Marcelo Cesar Guimarães

Um dos hot topics no Direito da Concorrência diz respeito ao que se vem denominando de hipster antitrust. Trata-se de um movimento global, tendo como expoentes nomes como Lina Kahn<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e Tim Wu<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, os quais foram inclusive indicados recentemente para relevantes cargos públicos na política concorrencial do governo norte-americano<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O tema já chegou ao Brasil, também estando na ordem do dia das discussões concorrenciais no país<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Em suma, tal corrente defende que a estrutura tradicional do antitruste, fundada nomeadamente na eficiência econômica e no bem-estar do consumidor, é inadequada para endereçar os problemas do mundo atual, mormente tendo em vista o advento da economia digital.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Nesse sentido, propõe-se um retorno às origens do antitruste, afastando uma abordagem unicamente econômica (centrada sobretudo em preços) e levando para a análise concorrencial outros fatores, como empregos, salários, pequenos negócios, pobreza, gênero, meio ambiente, proteção da privacidade, concentração de poder político, preservação do processo competitivo, dentre outros.
Essa “nova” doutrina tem como um dos principais arcabouços teóricos o jurista norte-americano Louis Dembitz Brandeis, razão por que é frequentemente chamada de neo-brandeisiana. O presente artigo busca examinar se Brandeis deveria, de fato, ser um expoente sobre o qual a doutrina hipster se assenta.
Louis Brandeis<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> nasceu em Louisville, Kentucky, Estados Unidos, no ano de 1856, filho de imigrantes judeus da Boêmia, que prosperaram na indústria de grãos. Havendo ingressado na Faculdade de Direito de Harvard aos 18 anos, Brandeis se graduou antes de completar 21 anos, com a maior nota até então já obtida. Na sequência, passou a exercer a advocacia na cidade de Boston, tornando-se um dos mais renomados advogados da história norte-americana.
É importante destacar que, enquanto outsider em Boston, seus principais clientes, ao longo de toda sua carreira na advocacia, eram empresas pequenas e médias, como manufaturas de sapatos e papel, bem como atacadistas e varejistas judeus. Brandeis jamais atraiu as grandes empresas, como bancos, seguradoras, ferrovias. Esse fato é importante porque ele acabou por se identificar politicamente com os interesses das causas por ele defendidas. Tal posição pessoal protraiu-se por toda sua vida, inclusive durante sua atuação como juiz da Suprema Corte, entre 1916 e 1939.
Sem dúvidas, Brandeis defendeu posições que hoje são reavivadas pelo hipster antitrust. Nesse sentido, por exemplo, destaca-se o caso Muller v. Oregon<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, de 1908, em que Brandeis advogou o poder do Estado de limitar a jornada de trabalho das mulheres. O referido jurista conseguiu modificar a então jurisprudência consolidada da Suprema Corte dos Estados Unidos, trazendo para a discussão, até então centrada na liberdade de contratação, dados estatísticos, sociológicos e médicos sobre as consequências físicas do excesso de trabalho. Aqui, o aspecto científico e social ganhou destaque na análise jurídica.     
Outro ponto importante que tem sido apropriado pela doutrina hipster é o direito à privacidade, que também encontra sua origem em Brandeis<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Mais relevante ainda para o hipster antitrust foi a luta de Brandeis contra o big business, o que o fez ser conhecido como “advogado do povo” e “Robin Hood do Direito”. Brandeis começou a se interessar pela questão dos trustes durante a depressão econômica de 1890, quando o fenômeno estava em franca expansão nos Estados Unidos. Nesse período, ele ofereceu um curso sobre o tema no Massachusetts Institute of Technology (MIT).
De acordo com Brandeis, havia quatro tipos de trustes: (i) acordos entre concorrentes para não vender os produtos abaixo de determinado valor; (ii) acordos entre concorrentes em que os preços são equalizados e administrados por um terceiro; (iii) transferência das ações pelos acionistas de empresas concorrentes para um terceiro (trustee), que adquire o controle das empresas, determinando como se dá a administração do conjunto; e (iv) verdadeira fusão de empresas em uma grande corporação, com a extinção de qualquer independência individual.
Para Brandeis, os trustes de tipo (i) e (ii) não geravam problemas relevantes, sendo aqueles de tipo (iii) e (iv) o objeto de preocupação. Em realidade, Brandeis aduzia que a razão para a formação dos trustes de tipo (iii) e (iv) havia sido a ausência de instrumento jurídico no direito norte-americano para assegurar o fiel cumprimento dos trustes de tipo (i) e (ii), de sorte que algum dos agentes acabava descumprindo o acordo, levando à formação de estruturas mais vinculantes e sofisticadas, como havia sido o caso do Standard Oil Trust, American Toabacco Company, U.S. Steel Company e Sugar Trust.
A grande crítica de Brandeis para os trustes de tipo (iii) e (iv) é que eles interferiam na autonomia dos pequenos e médios empresários, que terminavam por ser absorvidos pelos agentes mais poderosos. O fato é que Brandeis repulsava as grandes empresas. Para ele, uma empresa só se tornava grande por meios ilegítimos. Havia, portanto, um forte argumento político, porque ele entendia que a luta contra a grande empresa era essencial para assegurar os valores democráticos da sociedade norte-americana, notadamente a liberdade. Afirmou Brandeis em 1911:
“eu tenho considerado e realmente considero que a proposição de que a mera grandeza não pode ser uma ofensa contra nossa sociedade é falsa porque eu acredito que nossa sociedade, a qual assenta-se na democracia, não pode sobreviver sob tais condições”<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Tais argumentos foram imortalizados no célebre livro Other People’s Money and How Bankers Use It<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, publicado em 1914. Em tal obra, Brandeis aborda os temas que o consagraram, como a supressão da concorrência pelos trustes, a ineficiência de qualquer concentração empresarial, o acúmulo de poder em Nova York, em suma, a maldição da grandeza (the curse of bigness).
Brandeis, porém, não via problemas em associações mais “frouxas” entre competidores visando à redução da concorrência, ainda que em detrimento dos consumidores. Como aduzido, ele defendeu os trustes do tipo (i) e (ii), eis que tais arranjos (que sob o antitruste clássico  consubstanciam cartéis) permitiam o fortalecimento dos players menores. Questiona-se, porém, se os hipsters do antitruste legitimariam cartéis hard core, aqueles que acarretam efeitos semelhantes ao monopólio.
Vale ressaltar que Brandeis não apenas defendia os pequenos e médios empresários frente aos grandes players, como também possuía certo desprezo pelos consumidores. Essa posição fica clara quando se examina as repercussões do caso Dr. Miles Medical Co. v. D. Park &amp; Sons Co.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, de 1911, em que a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu pela ilicitude da fixação de preço de revenda.
Em resposta a tal decisão, formou-se um poderoso lobby, liderado por Brandeis, para buscar a alteração do entendimento jurisprudencial. Brandeis chegou inclusive a minutar um projeto de lei que isentaria pequenos atacadistas e varejistas do Sherman Act, para permitir a retomada da prática de fixação de um preço de revenda uniforme por todo o país.
De acordo com Brandeis, a posição da Suprema Corte revelava uma ironia do antitruste, eis que contribuía para o fortalecimento das grandes empresas. É que ao proibir o preço de revenda, estar-se-ia vedando a cobrança do que ele chamava de “preço justo”, o que acarretaria uma maior integração entre o atacado e o varejo, visto que os produtores teriam incentivos em estabelecer seus próprios pontos de venda. E tal fenômeno acabaria por exterminar os pequenos e médios comerciantes. Nesse contexto, vejam-se algumas declarações de Brandeis à época:
“Ora, a fixação desse preço possivelmente impediu um revendedor de vender o artigo um pouco mais baixo do que o outro, mas a fixação desse preço tendeu não a suprimir, mas a desenvolver a concorrência (...) Cada comerciante, cada pequena papelaria, cada pequena farmácia (...) pode se tornar um fornecedor desse artigo (...) e estimulou-se, por meio do preço fixo, o pequeno agente em comparação com a loja de departamentos, e em oposição à grande unidade que poderia monopolizar esse comércio”<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>
“Quando se permite o corte de preços, está-se convidando os homens grandes e poderosos a assumirem o controle dos negócios (…) O grande negócio não é mais eficiente que o pequeno negócio. É um erro supor que as lojas de departamento podem fazer negócios de forma mais barata que o pequeno negociante”<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
É evidente que a tese de Brandeis partia do pressuposto de que o mais importante para a concorrência é a estrutura do mercado, incluindo o número de players, em linha com o modelo estruturalista da Escola de Harvard. Porém, ao avaliar mais a fundo seus argumentos, observa-se que Brandeis, na defesa dos concorrentes (no caso, os pequenos e médios empresários), ia de encontro à defesa dos consumidores.
Em realidade, Brandeis era hostil aos valores do consumismo, no que via uma ostentação desmesurada. Para além de defender que o aumento de preços poderia ser benéfico à sociedade (eis que justificaria uma pulverização de players), Brandeis chegou a questionar a capacidade dos consumidores de agirem livremente. Para ele, os consumidores eram “servis, autoindulgentes, indolentes e ignorantes”<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>. Ele acreditava que os consumidores haviam falhado em sua função de representar um contrapoder aos grandes agentes econômicos, de modo que mereciam sofrer consequências por isso.
<blockquote class="jota-article__eye">Ainda que hoje a conduta dos consumidores possa ser mais profundamente avaliada com base nos ensinamentos da economia comportamental, que busca afastar as presunções neoclássicas do homo economicus, racional e autointeressado, não parece haver espaço no antitruste para se descurar da tutela dos consumidores.</blockquote>
Inclusive, uma das críticas centrais do hipster antitrust é de que o bem-estar do consumidor almejado pela Escola de Chicago é insuficiente, por ser equiparado à eficiência econômica, centrada em métricas de curto prazo, como preço e oferta. Nesse sentido, o movimento hispter preconiza que o antitruste deve assegurar uma maior proteção ao consumidor, que vá muito além do preço, garantindo privacidade, qualidade, diversidade, preservação ambiental, inovação etc.
Aliás, observa-se que Brandeis não parece ter dado importância à inovação. Com efeito, ele detestava as tecnologias de sua época, como carros e telefones. É difícil, porém, defender uma teoria antitruste que não se centre na inovação, cujo papel é essencial ao desenvolvimento econômico (como, aliás, já ressaltava Schumpeter). Trata-se de valor muito caro ao direito da concorrência, inclusive sob o viés hipster, como acima visto.
Portanto, ainda que o movimento hipster antitrust convirja em alguma medida com a obra de Louis Brandeis, cabe questionar-se a centralização nesse jurista, a ponto de o movimento ser denominado de neo-brandeisiano. É que Brandeis parece ter defendido várias posições que contradizem algumas das próprias premissas da referida doutrina contemporânea.
Ainda que se possa cogitar que tais posições de Brandeis fossem laterais em sua obra, é inegável que se trata de argumentos relevantes e intrinsecamente relacionados às demais teses por ele advogadas. Faz-se necessário, ao menos, uma maior reflexão sobre o tema pelos defensores do hipster antitrust, para que suas posições não sejam assentadas em premissas contraditórias com o movimento. Há, pois, de se repensar se o hipster antitrust pode (ou quer) ser, de fato, considerado neo-brandeisiano.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> KHAN, Lina M. Amazon’s Antitrust Paradox. The Yale Law Journal, vol. 126, n. 3, 2017. pp. 710-805; KHAN, Lina M. The Ideological Roots of America’s Market Power Problem. The Yale Law Journal Forum, v. 127, 2018. pp. 960-979.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> WU, Tim. The Curse of Bigness: Antitrust in the New Gilded Age. Nova York: Columbia Global Reports, 2018.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> KANG, Cecilia. Biden nominates Lina Khan, a vocal critic of Bih Tech, to the FTC. The New York Times, 2 mar. 2021. Disponível em: &lt;https://www.nytimes.com/2021/03/22/business/lina-khan-ftc.html&gt;. Acesso em: 3 abr. 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Por exemplo: PROENÇA, José Marcelo Martins; MISALE, Guilherme Teno Castilho. Antitruste e(m) novas perspectivas: ser ou não ser um “hipster antitrust”? Consultor Jurídico, 23 nov. 2021. Disponível em: &lt;https://www.conjur.com.br/2020-nov-23/proenca-misale-ou-nao-hipster-antitrust&gt;. Acesso em: 4 de abril de 2021; FRADE, Eduardo. O futuro do antitruste na encruzilhada. Consultor Jurídico, 4 jan. 2021. Disponível em: &lt;https://www.conjur.com.br/2021-jan-04/defesa-concorrencia-futuro-antitruste-encruzilhada&gt;. Acesso em: 4 de abril de 2021; CORDEIRO, Alexandre; MONTEIRO, Ana Sofia Cardoso. Os objetivos do Direito Antitruste: evolução e perspectivas para o pós-Codid-19. JOTA, 1º ago. 2020. Disponível em: &lt;https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-objetivos-do-direito-antitruste-evolucao-e-perspectivas-para-o-pos-covid-19-01082020&gt;. Acesso em: 4 de abril de 2021; DOMINGUES; Juliana Oliveira; GABAN, Eduardo Molan. Direito Antitruste e Poder Econômico: o movimento populista e o “Neo-Brandeisiano”. Justiça do Direito, v. 33, nº 3, set-dez. 2019, pp. 222-244; SCHMIDT, Cristiane Alkmin Junqueira. Hipster Antitrust: poder de mercado e bem-estar do consumidor na Era da Informação. JOTA, 28 dez. 2018. Disponível em: &lt;https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-cristiane-alkmin/hipster-antitrust-poder-de-mercado-e-bem-estar-do-consumidor-na-era-da-informacao-28122018&gt;.  Acesso em: 4 de abril de 2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Os dados históricos da vida de Brandeis constam de MCCRAW, Thomas K. Prophets of Regulation: Charles Francis Adams, Louis D. Brandeis, James M. Landis and Alfred E. Kahn. Cambridge/MA: The Belknap Press of Harvard University Press, 1984.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> 208 U.S. 412 (1908).
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Veja-se, nesse sentido: BESSA, Leonardo Roscoe. LGPD: direito ou dever à privacidade? Consultor Jurídico, 8 fev. 2021. Disponível em: &lt;https://www.conjur.com.br/2021-fev-08/leonardo-bessa-lgpd-direito-ou-dever-privacidade&gt;. Acesso em: 4 de abril de 2021.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Brandeis Clapp Committee testimony (1911), p. 1167. Apud MCCRAW, Thomas K. op. cit. p. 124. Tradução livre.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> BRANDEIS, Louis D. Other’s People Money and How Bankers Use It. Nova York: Frederick A. Stokes Company, 1914.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> 220 U.S. 373 (1911).
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Brandeis testimony May 15, 1912, before the House Committee on patents, Oldfield Revision and Codification of the Patent Statutes, 62nd Cong., 2nd secs. (Washington: Government Printing Office, 1912), p. 4. Apud Thomas K. op. cit. p. 117. Tradução livre.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Brandeis testimony, U.S. Congress, House, Committee on Interstate and Foreign Commerce, Hearings on Regulation of Prices, 64th Cong., Ist sess. (Washington: Government Printing Office, 1915), pp. 39-41. Apud MCCRAW, Thomas K. op. cit. p. 119. Tradução livre.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Brandeis to Soule, April 22, 1923, Brandeis Letters, V, 92. Apud MCCRAW, Thomas K. op. cit. p. 122.

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JOTA

O jurista Brandeis deve, de fato, ser um expoente sobre o qual a doutrina hipster se assenta?

O hipster antitrust seria realmente neo-brandeisiano?

O jurista Brandeis deve, de fato, ser um expoente sobre o qual a doutrina hipster se assenta?