Argemiro Martins

O simples fato do processo de impeachment ser uma decisão tomada pela maioria dos representantes do povo não a torna, por si só, uma decisão democrática. Thomas Jefferson em seu clássico escrito “Notes on the State of Virginia” chama a atenção para o que ele denominou de “elective despotism”. Argumentava Jefferson que a concentração de poderes políticos nas “mesmas mãos” é a própria definição do despotismo, pouco importando o fato delas serem “escolhidas por nós mesmos” ou se o poder é exercido por “uma única” ou por uma “pluralidade de mãos” (Writings. 18ª ed. New York: The Library of America, 1984, p. 245). É isso o que foi visto no Congresso brasileiro. Aceitar que o afastamento de Dilma Rousseff sem qualquer indício de crime, apenas porque o Congresso Nacional entende que ela deve ser afastada por conveniência política, é aceitar o despotismo do Poder Legislativo.
O atual processo de impeachment anda em ritmo acelerado, ainda mais se comparado ao lento andamento do processo disciplinar de Eduardo Cunha na Comissão de Ética na Câmara dos Deputados. Isso sem mencionar o pedido de impeachment contra o Presidente interino Michel Temer, parado no Congresso apesar da determinação do Ministro Marco Aurélio para que se desse andamento à denúncia. O crime de responsabilidade da Presidenta tem por base seis Decretos de abertura de créditos suplementares e uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que introduziu em nosso vocabulário político as chamadas “pedaladas fiscais”.
Quanto aos Decretos suplementares, a acusação consiste no fato destes terem causado o aumento de despesas sem a devida aprovação pelo Congresso Nacional. Curiosamente, o Art. 4º da Lei Orçamentária de 2015 autoriza a edição desse tipo de decretos desde que compatíveis com superavit primário, cujas metas foram revistas pelo próprio Congresso dando respaldo aos tais decretos. Além disso, a edição dos mesmos foi acompanhada de outros doze Decretos de contingenciamento, em observância às metas de gastos no exercício financeiro de 2015. O TCU até então, considerava que a obtenção das metas seria verificável no final do exercício fiscal. Isso mudou em outubro de 2015, quando esse Tribunal questionou tais Decretos suplementares. Três fatos saltam aos olhos. Primeiro, a edição de Decretos suplementares foi uma prática chancelada pelo TCU nos governos anteriores. Segundo, a prestação de contas de 2015 feita pelo governo federal sequer foi apreciada pelo próprio TCU. Terceiro, os decretos suplementares foram solicitados por diversos órgãos, inclusive de outros poderes, como as Justiças Eleitoral e do Trabalho. 
Quanto às “pedaladas fiscais”, trata-se apenas do repasse em atraso de verbas pelo Executivo federal aos bancos públicos para o custeio de programas sociais do governo, como o Plano Safra. A inovação apresentada pelo Tribunal de Contas equipara essa operação financeira - prática corriqueira nos governos federais anteriores - à operação de crédito entre a União e a Instituição financeira por ela controlada, o que seria vedado pelo Art. 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ou seja, o TCU equiparou o pagamento de juros de mora a um contrato de empréstimo, duas figuras completamente distintas no direito financeiro.
É simplesmente absurda a ideia de que isso possa configurar uma espécie de crime, tal como é a corrupção passiva ou mesmo a lavagem de dinheiro. Crimes dos quais é acusado o próprio Ex-Presidente da Câmara dos Deputados em processo que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Ambas as razões para o impeachment foram pautadas por decisões do TCU que mudaram o entendimento anterior. As decisões discricionárias de um Tribunal - que é órgão do próprio Legislativo - não podem constituir uma espécie de crime que exige lei formal e anterior aos fatos por ela tipificados.
A votação na Câmara dos Deputados demonstrou a fragilidade da tese dos crimes das “pedaladas fiscais” e dos Decretos suplementares, pois os Deputados e Deputadas se sentiram livres para condenar a Presidenta por qualquer razão, seja por Deus, por suas famílias, pelo combate à corrupção, pelo fim da crise econômica ou qualquer outra motivação estapafúrdia. No Senado, não foi diferente, os pronunciamentos dos parlamentares favoráveis ao impeachment mencionavam o “conjunto da obra” do governo Dilma, a crise econômica, o desemprego e até as relações diplomáticas com os países “bolivarianos” – Bolívia, Equador e Venezuela. Em síntese, não havia e não há um crime claramente tipificado que possa pautar as justificativas de votos favoráveis ao afastamento de Dilma Rousseff.
No Brasil, o despotismo do Legislativo é caracterizado por um abismo entre os representantes e os seus eleitores, tão grande como o muro que separava os manifestantes pró ou contra o impeachment do próprio Congresso. Os parlamentares foram fiéis aos seus financiadores de campanha, não aos seus eleitores. O verdadeiro “crime” de Dilma Rousseff foi o de permitir a apuração dos grandes esquemas de corrupção que garantem a continuidade de verdadeiras castas políticas no Legislativo brasileiro. O destemor da Presidenta em deixar punir até mesmo os membros do próprio PT levou os políticos de sua base aliada, sobretudo os do PMDB, a temerem por seus destinos – a despeito da parcialidade dos órgãos de investigação como a Polícia Federal e o Ministério Público. É isso o que realmente importa, não o engodo das “pedaladas fiscais” ou dos Decretos suplementares.
Retomando Thomas Jefferson, o despotismo legislativo “não foi o governo pelo qual lutamos”. Assim como em sua época, o que a Constituição de 1988 estabeleceu foi um sistema de checks and balances onde os poderes da República devem ser “divididos e equilibrados”, de tal modo que “nenhum poderia transpor os seus limites legais, sem ser efetivamente controlado e contido pelos outros” (Ibidem). Quando o Poder Legislativo se torna despótico, é de se esperar que o Poder Judiciário imponha os limites da legalidade e da constitucionalidade. Caso o STF permita que o arbítrio do Legislativo destitua Dilma Rousseff sem qualquer prática de crime de responsabilidade, como vem fazendo, não estará honrando a nossa Constituição e nem a nossa Democracia.

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JOTA

Afastamento ocorre sem indício de crime, apenas porque o Congresso Nacional entende que deve ser afastada

O impeachment de Dilma Rousseff e o despotismo do Legislativo

Afastamento ocorre sem indício de crime, apenas porque o Congresso Nacional entende que deve ser afastada