Cássio Casagrande

Muitas pessoas estão indignadas com o impeachment, especialmente, é claro, os que apoiavam o governo findo. É natural que os que votaram em Dilma Rousseff estejam até agora engulhados com os conchavos e traições do parceiro de chapa. Porém, não podemos esmurrar o carteiro porque ele nos trouxe más notícias. Assim também, não se pode culpar o instituto do impeachment pelos erros políticos infantis da presidente ou pela infidelidade de seu aliado de ontem; afinal, confundir o processo político com o processo constitucional é um equívoco grave neste caso.
E este equívoco é de fato grave porque contribui para a construção de uma arenga lamentável, segundo a qual é um antidemocrata todo aquele que entende que o impeachment ocorreu dentro das normas constitucionais. E os "verdadeiros democratas", aqueles inconformados com o afastamento da presidente, são os que bradam "golpe", são os que protestam que o seu voto, esse "direito sagrado", teria sido "rasgado".  Esta opinião parte do pressuposto de que a sacralidade do voto é um bem jurídico intocável, exercido sem qualquer forma de controle ou contrapeso - o que por si só contraria a ideia de que não há direitos absolutos na constituição. Não há dúvida que o voto é o símbolo máximo do ideal de soberania popular, ideal "sacralizado" pelas revoluções democrático-burguesas do século XVIII. 
O voto, contudo, é na sua essência uma delegação de poder e, como todo ato delegado, é uma prerrogativa conferida pelo cidadão ao mandatário, que a exerce dentro de certos limites. Isto é, quem recebe a delegação por meio do voto está obrigado a exercê-la sob determinadas condições (que denominamos "responsabilidade política"), as quais, uma vez desatendidas, devem disparar mecanismos de correção, dentre eles - e de fato a mais radical e traumática - a revogação do ato de delegação, a revogação do "sagrado voto". No nosso sistema presidencialista, essa "revogação" do ato de delegação se chama impeachment e não é feita diretamente pelo eleitorado, mas sim indiretamente pelos representantes do eleitorado: os congressistas, que são eleitos, dentre outras coisas, exatamente para esse fim - verificar a responsabilidade política do primeiro magistrado da nação.  É por isso que o mecanismo se chama "impeachment" e não "recall" (como se sabe, neste caso a revogação do voto seria feita diretamente pelo eleitor). E é justamente o fato de que esta revogação do "voto sagrado" se dê de forma indireta (através do Congresso Nacional) que em muitos causa a (falsa) impressão de que impeachment seria um instituto "antidemocrático", especialmente quando não se apresenta "evidente" um "crime presidencial".  Nada é mais enganoso do que esta conclusão apressada. 
A ideia de equilíbrio entre soberania popular e responsabilidade política era muito cara à Revolução Francesa, e ela pode ser encontrada até mesmo na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. O art. 3o. daquele memorável documento estabelecia de um lado que "o princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação; nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente", mas, ao mesmo tempo, o art. 15 dispunha que "a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração".
Os franceses sofreram muito para encontrar uma fórmula constitucional que equilibrasse estas duas concepções. O consagrado constitucionalista francês Leon Duguit, na sua conhecida obra sobre a Assembleia Constituinte de 1789/1791 revela como a questão da responsabilidade política dos ministros foi ali uma das mais tormentosas e quase acabou em um impasse, uma vez que cuidava da delicada questão da separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Havia na assembleia nacional uma grande confusão entre os constituintes sobre as diferenças entre responsabilidade civil, criminal e política do governante, especialmente porque o modelo do "voto de desconfiança" inglês não caberia em um país que viesse a adotar a ideia de responsabilidade política em uma constituição escrita, na qual ela necessariamente teria de ser definida.  Duguit transcreve o discurso do deputado constituinte Démeunier, que segundo ele era quem indubitavelmente melhor percebeu a questão: "A imperícia ou negligência, que não é consequência de uma má intenção e que, inclusive, com intenções suspeitas e malévolas, se reduz a um papel passivo, apenas podem expor o ministro ao desfavor público ou a uma moção do corpo legislativo que advirta ao Rei da má vontade de seu agente. A responsabilidade é outra coisa distinta; ela é sancionada com relação a condutas ativas; submete a uma pena a todo Ministro que se permita praticar qualquer ato contra a Constituição e às Leis, contrário à liberdade e à propriedade dos cidadãos, que se permita ou favoreça a dilapidação dos fundos do Estado".  
Nascia assim no constitucionalismo continental a ideia de que um ato do governante contra a constituição ou contra a lei deveria ser reprimido, prevalecendo a doutrina de que este "crime" poderia ser um crime comum ou outro definido pela lei de responsabilidade. Assim, a Constituição Francesa de 1791 adotou a fórmula de que ao poder legislativo caberia apenas autorizar que os ministros fossem processados pelo judiciário por crimes comuns ou por crimes definidos em lei especial. Ou seja, o julgamento tinha características mais judiciais do que políticas e essa ideia se propagou no continente. 
Georg Jellinek, um dos maiores juristas europeus no início do século XX, escrevendo em 1906, constatou que os sistemas de responsabilidade política estabelecidos nas constituições europeias do século XIX, inspiradas no modelo francês, haviam sido um verdadeiro fiasco, justamente porque remetiam a definição dos crimes de responsabilidade a uma lei infraconstitucional que nunca era regulamentada. 
Já os americanos, inspirados pelos mesmos ideais iluministas mas com seu espírito prático, haviam encontrado uma solução muito mais adequada para o problema. A responsabilidade política deveria ser dissociada da responsabilidade civil e criminal. Os eleitos só poderiam ser julgados por eleitos quanto aos atos irresponsáveis praticados no cargo e pelos tribunais comuns quanto à responsabilidade comum (civil e penal) eventualmente decorrentes do mesmo ato.  O founding father Alexander Hamilton, um dos principais artífices e protagonistas da Convenção da Filadélfia, descreveu no Artigo Federalista 65 as razões pelas quais somente o Senado poderia julgar a responsabilidade política do presidente, pois neste caso ele deveria agir como um tribunal político e não como uma corte de justiça, já que somente um poder eleito pode julgar outro poder eleito. E a consequência disto é que o processo de impeachment não poderia ser visto como um processo penal, inclusive no que diz respeito às garantias do acusado.
Esta diferença de concepção entre o modelo americano e o europeu foi muito bem percebida por Alexis de Tocqueville, em sua célebre viagem à América do Norte. Como é sabido, durante os seus dois anos nos EUA ele, que era um jurista de formação da Civil Law, estudou profundamente o sistema constitucional e jurídico dos Estados Unidos e o comparou com os sistemas constitucionais europeus, especialmente o francês e o inglês. E nos legou suas maravilhosas reflexões sociológicas e jurídicas, neste que é um dos três mais importantes livros do século XIX, "A Democracia na América" (juntamente com "O Capital" de Marx e "A Origem das Espécies” de Darwin).  Tocqueville dedicou um capítulo ao julgamento por responsabilidade política nos Estados Unidos, ressaltando exatamente estas diferenças acima descritas: "na Europa, os tribunais políticos podem aplicar todas as sanções do código penal; na América, depois de retirar a um réu o caráter público de que ele é revestido, depois que o declararam indigno de ocupar qualquer função pública no futuro, o seu direito está esgotado e a tarefa dos tribunais ordinários começa." Ou seja, no modelo americano, o tribunal político se restringe aos atos políticos, ainda que deles também emanem ilícitos civis e penais.  Vale dizer o julgamento não tem natureza penal típica: "A principal finalidade do julgamento político, nos Estados Unidos, neste caso, é retirar o poder das mãos daquele que fez mau uso dele, e impedir que esse mesmo cidadão seja revestido dele no futuro. É, como se vê, um ato administrativo, ao qual se deu a solenidade de um aresto judiciário. Dessa forma, os americanos criaram, pois, algo que é um meio termo. Deram à destituição administrativa todas as garantias do julgamento político e tiraram ao julgamento político os seus maiores rigores."
Consabidamente, o Brasil adotou na sua essência, desde a Constituição de 1891, o modelo americano de responsabilidade política, ainda que nos tenha influenciado a "ideologia" da Civil Law que remete o "crime" de responsabilidade ao direito infraconstitucional - origem de tantos mal entendidos sobre o instituto. Mas, em nosso sistema, o impeachment é, essencialmente,  um mecanismo para controlar a ação irresponsável dos eleitos. Essas ações irresponsáveis são descritas na constituição como "crimes políticos", o que dá uma noção um pouco equivocada ao público em geral de que somente um presidente "criminoso" (no sentido penal comum) poderia ser deposto, quando na verdade a constituição quer dizer que um presidente "irresponsável" deverá perder o cargo.  E a responsabilidade significa que o presidente não pode atentar contra alguns princípios básicos da Constituição nela expressos, os quais sim são também detalhados na legislação infraconstitucional, mas cujo juízo de sindicabilidade é político e não judicial. 
Por se tratar de um julgamento político que se dá apenas sob forma jurídica, as regras do processo penal são mitigadas e aplicadas de forma bastante distinta. Pois nesse julgamento para apurar a responsabilidade política do presidente não se exige dos juízes (Senadores) parcialidade (o que já foi confirmado pelo STF), nem o dever de fundamentação. E, claro, se não há imparcialidade ou dever de fundamentação, tampouco há como se exigir a observância estrita a "tipicidade", como ocorre no processo penal comum. Por isso, é totalmente incabível querer-se aplicar da mesma forma ao processo de impeachment - cuja finalidade é apurar responsabilidade de natureza política - princípios "garantistas" destinados à proteção de direitos individuais assegurados ao cidadão em processos penais - cuja finalidade é apurar responsabilidade criminal típica - para defendê-lo de eventuais abusos contra o Estado acusador. A própria natureza das sanções é distinta: no "crime" de responsabilidade, o acusado pode perder no máximo direitos políticos, enquanto que no crime comum há potencialmente a perda da liberdade ou de outros direitos civis!  Não há como comparar uma coisa a outra, e isto Tocqueville já explicou em 1830: "Os europeus, ao estabelecer os tribunais políticos, tiveram por principal finalidade castigar os culpados; os americanos, tirar-lhes o poder. O julgamento político, nos Estados Unidos, é de certo modo, uma medida preventiva. Não se deve, pois, enquadrar o juiz em definições criminais demasiado exatas."  Parece que o genial escritor e jurista francês, infelizmente, não é muito popular entre alguns professores de direito constitucional, que preferem aplicar as belas lições "garantistas" de Luigi Ferrajoli onde elas simplesmente não cabem...  O impeachment, para usar a metáfora do jurista argentino Roberto Gargarella, é um instituto da "sala de máquinas" da Constituição, isto é, do coração do sistema político-institucional, e não do sistema jurisdicional-processual. 
E para se refletir acerca da pouca relevância da "tipicidade estrita" no processo de impeachment, basta lembrar do célebre caso Bill Clinton. O presidente norte-americano negou em juízo que havia mantido relações sexuais com sua estagiária, porém um exame posterior de DNA comprovou que havia restos de seu esperma no vestido dela.  Ou seja, não havia qualquer dúvida de que o presidente havia cometido o crime de perjúrio (mentir em juízo). Vale dizer, do ponto de vista do direito penal, pelos critérios de "tipicidade estrita" o presidente forçosamente deveria ser condenado. Mas, como se sabe, ele foi absolvido pelo Senado, porque o julgamento era essencialmente político. E, evidentemente, a Suprema Corte jamais poderia rever esta decisão, pois se isto acontecesse aí sim estaria violada a Constituição: um presidente eleito seria destituído por juízes não eleitos, por meio de revisão de uma decisão política!  Então, inquestionavelmente, a "tipicidade estrita" não pode ser invocada para absolver ou condenar o presidente no processo de impeachment, nos Estados Unidos ou no Brasil, conforme, a propósito, já sinalizou o Ministro Teori Zavascki no MS. 
Aliás, este princípio de responsabilidade política, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, vale não apenas para o presidente, como também para Governadores e Prefeitos. E, em relação a estes últimos, tem sido utilizado com relativa frequência em nosso país. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, foram cassados nos últimos anos os prefeitos das cidades de Magé, Teresópolis, Itaguaí e Itaocara, por "crime político", ou seja, por impeachment (o DL 201/67, que cuida dos crimes de responsabilidade dos prefeitos, não usa esta denominação, mas é exatamente disto que se trata). É interessante observar como estes impeachments municipais têm sido interpretados por muitos dos analistas políticos (de esquerda inclusive) como um sinal de  "fortalecimento da democracia brasileira", embora, em todos eles, o voto popular tenha sido igualmente "rasgado"...
Então, tudo considerado, podemos sim dizer que o voto é sagrado; mas o impeachment também o é, pois nas sociedades verdadeiramente democráticas não há poder sem controle, não há governo sem freio.

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JOTA

O voto é sagrado, mas o impeachment também o é

O Impeachment é democrático?

O voto é sagrado, mas o impeachment também o é