Cássio Cavalli

O já fragilizado e desprestigiado sistema de garantias reais e fidejussórias brasileiro está sob severo risco de ser completamente suprimido em casos de recuperação judicial do devedor principal, se tal medida for reputada como necessária para promover-se o princípio da preservação da empresa. Foi isso o quanto assentou o Superior Tribunal de Justiça em recente decisão,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> em cuja ementa pode ler-se que: “Na hipótese, a supressão das garantias real e fidejussória restou estampada expressamente no plano de recuperação judicial, que contou com a aprovação [majoritária] dos credores devidamente representados pelas respectivas classes (providência, portanto, que converge, numa ponderação de valores, com os interesses majoritariamente), o que importa, reflexamente, na observância do § 1º do art. 50 da Lei 11.101/2005, e principalmente, na vinculação de todos os credores, indistintamente.”
De um só golpe, o Superior Tribunal de Justiça jogou por terra o sistema de garantias reais e de garantias fidejussórias para casos de recuperação judicial. As potenciais consequências dessa decisão são devastadoras e capazes de impor imensuráveis prejuízos imediatos a todos aqueles que confiaram crédito a empresas brasileiras com a cautela de constituir garantias de pagamento de seu crédito.
Como é, - ou deveria ser, - de conhecimento geral, as garantias se prestam a conferir alguma segurança de pagamento ao credor caso o devedor principal não tenha condições de arcar com a obrigação, como ocorre nas situações de insolvência do devedor. Deveriam ser garantias, não fosse o fato de que o Tribunal competente para dar a última palavra sobre a interpretação da legislação ordinária brasileira entendeu que elas nada valem em caso de insolvência do devedor.
Vem de longa data o desprestígio das garantias no direito brasileiro. A regra da prioridade absoluta das garantias reais, praticamente universal e encontrada em quase todos os países, é solenemente ignorada no direito brasileiro. De acordo com referida regra, o credor titular de garantia real possui prioridade absoluta sobre todos os demais credores no recebimento do valor decorrente da excussão da garantia real. Isto é, o valor decorrente da alienação do bem dado em garantia deve servir para pagar prioritariamente o credor garantido. Somente após seu pagamento é que o saldo poderá ser utilizado para pagar demais credores do devedor insolvente.
No direito concursal brasileiro, referida regra tem sido sistematicamente desprezada.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Ao credor garantido por garantia real garante-se apenas uma prioridade relativa sobre alguns credores concursais na falência, mas o valor da excussão da garantia é arrecadado pela massa e utilizado para pagar diversos outros credores que possuem prioridade em relação aos credores garantidos. Conforme a regra do direito concursal, falido o devedor, o bem garantido é arrecadado pela massa, e a “garantia” passa a significar que o credor garantido ocupará o segundo lugar na ordem de pagamento dos credores concursais, ficando atrás dos credores trabalhistas. Foi esse desprestígio que conduziu ao desenvolvimento da alienação fiduciária em garantia, cuja estrutura dogmática permite que o credor garantido possa exercer sua prioridade absoluta sobre o bem alienado fiduciariamente mediante pedido de restituição do bem em caso de falência do devedor. Ou seja, a alienação fiduciária é, no direito brasileiro, o equivalente funcional da hipoteca e do penhor disciplinado em diversos outros ordenamentos jurídicos nos quais respeita-se a regra da prioridade absoluta.
Aliás, foi em razão do esvaziamento das garantias reais que progressivamente elas deixaram de ser adotadas naquelas transações em que se pode constituir alienação fiduciária. A continuar-se o esvaziamento das garantias reais, em breve elas serão resquícios arqueológicos de um direito atávico que continua a ocupar espaço na codificação civil, mas que a ninguém interessa utilizar na vida dos negócios.
A principal crítica que se pode endereçar à decisão do Superior Tribunal de Justiça ora em comento, porém, não é que ela privará o mundo dos negócios da possibilidade de recorrer a garantias reais para operações futuras. A principal crítica consiste em que o Superior Tribunal de Justiça, ao assim decidir, mudou a regra no meio do jogo, em meio a uma das mais severas crises que o país já passou em sua história, quando os credores que confiaram crédito às empresas mais necessitam da estabilidade das garantias que, quando foram constituídas, eram tidas como confiáveis.
O Superior Tribunal de Justiça altera a regra do jogo sob o fundamento de estar a ponderar as necessidades de tutela dos credores garantidos com os imperativos da preservação da empresa em crise, como se os credores garantidos não fossem também eles empresas e que, desrespeitadas as garantias, sofrerão com o default e serão também arrastados para a crise. A decisão do Superior Tribunal de Justiça ora em comento contribui para disseminar a crise para todos os setores da economia, colocando em risco as empresas que confiaram que suas garantias seriam honradas em caso de insolvência do devedor.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça, ademais, também permite que se cancele a integralidade das garantias fidejussórias (avais e fianças) prestadas por terceiros que não a empresa em recuperação judicial, notadamente os seus sócios. Aqui cumpre indagar-se qual a relação que há entre o princípio da preservação da empresa em crise, adotado como fundamento da decisão, e a liberação pura e simples dos sócios que prestaram avais e fianças em favor da sociedade em crise. Uma tal decisão apenas permite que os acionistas que deram garantias em favor da empresa capturem significativa parte do valor da recuperação judicial, às expensas dos credores que contavam com avais e fianças. Ou seja, o Superior Tribunal de Justiça subtrai valor dos credores para favorecer acionistas, quando os acionistas deveriam ser os últimos a receber algo após serem pagos todos os credores. Essa indevida redistribuição de valores, de um lado, em nada contribui para a recuperação da empresa e, de outro lado, subverte completamente a justiça encerrada na regra de priorizar-se primeiro o pagamento dos credores para somente residualmente distribuir-se algum valor aos acionistas.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça, ademais, vai na contramão da integralidade dos textos legislados e dos precedentes jurisprudenciais até então elaborados, conforme restou claramente demonstrado no primoroso e preciso voto vencido, de lavra do Min. João Otávio de Noronha.
A decisão em comento ostenta o potencial de causar um efeito dominó de proporções desastrosas na economia brasileira e arrastar para a crise incontáveis empresas credoras, para não falar no sistema bancário, que já luta para enfrentar a grave crise por que passa o país. Não é exagero afirmar que essa decisão cria um risco sistêmico de imensas proporções para o sistema financeiro, que concede crédito após realizar criteriosa análise de risco na qual são levadas em consideração a qualidade das garantias ofertadas pelos tomadores de empréstimos. A decisão em comento permite que os devedores principais peçam recuperação judicial e, assim, cancelem todas as garantias que deram, bem como as garantias que terceiros deram em favor da empresa em recuperação. Como consequência, os bancos serão obrigados a reavaliar o risco de inadimplemento dos empréstimos que realizaram e, ante o incremento do risco, deverão aumentar a provisão dos créditos de realização duvidosa. Muitos bancos podem não suportar tamanho choque e poderão ter que fechar as portas. Para os bancos que suportarem o choque, não há dúvida de que serão obrigados a aumentar o custo do crédito para as empresas brasileiras, que terão maior dificuldade de se financiar.
Desprestigiar o sistema de garantias é a receita certeira para ampliar a crise econômica. Esse risco não pode ser ignorado pelas organizações empresariais, como as federações de indústrias e de instituições financeiras, que nesse momento são chamadas a desempenhar a sua missão institucional de proteger o ambiente de negócios no país.
Há diversos mecanismos para influenciar-se a alteração da decisão do Superior Tribunal de Justiça, dentre os quais se encontra a possibilidade de se apresentarem como amicus curiae no caso em questão. Por esse expediente, admitido pelo novo Código de Processo Civil, as federações de indústria e de bancos poderão esclarecer ao Poder Judiciário a importância de um sistema de garantias sólido e prestigiado, bem como os graves riscos sistêmicos decorrentes da supressão de garantias.
Espera-se que a sociedade brasileira reaja com rapidez para reformar a orientação imposta pelo Superior Tribunal de Justiça, a bem da superação da crise econômica atual e da afirmação de um ambiente de negócios seguro que beneficiará as futuras gerações.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a>      STJ, REsp 1.532.943, 3ª Turma, j. 13.09.2016, m.v., rel. Min. Marco Aurélio Bellizze.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>      Também em situações não relacionadas ao direito concursal desprestigia-se a regra da prioridade absoluta. Assim, por exemplo, em caso de execução hipotecária, o credor tributário terá prioridade sobre o credor hipotecário para receber o valor decorrente da excussão do bem dado em garantia.

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JOTA

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