Natasha Salinas

Lucas Thevenard Gomes

No último dia 5 de fevereiro de 2020, o Presidente da República editou decreto<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> regulamentando dispositivo da Lei de Liberdade Econômica<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
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Este dispositivo trata do direito que cada cidadão ou pessoa jurídica passará a ter de solicitar a revisão de norma regulatória nacional desatualizada que o impeça de produzir ou comercializar produtos e serviços. O decreto em questão caracteriza como desatualizadas as normas estatais que estiverem em contradição com normas internacionais. Pelo texto do decreto, somente estão sujeitas ao pedido de revisão as normas que estiverem em desacordo com aquelas produzidas por seis entidades internacionais: Organização Internacional de Normalização (ISO), a Comissão Eletrotécnica Internacional (IEC), a Comissão do Codex Alimentarius, a União Internacional de Telecomunicações (UIT) e a Organização Internacional de Metrologia Legal (OIML). Por ser o texto taxativo, entendemos que normas produzidas por outras entidades internacionais não poderão ser invocadas para fins da revisão normativa deste decreto.
O decreto estabelece procedimentos para o pedido de revisão de normas supostamente desatualizadas. O particular poderá requerer, a qualquer ente da administração pública<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> com competências regulatórias, a revisão da norma em um prazo máximo de 6 (seis) meses. Caberá ao órgão regulador deferir ou indeferir o pedido. No caso de deferimento, total ou parcial, o órgão regulador terá duas opções: (i) revogar a norma interna desatualizada sem editar nova norma, permitindo que o particular exerça plenamente a sua livre iniciativa ou; (ii) editar nova norma técnica que incorpore o conteúdo internacionalmente aceito.
Há um pressuposto implícito na imposição de normas internacionais à atividade dos órgãos reguladores: o de que as normas internacionais são mais legítimas e coerentes. Sobre a legitimidade, sabe-se que parte das decisões tomadas pelas referidas entidades internacionais não são necessariamente dotadas de transparência e por vezes não contam com a participação de importantes atores afetados pelo processo de regulação, como consumidores e usuários de serviços. Sobre a coerência, inexiste, no sistema internacional, mecanismos de coordenação regulatória das atividades desenvolvidas pelas entidades internacionais contempladas no decreto. Assim como há fragmentação e duplicidade regulatória em ambientes regulatórios nacionais, o mesmo fenômeno ocorre no plano internacional. É possível, portanto, que haja contradição entre as normas produzidas pelas seis organizações eleitas pelo governo federal.
As regras para o procedimento de revisão de normas desatualizadas podem gerar riscos para a autonomia institucional e para a capacidade regulatória dos órgãos públicos afetados. O mecanismo para a revisão de normas desatualizadas foi desenhado de forma a gerar fortes pressões sobre os órgãos reguladores do país.
Certos órgãos reguladores serão forçados a destinar parte de seus recursos e de sua capacidade institucional para a análise dos pedidos de revisão. Caso tais pedidos se tornem excessivamente numerosos, é possível que haja, na prática, uma deturpação da agenda regulatória do órgão pelos agentes regulados. Os gestores públicos perdem, assim, controle sobre a alocação do seu tempo e recursos.
Essa conclusão torna-se particularmente relevante diante do esforço que vem sendo realizado pelo Estado brasileiro, após a edição da chamada Lei das Agências<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, para aprimorar e padronizar os processos de produção normativa, que incluem a realização de consulta pública e a elaboração de análise de impacto regulatório como etapas necessárias.
O prazo de 6 (seis) meses para a análise dos pedidos de revisão é exíguo, se observarmos os padrões que as agências reguladoras seguem hoje. O projeto Regulação em Números<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, da FGV Direito Rio, realizou análises quantitativas dos mecanismos de participação social de todas as agências reguladoras federais, desde a criação desses órgãos até o ano de 2018. Foi possível constatar que a fase de participação social, da convocação da audiência ou consulta pública até a disponibilização do relatório final, dura cerca de 215 dias, em média. Esse tempo de duração não abrange todo o processo de produção normativa, pois não contabiliza o tempo de produção de materiais preparatórios (notas técnicas, análise de impacto regulatório, entre outros), e tampouco contabiliza o tempo entre a disponibilização do relatório final da consulta e a efetiva implementação pelas agências da nova norma.
Na verdade, o decreto editado nesta semana não deixa claro se esse processo de revisão deverá cumprir os mesmos requisitos. De toda forma, há uma mensagem contraditória para as agências reguladoras: por um lado, são exigidos padrões de qualidade regulatória e participação social mais elevados; por outro lado, é estabelecido um processo pouco ordenado de revisão das normas existentes, que não conta com mecanismos robustos de participação social e esvazia a capacidade das agências de organizar sua agenda regulatória. Entre ambas as soluções, ficamos com a primeira.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Decreto n. 10.229, de 5 de fevereiro de 2020. Este foi o segundo decreto editado para regulamentar a referida lei. Antes dele, a Presidência da República editou o Decreto n. 10.178, de 18 de dezembro de 2019, regulamentando os critérios e procedimentos para a classificação de risco. O decreto regulamentou o art. 3º, VI da Lei de Liberdade Econômica.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O Decreto se aplica à administração pública direta, autárquica e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Lei 13.848, de 25 de junho de 2019.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> O “Regulação em Números” é um projeto institucional da FGV Direito Rio, que tem por objetivo desenvolver estudos empíricos sobre agências reguladoras federais. Desenvolvido no âmbito do Centro de Pesquisa em Direito e Economia (CPDE) da FGV Direito Rio, o Regulação em Números atualmente desenvolve quatro frentes de pesquisa principais: (i) Mecanismos de Participação (audiências e consultas públicas) das agências reguladoras federais; (ii) processo administrativo normativo das agências; (iii) Controle político/legislativo das agências reguladoras; (iv) Controle judicial e externo das agências reguladoras.

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JOTA

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