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Reforma tributária

O federalismo e a progressividade tributária entram num bar

Retomada do vigor na capacidade de investimento pelos estados contribuiria para a saúde econômica nacional

André Horta
21/10/2022|05:40
Atualizado em 09/11/2022 às 10:21
federalismo
Crédito: Pixabay

Provavelmente as duas disfunções crônicas mais óbvias e estruturais da nossa economia do setor público sejam a da crise de nosso federalismo e a da carência de progressividade no nosso sistema tributário. 

O problema do federalismo brasileiro, na feliz síntese do economista Fernando Rezende, é o problema dos estados no federalismo brasileiro. E dado o agravamento das suas condições fiscais em mais de R$ 140 bilhões[1] em perdas de receitas de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) após as Leis Complementares 192 e 194/2022, entre outras alterações legislativas que subtraíram receitas estaduais, essa configuração foi atualizada com insucessos maiores.  

Um pouco antes deste status terminal que se instalou em 2022, discutíamos, até 2019, como tratar da redução de 13% na participação dos estados no conjunto de receitas disponíveis do país entre 1964 e 2014. De como o esvaziamento da autonomia financeira se refletiu, por óbvio, na fragilização de investimentos de estratégia regional, acentuando as tantas desigualdades da agenda brasileira, além do esmaecimento da atuação dos governadores na condução das pautas do país, empobrecendo a qualidade da política nacional. 

Há um ângulo bastante prosaico da nossa recomposição federativa: os recursos dos estados precisam ser recobrados, recuperar um volume mais proporcional às suas responsabilidades, se desejamos que a sociedade usufrua das vantagens políticas e administrativas do federalismo. 

O federalismo opera um sistema em que o todo é mais que a soma das partes, em que os avanços individuais podem ter alcance maior quando procurados coletivamente. Isto se tramita no equilíbrio dinâmico entre duas iniciativas que buscam uma constante conciliação de objetivos: por um lado, se trata de um sistema político em que a ação conjunta de unidades federadas consegue realizar fins que não conseguiria, ou que teria resultados modestos, se agissem apartadamente. Por outro, permite que os estados ampliem o exercício autônomo das singularidades de suas vontades política, administrativa e financeira reguladas pelas suas sensibilidade e necessidade reclamadas pela comunidade regional. 

A redução gradativa dos estados na participação das receitas acabou por definir a precariedade como sintoma de suas atividades no nosso sistema político.  

Prato cheio para detratores do papel do Estado na promoção do bem-estar social, que têm podido alegar a dismorfia estrutural das partes como sendo uma ineficiência substancial do sistema público. 

Já a progressividade tributária é uma virtude formal da tributação que dispensa apresentações técnicas. Na legislação, trata-se de um princípio de altura constitucional, expressão da capacidade contributiva. 

A atividade econômica recompensa de forma assimétrica o trabalho e esforço humanos e a tributação é uma das formas bastante eficiente de não permitir que essa descompensação daquelas relações privadas se degenere em crescimento de desigualdades. 

O Imposto de Renda, tributo que completa um século existência no sistema brasileiro esse ano, é o mais emblemático dos tributos articuladores da solidariedade fiscal progressiva. Embora se possa exercitar a progressividade também no lado da arrecadação dos impostos sobre o patrimônio, nenhum Estado Nacional ancora seu erário majoritariamente nestes tributos. Figuram mais como relevantes receitas públicas derivadas, de cariz complementar, dado os fluxos patrimoniais serem muito mais lentos e de menor dimensão que a dinâmica experimentada pela renda. 

A utilidade marginal decrescente da renda, por seu lado, promove uma base eficiente para mobilização de recursos para a coletividade, na medida em que a arrecadação progressiva se intensifica nos estratos (de renda) de onde ela menos retornaria ao ciclo de produção e consumo, uma vez os mais ricos deterem excedentes de rendimentos que transbordam a sua necessidade de sustento e gastos outros de consumo. 

O restabelecimento das bases de arrecadação calcadas no imposto de renda que foram abandonadas, por seu turno, não tem a mesma pressão sobre a carga tributária que ocorre quando há aumento real de arrecadação de tributos indiretos. A progressividade que lhe é própria (ao IR) compreende desoneração de rendas menores, incentivando o consumo e o crescimento da economia. A razão representativa da carga tributária bruta (arrecadação/PIB) é, então, preservada mesmo com aumento da arrecadação uma vez esta ser acompanhada de estímulos à ampliação do (denominador) PIB. 

É neste ponto que me privo de pormenorizar mais esses dois assuntos tão conhecidos para poder sublinhar como as direções dessas pautas reclamam uma convergência. 

Em 2021 um consultor comentava em jornal que mudar de residência do Brasil para os Estados Unidos estava cercado de "armadilhas". A arapuca que ele se referia era a do financiamento do estado americano: o imposto de renda na pessoa física estadunidense tem uma alíquota federal que pode chegar a 33% e que o estado da Flórida cobra outros 17%. E ainda há a possibilidade de iniciativa das municipalidades. No Brasil a alíquota máxima é de 27,5%. 

Embora essa anteposição do interesse público ao privado expressado pela matéria de jornal contenha um óbvio desdém analítico, vamos mirar este caso por outra perspectiva que aqui nos interessa: os estados arrecadando 17% de imposto de renda. A instância federativa intermediária com competência para instituir o mais prestigiado dos tributos progressivos. Estranho ao Brasil, trata-se de instituto de certa forma prosaico, ocorrendo às economias da União Europeia. 

Os estados, com aproximadamente 85% de sua principal receita tributária própria advinda do ICMS, estão enredados em certa inevitabilidade de que quanto mais eficiente forem na arrecadação própria, mais regressivo se tornará o sistema tributário do país (com o aumento da proporção do ICMS no agregado de tributos). 

No próximo ano, a reforma tributária voltará à vitrine do debate público. E repactuação federativa é assunto inseparável quando se está para se alterar receitas públicas. Na evolução morfológica de nosso federalismo fiscal, os estados perderam mais de 13% de receitas disponíveis entre 1964 e 2014. A experiência internacional deve orientar a reconfecção de nosso ambiente de fiscalidade mergulhado em problemas quantitativos e qualitativos.  

Recuperar a nossa fisionomia federativa aprofundando os traços de progressividade por meio de uma extensão de parcela de arrecadação do IR à competência tributária dos estados iria muito além das tradicionais virtudes e propriedades gerais de se investir um sistema mais progressivo. 

A mobilização de uma nova esfera de governo para uma arrecadação de tributo qualitativamente melhor promoveria o crescimento econômico do país, como demonstram tantos estudos que o relaciona à redução das desigualdades[2]. A retomada do vigor na capacidade de investimento pelos estados igualmente contribuiria para a saúde econômica nacional. 

A reforma tributária dos tributos indiretos destravaria uma vez que a reacomodação financeira do novo cenário é um tradicional óbice que sabota há décadas essa iniciativa. Refiro-me ao tema da transição da cobrança da origem para o destino nas operações interestaduais com o ICMS. Ora, aprimorar a progressividade significa novos recursos à mesa. Com a recuperação de parte das receitas subtraídas aos estados na trágica trajetória do histórico federativo desses entes, é possível também consumar imediatamente a tributação indireta já que se ficaria afastado o desequilíbrio financeiro natural nessa redefinição, ainda que fosse imediata a implementação da arrecadação para o destino, porquanto nenhum estado experienciaria redução de recurso. 

O momento político de se ajustar essas duas pautas tão fundamentais oportuniza uma discussão simultânea com clara porosidade entre elas: a progressividade, onde surgem novos recursos; e o federalismo, onde estes faltam. É um diálogo que se impõe pela própria afinidade das variáveis envolvidas. Aproximar para reconstruir o federalismo com recursos de melhor qualidade do que aquele que existia quando os estados se debilitaram ao longo de décadas é uma perspectiva tão intuitiva que seria pouco técnico, ou talvez anedótico, ignorar.


[1] O impacto calculado pelo Comsefaz é de:
R$ 10,7 bilhões - redução de 35% no IPI (estados perdem no repasse do Fundo de Participação dos Estados)
R$ 59,5 bilhões - ICMS combustíveis
R$ 27,8 bilhões - ICMS energia elétrica
R$ 12,7 bilhões - ICMS telecomunicações
R$ 34 bilhões - não incidência da TUST/TUSD

[2] Joseph Stiglitz fez uma reunião exaustiva de pesquisas neste sentido em “O Preço da Desigualdade” (Lisboa: Bertrand, 2013).logo-jota