Maria Luiza Gorga

O cenário atual já conhecemos: morosidade e má vontade institucionais na discussão, aprovação, e registro das vacinas contra a covid-19; discursos de apologia à anti-vacinação; e trapalhadas diplomáticas e comerciais que pareceriam forçadas até em um filme do tipo “Apertem os cintos, o Presidente sumiu!”.
Mais recentemente criou-se uma certa pressão pela queda de figuras proeminentes do discurso acima: Ernesto Araújo, atual chanceler, e o General Eduardo Pazuello, Ministro da Saúde. Pode parecer uma situação excelente para aqueles interessados no melhor andamento da imunização brasileira: sacrifica-se uma peça, e se articula uma nova situação em seu lugar.
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Mas o momento não é de aceitar o movimento. Devemos recusar o gambito do Ministro, e não cair na cilada que é dar ainda mais tempo à Administração para não fazer nada – ou fazer mal.
Lembremos que a Constituição Federal estabelece que os estados possuem autonomia (art. 18), e que sua organização é regida pelas Constituições Estaduais (art. 25). Isso é só consequência do fato de o Brasil se organizar na forma de um estado federativo.
Já na parte da saúde, a Constituição Cidadã ordena que é dever do Estado a atuação para implementar medidas de redução de riscos de doenças (art. 196), discorrendo ainda que compete ao Sistema Único de Saúde, a ser efetivado por meio de sua gestão descentralizada (art. 198, I), papéis detalhados nos incisos do art. 200:
I – O controle e a fiscalização de produtos e substâncias de interesse para a saúde, bem como a participação na produção de medicamentos, imunobiológicos e insumos;
II – A realização de ações de vigilância epidemiológica (e.g. vacinação);
III - Ordenar a formação de recursos humanos necessários à consecução de seus fins; e
V - Incentivar o desenvolvimento científico e tecnológico
Daí já se vê que o Estado tem o dever constitucional de promover as campanhas de vacinação, controlar e até mesmo produzir os insumos e produtos necessários para tal fim, bem como obter os recursos humanos e tecnológicos necessários.
Pois bem. Pela Constituição Estadual do Estado de São Paulo, cabe ao braço local do SUS as ações necessárias à redução de riscos de doenças (art. 219, parágrafo único, I), a promoção da saúde (art. 219, parágrafo único, IV), a vigilância epidemiológica (art. 223, II) e a fiscalização e registro de produtos (art. 223, V), tudo sempre feito de forma preferencialmente direta pelo estado (art. 220, §2º).
A porta, portanto, está aberta. Não apenas a Constituição ordena, como a forma descentralizada de organização e atuação do SUS indica e permite a atuação do estado – de forma complementar, usualmente, mas também de forma subsidiária e substitutiva ao Estado.
Por último, chegamos na norma que rege a Anvisa (Lei n. 9.782/99), a qual dispõe, em seu art. 41. que o registro de drogas, insumos e correlatos poderá ser objeto de regulamentação pelo Ministério da Saúde e/ou Anvisa, desde que este fato não implique em riscos à saúde da população ou em riscos às condições de fiscalização. Essa possibilidade vale até mesmo para a garantia da isenção de registros (art. 41, §2º).
Lembrando das regras comezinhas da hermenêutica, a Lei não possui palavras em vão. E onde se escreve poderá, não se pode jamais interpretar como “deverá exclusivamente”. Afinal, onde alguém apenas pode, logicamente outros poderão, na existência de lacuna – ou vácuo proposital.
Mais: a interpretação é sempre feita da norma hierarquicamente superior para aquelas inferiores, aí não importando a ordem cronológica. Deste modo, os imperativos de atuação para a preservação da saúde, a autonomia dos estados, e a autonomia de cada braço do SUS são premissas inafastáveis, posto que colocadas constitucionalmente.
Daí decorre que, não caindo no gambito do Ministro e passando à ação imediata, mediada pelas normas e tendo em vista o direito da população à Saúde, atuando em conformidade com a consecução dos fins a que realmente se destina o Estado, podem Governadores – e até Prefeitos – atuar em suas esferas de poder. É possível até mesmo se falar em dever de ação, sob pena de omissão da consecução de obrigações legais e da negativa de vigência a direitos constitucionais à população.
Mais que apenas a ação do Executivo, também a atuação da Anvisa vem colocando em risco a saúde da população e o próprio processo de registros das vacinas, abrindo caminho para a atuação de outros entes para a concretização destes atos de fiscalização, registro, ou até mesmo isenção de registro, além da produção e distribuição das vacinas, a ser realizado pelos estados através de entidades pertencentes ao SUS, como o Instituto Butantã, a Fiocruz, o Hospital Emílio Ribas, e outros centros de excelência em pesquisa e fabricação farmacêuticas.
O tabuleiro está posto, as regras são conhecidas, e o movimento do adversário está telegrafado. A ver como se dará o jogo pela saúde da população brasileira.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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JOTA

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