Davi Reis S. B. Pirajá

“Durante as falas do promotor e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim, e talvez até mais de mim do que meu crime” <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Assim Albert Camus introduz a conclusão de uma das mais sensíveis e universais narrativas sobre o Tribunal do Júri, em “O Estrangeiro”. O romance sutilmente expõe as mazelas do julgamento popular que extrapola a perquirição do crime, para buscar, no réu, um “coração criminoso” <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Tal confusão entre o ser e o fato foi historicamente responsável por inúmeros vereditos injustos e preconceituosos; afinal, a alma não cabe nos autos. Daí a importância da superação histórica que rechaçou o direito penal do autor, para estabelecer o direito penal do fato.
Atualmente, todavia, a prática criminalista chama-nos a avançar na reflexão de Camus.
Se Mersault – personagem-título da novela – fora submetido ao édito condenatório em razão de expressões de sua personalidade, hoje o que se percebe é uma indevida exploração de fatores da vida privada do ofendido, estranhos aos fatos sob julgamento, para negar-lhe o lugar de vítima.
Assim como que se precisou afirmar que a forma de condução de vida não pode conferir a alguém o rótulo criminoso, revela-se necessário proclamar, na atualidade, que a personalidade da pessoa não lhe pode retirar a condição de vítima.
A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 779 e a recente edição da Lei 14.245/21 (Lei Mariana Ferrer) apresentam-se como importantes avanços na busca de repelir a seletividade de vítimas. Tanto o precedente vinculante como o ato normativo cesuram a perversa argumentação que apregoa dignas de proteção apenas as mulheres ditas “honestas”.
A razão subjacente aos atos, o político assim como o jurídico, é uma: não se pode inverter a ordem de julgamento, para, ao invés de julgar-se o fato e sua autoria, julgar-se a vítima, com vistas a desvendar sua reputação a fim de comprovar se contribuiu, ou não, para o crime <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. A lição de Camus, outrora destinada à acusação, agora se estende para a defesa, mostrando que ao direito cabem os fatos, não as pessoas.
A simplicidade que permeia esse fascinante encontro entre a literatura e o direito é que não há coração de criminoso, não há coração de vítima, há apenas corações, todos humanos e todos igualmente dignos de proteção.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Tradução de Valerie Rumjanek. 35ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 103.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CAMUS, Albert. Op. cit., p. 100.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> SANTIN, Janaína Rigo; CAMPANA, Josiele Bona; GUAZZELLI, Maristela Piva; CAMPANA, Liziane Bona. A violência doméstica e a ineficiência do direito penal na resolução dos conflitos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba. Síntase, v.39, 2003, p. 155-169, p. 165.

albert camus

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JOTA

Uma breve análise de 'O Estrangeiro' sob a ótica da vitimologia

O Estrangeiro, o Tribunal do Júri e a construção de vítimas

A construção de vítimas: o que se percebe é uma indevida exploração de fatores da vida privada do ofendido para negar-lhe o lugar de vítima