Victor Silveira Martins

No dia 8 de abril, o presidente da França, Emmanuel Macron, anunciou a extinção da École Nationale d’Administration (ENA). A medida tem alto valor simbólico para a sociedade francesa. A ENA foi uma das instituições erigidas, ainda sob o Governo Provisório de Charles de Gaulle, em 1945, como pilar fundamental da reorganização do Estado francês pós-Segunda Guerra Mundial. Durante as quase oito décadas de seu funcionamento, a escola foi responsável pelo recrutamento e formação do corpo de altos funcionários da Administração pública francesa<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Ocorre, contudo, que, nos últimos, a ENA tem sido apontada como expressão máxima de um elitismo francês que não se coaduna com os ditames da sociedade moderna e às exigências de prestação eficiente de serviços públicos à coletividade.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Argumenta-se que, apesar de algumas pequenas reformas desde que o modelo foi concebido em 1945, ainda remanescem situações que conferem a determinados agentes vantagens no acesso aos principais postos da Administração pública, contribuindo, assim, para um menor grau de diversidade entre os membros do corpo administrativo de instituições do Estado.
No caso francês, esse debate está bastante centrado no fato de que os agentes melhores colocados nos processos de formação e avaliação promovidos então promovidos pela École eram logo alçados a posições iniciais de destaque em órgãos do serviço público francês – o que geralmente estava associado à permanência dos indivíduos na cidade de Paris durante toda a carreira.
O lugar da ENA será ocupado, a partir de agora, pelo Institut du Service Public (ISP), de quem se espera uma nova abordagem na organização do setor de recursos humanos do Estado francês, sobretudo no que diz respeito à “democratização” no preenchimento de determinados cargos públicos e a necessidade de se estabelecer etapas comuns a todos durante o período de permanência no serviço público.
Pois bem. A referência às transformações que, hoje, se tem notícia que estão ocorrendo na França parece bastante distante da realidade brasileira. Isso não tem a ver apenas com as diferenças institucionais entre os países – por exemplo, na França, há um sistema de dualidade de jurisdições, que não existe no Brasil desde a proclamação da República no país, em 1889.
Relaciona-se, também, com o fato de que, historicamente, houve, na França, antes mesmo da criação da ENA, uma preocupação mais intensa com o preparo dos agentes públicos que ocupam os cargos mais relevantes na estrutura do Estado.
Com a fundação da ENA, consagrou-se um modelo segundo o qual os indivíduos interessados em ocupar postos públicas em órgãos da Administração pública francesa devem, inicialmente, concorrer a uma vaga na escola de formação, onde são preparados e avaliados durante um prazo de pelo menos um ano para somente o posterior exercício das funções atinentes aos cargos.
No Brasil, o que se tem de mais parecido com o modelo francês de acesso aos cargos públicos da mais alta posição das assim denominadas “carreiras de Estado” (magistratura, promotoria, diplomacia, fiscal) é o processo de ingresso para a carreira diplomática, no qual os indivíduos aprovados em concurso devem passar, necessariamente, por um período de formação no Instituto Rio Branco, para somente depois passarem a exercer funções pertinentes ao cargo de diplomata.
Também no caso do acesso à carreira diplomática, há uma abertura maior para que agentes formados nos mais diversos campos de conhecimento possam ocupar o cargo de diplomata, assim como ocorre na França (mesmo para o exercício de atividade jurisdicional – administrativa – se admite, por exemplo, a presença de indivíduos não formados em Direito), tornando, desde já, o ambiente interno da Administração mais diverso.
As demais carreiras públicas – e aqui considera-se, além daquelas relativas à estrutura da Administração pública (como, por exemplo, dos cargos da Receita Federal), também as carreiras de promotor e juiz de direito, cujas atribuições dos respectivos cargos que não estão relacionadas efetivamente ao exercício de função administrativa, mas que são consideradas do alto escalão do serviço público – contam com sistemas próprios (descentralizados) de formação de seus ingressantes, mas que passam longe – muito longe – de qualquer proximidade com o modelo francês de formação de pessoal (a rigor, também, porque, na maioria dos casos, limita-se o acesso a esses cargos a agentes com formações específicas, como nas hipóteses em que somente bacharéis em Direito podem preencher determinado cargo).
<blockquote class="jota-article__eye">Há, no sistema jurídico-institucional brasileiro, uma preocupação maior no preenchimento dos altos cargos públicos acessíveis por concurso do que na qualidade dos ingressantes no serviço público.</blockquote>
Esse é um dado que se acentuou ainda mais nos últimos tempos, com um modelo de concursos públicos que se assemelham a processos de licitação pública regidos pela Lei nº 8.666/1993, isto é, um processo burocrático que é incapaz de colher na sociedade indivíduos verdadeiramente vocacionados e preparados para a atuação no setor público.
Isso não quer dizer que os servidores públicos no Brasil são ruins; mas, por outro lado, deve-se reconhecer que são, em geral, mal preparados para exercício das funções específicas dos cargos para os quais são designados. Em resumo, o concurso público se tornou mais um fim em si mesmo.
Com efeito, o que se deve ser ponderado é que o encerramento das atividades da ENA na França – e sua substituição por uma outra entidade – não significa, de modo algum, o fim de um modelo calçado na intensiva e variada formação dos indivíduos que irão ocupar os cargos públicos mais relevantes na estrutura do Estado francês.
As mudanças propostas pelo Governo francês, aliás, têm mais a ver com uma tentativa de responder a determinados clamores da sociedade, e efetivamente não estão muito bem explicadas. Afinal, o mesmo argumento do combate ao “elitismo” e a necessidade de conferir oportunidades a todos os interessados em realizar função públicas foi usado para a criação da ENA, em 1945, quando se afirmava que os cargos públicos de maiores relevância na estrutura estatal eram ocupados por indivíduos provenientes de famílias detentoras de recursos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Nesse sentido, portanto, pode-se dizer que o modelo francês continua a ser uma referência que pode inspirar eventuais reformas no setor de recursos humanos do Estado brasileiro visando a uma melhor qualidade na prestação de serviços públicos (em sentido amplo) à sociedade.
Há, aqui, sem dúvida, uma perspectiva relacionada à produtividade do setor público brasileiro, a qual, como se sabe, necessita ser melhorada no país<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. A formação e o intenso preparo dos agentes públicos ocupantes de postos em instituições relevantes do Estado parecem fortalecer esse objetivo.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> As competências da ENA no recrutamento e formação de pessoal da Administração pública foram estabelecidas pelo art. 5º da Ordonnance nº 45-2283, de 9 de outubro de 1945.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> RACINE, Pierre. A Escola Nacional de Administração (França) e sua evolução. (tradução de Marcos Henrique Cortes). Revista do Serviço Público, Brasília, 109 (1), jan./mar., 1974.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Cf. COSTA, Ana Carla Abrão; FRAGA NETO, Armínio; SUNDFELD, Carlos Ari. Hora de reformar o RH do Estado. Estado de São Paulo. São Paulo, 04 de novembro de 2018. Disponível em: &lt;https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,hora-de-reformar-o-rh-do-estado,70002583603&gt;. Acesso em 27 de abril de 2021.

Macron

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O fim da École Nationale d´Administration (ENA)

O que isso tem a ver com o Brasil?