Doris de Miranda Coutinho

Desde a vigência da maior crise financeira experimentada nas últimas décadas, os orçamentos dos estados vivem em permanente tensão, revelando a exaustão dos cofres públicos, seja pela atuação desidiosa e pouco transparente de governantes irresponsáveis, seja pela corrupção disseminada que apropriou-se das nossas instituições.
Agora que nos foram apresentados os números reais da ribanceira fiscal brasileira, encobertos até então pela ação contábil criativa adotada pela maioria dos entes federados, diga-se, com o auxílio determinante dos tribunais de contas, na confecção dos orçamentos e contabilização das despesas com funcionalismo público, podemos ter uma noção mais clara do diâmetro e espessura do buraco vazado nas finanças do Estado e, portanto, das medidas que deverão ser empregadas para tapá-lo.
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De fato, não foi de ontem para hoje que acumulamos uma dívida pública bruta de 77,3% do PIB, com perspectivas claras de corresponder, até 2030, à totalidade da nossa riqueza. Também não é de repente que se cultiva 12 mil obras paralisadas, conforme relatório do TCU, bem como o menor investimento público, nos três níveis da federação, em 50 anos (1,17% do PIB).
O principal aumento, contudo, se verifica na rubrica dos gastos com pessoal ativo e inativo, que compromete fração cada vez mais larga da receita corrente líquida de estados e municípios. Nos 14 estados que superaram o limite estabelecido pela Lei Complementar nº 101/00 para tal espécie de dispêndio, o espaço orçamentário cada vez mais comprimido tem inviabilizado a prestação de serviços públicos dos mais elementares, em detrimento da parcela da população que mais necessita da atuação social do poder público.
Problemas que, a priori, aparentam ser meramente contábeis, traduzidos em contas, numerários e papéis ininteligíveis, refletem-se na amarga realidade de salários atrasados, prateleiras sem remédios, viaturas sem gasolina, escolas sucateadas e uma porção de demandas carentes de resolução.
Este penoso rol de exemplos ilustra e reforça a incapacidade histórica do setor público brasileiro de obedecer aos princípios da gestão fiscal responsável e cumprir o básico.
Ninguém põe em dúvida que, na realidade financeira do Estado, intrinsicamente limitada, há uma distância significativa entre o ideal e o factível. É que, entre aquilo que consubstancia dever social do Estado, previsto na Constituição Federal, e aquilo que, dentro da perspectiva orçamentária, ele pode atender, ficam os imponderáveis fatores econômico, político e social, razão pela qual os governantes não podem esquivar-se da obrigação de eleger prioridades e avaliar resultados.
No entanto, racionalizar recursos e absorver determinadas frustrações corporativas não são tarefas que o governo queira praticar. Se realmente houvesse dotação suficiente para todas as demandas, o próprio controle público seria um aparato inútil. Como não há, são dois os caminhos possíveis: primeiro, ater-se à realidade e, mediante procedimentos objetivos, escolher prioridades; segundo, enveredar-se pela ficção, fazendo do orçamento uma plataforma infinita de promessas destinadas à desilusão. Adesão maior teve o segundo trajeto.
O fundo falso cedeu, e agora podemos ser arrastados pela força invencível dos acontecimentos.
Por isso, cumpre-nos avaliar o cenário a partir das soluções que dele podem ser extraídas, a fim de reduzir o inchaço destas despesas e promover o reequilíbrio das contas. A Constituição de 1988 ocupou-se desta tarefa, ao prever, nos termos do art. 169, gatilhos de contenção dos dispêndios com pessoal, consistentes no corte de cargos comissionados, na exoneração de servidores não estáveis e, até mesmo, daqueles que já se encontram estabilizados no serviço público. Além dela, a Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, também trouxe importantes avanços, nos artigos 20 a 23, estabelecendo o controle quadrimestral dos gastos, a vedação de acréscimos estipendiários uma vez ultrapassado os limites prudenciais, e a necessidade de correção do excesso em oito meses.
Em acréscimo, a LRF facultou aos entes federados que, antes de adotarem a drástica exoneração de servidores, em virtude da extrapolação do limite legal, promovessem a redução temporária da jornada de trabalho com a consequente adequação dos vencimentos à nova carga horária.
Todavia, pela decisão liminar proferida na ADI 2.238, proposta em face da Lei Complementar nº 101/00, pelos partidos políticos PC do B, PSB e PT, o Supremo Tribunal Federal suspendeu os efeitos do parágrafo segundo, do artigo 23, da Lei de Responsabilidade Fiscal, que autorizava a redução dos vencimentos dos servidores públicos.
<a name="_GoBack"></a> Naquela ocasião, a Suprema Corte entendeu, por unanimidade, que aludida redução transgride o princípio da irredutibilidade dos vencimentos no serviço público, do art. 37, XV, da CRFB, assim como não integra a lista de providências que a Constituição estabelece, de maneira exaustiva, nos parágrafos 3º e 4º do art. 169, para contenção dos gastos com pessoal.
Ressurge, agora, oportunidade para que o STF reveja o posicionamento firmado em sede cautelar, desde o ano de 2002, a fim de sedimentar a constitucionalidade da medida de contenção prevista no art. 23, §2º, da LRF. É que a ADI 2.238, após uma sinuosa trajetória de troca de relatores, está na pauta da sessão plenária do STF de 27 de fevereiro próximo e, quiçá, colocará fim, de vez, à controvérsia.
Diante do inexorável contexto de crise fiscal, urge reconhecer a legitimidade, à luz do postulado da proporcionalidade, desta redução de vencimentos proporcional à diminuição da carga horária do servidor público. A meu sentir, um mecanismo de ajuste temporário perfeitamente compatível com a necessidade premente de readequação das despesas, porquanto menos drástica e bem mais isonômica que as exonerações determinadas pela Carta Magna.
A propósito, desfecho semelhante fora adotado pelo Tribunal Constitucional de Portugal, que se deparou com a mesma questão em 2011, no contexto da crise econômica que atingiu a zona do euro e tornou a redução do déficit público orçamentário – para adequação aos limites estabelecidos pela União Europeia – uma necessidade urgente. Naquela oportunidade, a Corte teve de analisar a constitucionalidade da Lei do Orçamento do Estado nº 55-A/2010, que reduziu, para 2011, os rendimentos dos funcionários públicos em 3,5 a 10%, incluindo a remuneração do Presidente, do Primeiro-ministro, deputados e juízes do próprio Tribunal Constitucional. Com efeito, o Acórdão nº 396/2011 reconheceu a constitucionalidade dos dispositivos que promoveram a diminuição nos salários, sustentada na temporalidade da medida – uma vez que a norma teria vigência equivalente à da lei orçamentária – e no denominado princípio da igualdade perante os encargos públicos, nos moldes do art. 13 da Constituição lusa, suscitado para defender que as reduções se encontravam dentro de um “limite do sacrifício” a ser suportado pelos servidores do Estado. Tal julgamento é paradigmático, e inaugura o movimento conhecido como jurisprudência da crise.
O Tribunal Constitucional, destarte, valeu-se da superioridade do interesse público, dentro de uma ordem necessariamente transitória, para decidir no sentido da não inconstitucionalidade daquelas medidas legislativas, que certamente conheceriam outro desfecho se em tempos menos instáveis.
A controvérsia, no Brasil, também se insere no cenário de conflitividade entre o interesse público no reequilíbrio premente da saúde financeira do Estado e a proteção da confiança dos servidores, especialmente quanto à garantia de irredutibilidade de seus vencimentos. É certo, neste contexto, que aos princípios em colisão não se deve atribuir faceta absoluta, de maneira que, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas do caso, deve-se sopesar a legitimidade da restrição imposta pela LRF ao direito dos servidores.
Esta ponderação é feita à luz da proporcionalidade, na perspectiva da proibição de que as medidas estatais resultem em arbítrio, de modo que a partir da análise de três subprincípios, seja possível identificar a validade de eventuais restrições a direitos fundamentais. Neste passo, examina-se: a adequação da medida na proteção do bem jurídico; a sua necessidade, i.e., a inexistência de outro meio que proteja igualmente esse bem jurídico e seja menos restritivo; e a sua proporcionalidade, a partir da análise de custos e benefícios.
Quanto à primeira problemática, percebe-se que a medida consistente na redução da carga horária e consequente adequação remuneratória é idônea para fazer face à situação de déficit orçamentário crônico que acomete o país, tutelando a saúde financeira do Estado e, ao cabo, a viabilidade para continuidade das políticas governamentais mais básicas.
No que diz respeito à dimensão da necessidade, a providência não representa sacrifício excessivo, de vez que, numa escala de agressividade face ao vínculo estabelecido entre o servidor e o Estado, a diminuição da jornada de trabalho, com a adequação dos respectivos vencimentos, é claramente menos drástica, pois, inobstante a óbvia perda parcial de poder aquisitivo, mantém-se hígida a relação de trabalho, o que não ocorre nas demais hipóteses constitucionalmente previstas, as quais preveem exoneração imediata e progressiva de comissionados, não-estáveis e estáveis. Ademais, a previsão do art. 23, §2º, da LRF ressalta o caráter temporário da redução remuneratória, apenas enquanto durar a política de reenquadramento das despesas ao limite legal.
Por fim, a diligência revela-se inteiramente proporcional, pois gera benefícios superiores aos seus custos sociais, a uma, porque um Estado quebrado não é capaz de assegurar direitos, e este é o futuro inexorável dos governos que apostam na imaturidade fiscal e, a duas, porquanto, conforme estudo publicado, em 2017, pela OCDE, sobre a estrutura do funcionalismo brasileiro, o servidor público ganha 67% a mais que o empregado privado, legitimando, destarte, a aplicabilidade do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos.
Espera-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal não ignore a força incontrastável dos fatos, e que tenha sensibilidade para o contexto de excepcional esforço fiscal que devemos empreender para, quem sabe, de uma vez por todas, materializar as promessas sociais insculpidas há 30 anos na Constituição Federal.

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JOTA

STF e a redução de vencimentos de servidor em meio à crise fiscal

O fim de uma controvérsia

STF e a redução de vencimentos de servidor em meio à crise fiscal