgamento, a Suprema Corte decidiu, com repercussão geral, que: “o conteúdo mínimo de materialidade do imposto de renda contido no art. 153, III, da Constituição Federal de 1988, não permite que ele incida sobre verbas que não acresçam o patrimônio do credor” (Tema 808, RE 855.091, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 8/4/2021).

Julgou inconstitucional, ainda, também com força de repercussão geral (RE 221.142 com RG – Tema 311 - DJe 30/10/2014), a cobrança de IRPJ/CSLL sobre a parcela de correção monetária das demonstrações financeiras.

Em 24/9/2021, foi concluído o julgamento do Tema 962 da repercussão geral (RE 1.063.187), tendo sida fixada a seguinte tese: “É inconstitucional a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores atinentes à SELIC recebidos em razão de repetição de indébito tributário.”.

Há diversos outros julgados do STF[8], proferidos ao longo de várias décadas, os quais demonstram que a Suprema Corte vem mantendo estável a orientação segundo a qual as referidas exações podem recair somente sobre grandeza configuradora de acréscimo patrimonial.

A perspectiva do julgamento dos recursos especiais repetitivos referidos ao início deste artigo, por meio de sua Primeira Seção, induz a expectativa legítima de que o STJ venha a reafirmar sua jurisprudência histórica, alinhada à do STF, interrompendo ciclo de grave insegurança jurídica, a ameaçar a integridade do valioso sistema de precedentes judiciais trazido pelo CPC/2015 como uma de suas mais caras inovações no ordenamento jurídico brasileiro.

Tal providência certamente prestigiará o “princípio da uniformidade interpretativa”, ancorado na primazia da estabilidade, da integridade e da coerência interna da jurisprudência do Tribunal exigida pelos arts. 926 e 927, § 4º, do novo Códex Instrumental” (REsp 1.745.020, Rel. Min. Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 8/3/2021).

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[1] Recursos Especiais 1.946.630/RS; 1.948.277/SP; 1.949.760/SP; 1.950.177/RS; 1.950.177/RS e 1.950.219/RS.

[2] Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

[3] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

[4] RE 1.063.187 com RG, j. 17 a 24/9/2021; RE 855.091 com RG, DJe 8/4/2021; RE 221.142 com RG, DJe 30/10/2014 e RE 208.526, DJe 30/10/2014.

[5] Leandro Paulsen, em “Constituição e Código Tributário Nacional comentados à luz da doutrina e da jurisprudência”, 18ª edição, Ed. Saraiva.

[6]  Art. 4º Fica revogada a correção monetária das demonstrações financeiras de que tratam a Lei nº 7.799, de 10 de julho de 1989, e o art. 1º da Lei nº 8.200, de 28 de junho de 1991.

Parágrafo único. Fica vedada a utilização de qualquer sistema de correção monetária de demonstrações financeiras, inclusive para fins societários.

 

[7] Art. 9° As variações monetárias dos direitos de crédito e das obrigações do contribuinte, em função da taxa de câmbio ou de índices ou coeficientes aplicáveis por disposição legal ou contratual serão consideradas, para efeitos da legislação do imposto de renda, da contribuição social sobre o lucro líquido, da contribuição PIS/PASEP e da COFINS, como receitas ou despesas financeiras, conforme o caso.

[8] RE 89.791; RE 117.887; RE 172.058; RE 188.684; RE 582.525; ADI 2.588, dentre outros.logo-jota