Nina Ranieri

Impossível pensar o ensino jurídico sem pensar o Estado. É o Estado quem cria o Direito, é o Estado quem regulamenta os cursos jurídicos, o Estado é objeto das disciplinas de Direito Público. Esses diferentes modos de conexão são complementares, influenciam-se mutuamente e concorrem para o problema de saber qual Estado se ensina, para que e como.  Tais indagações implicam juízos de valor e considerações a respeito da efetividade do ensino jurídico em benefício da organização da sociedade.
O ensino do Direito compreende os cursos de graduação destinados à formação profissional e os cursos de pós-graduação, stricto e lato sensu, voltados à formação de pesquisadores e acadêmicos. Como pessoa jurídica de direito interno, dotado de soberania, elaborar do Direito, o Estado é causa primária do ensino jurídico e o Direito que se ensina é o Direito estatal.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Os problemas dessa vertente de relacionamento entre o Estado e o ensino jurídico dizem respeito à legitimidade e legalidade da atuação daquele e suas repercussões no Direito; se a finalidade do Estado Democrático de Direito consiste em promover e assegurar a mais ampla proteção dos direitos fundamentais, a produção do Direito estatal não poderá ter outros fundamentos senão a soberania popular, a democracia, os valores republicanos e a justiça social. Em outras palavras, nem o Estado pode produzir “qualquer” Direito, por assim dizer, posto que inconstitucional, nem o ensino jurídico pode ser de “qualquer” Direito.
Já do ângulo da regulamentação do ensino jurídico profissionalizante, o Estado tanto impõe sua visão dos cursos jurídicos, por meio das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito - DNCGD<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, como condiciona a expedição de diplomas juridicamente válidos. Da criação de instituições isoladas de ensino superior no séc. XIX à criação de universidades no início séc. XX, da expansão do ensino superior após a década de 1970 ao momento presente, o padrão geral de interferência do Estado brasileiro na educação superior - e não apenas em relação aos cursos jurídicos, é intenso. É o Estado quem planeja; legisla; regulamenta; autoriza, reconhece, credencia, recredencia, supervisiona cursos e instituições; avalia alunos, cursos e instituições por todo o País; etc.  Tudo se dá nas esferas pública e privada, e em relação a todos os sistemas de ensino, sendo a maior parte dessas atribuições de competência da União.
Num país com mais de 1.200 cursos de Direito autorizados pelo Ministério da Educação – o que denota a força de atração da profissão, se o Estado quanto pode o Estado na garantia da qualidade do ensino? Se há controle da criação e do reconhecimento dos cursos, sua avaliação pelo Estado não implica, necessariamente, garantia de qualidade.
No contexto da cultura bacharelesca e credencialista que acompanha o ensino jurídico, a atividade do Estado é cartorial.  Por outro lado, se as DNCGD avançam em direção à uma visão da prática profissional que procura soluções por meio do Direito, de outro, na grande maioria dos cursos, mantem-se o ensino tradicional baseado em disciplinas estanques e ainda norteado pela repetição, reprodução e seriação (Ghirardi, 2015), o que não contribui para a desejada e imprescindível “postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem” (DNCGD, art. 3º e 4º).
Essas observações conduzem à crucial terceira vertente: a do Estado como objeto do ensino jurídico, o que remete às questões “qual Estado ensinar” e “como ensiná-lo”.
<blockquote class="jota-article__eye">Do ponto de vista do conteúdo, o desafio do estudo do Estado nos cursos de Direito tem a ver com a compreensão de que o Estado é o único ente capaz de garantir os direitos humanos e assegurar a sua realização.</blockquote>
Para isso existe Estado; daí decorre sua legitimidade frente ao paradigma do Estado Democrático de Direito.  Transmitir esse entendimento significa não apenas fortalecer a democracia como também formar profissionais críticos e com capacidade de inovar, o que se mostra imprescindível na área jurídica (mas não apenas nela).
Metodologicamente, o conteúdo se organiza conforme os diferentes campos de investigação das disciplinas jurídicas, de acordo com a clássica dicotomia Direito Público/Direito Privado e, também, com as perspectivas formativas exigidas pela BNCCD: formação geral, formação técnico-jurídica, formação técnico-profissional (art. 5º.). O ensino do Estado está presente em todas elas, direita ou indiretamente.
Para exemplificar, destaco, nas DNCGD, o eixo  da “formação geral”  (art. 5º, I), de concepção interdisciplinar, que tem por objetivo oferecer ao graduando “os elementos fundamentais do Direito em diálogo com as demais expressões do conhecimento filosófico e humanístico, das ciências sociais e das novas tecnologias de informação (...).”  No que concerne ao Estado, a exigência conduz a estudos interdisciplinares, incluída a sociologia e a história, com apoio na história das instituições políticas e na filosofia política, pelo menos.
Não por outras razões, a Teoria do Estado - disciplina básica do primeiro ano do curso de Direito da Faculdade de Direito da USP, precede o ensino do direito positivo público e privado.  Seu objeto compreende os temas fundamentais do poder do Estado e suas repercussões no Direito; nesse campo investigativo são estabelecidas as relações entre o sistema de princípios e de conceitos políticos com a estrutura geral do sistema jurídico. Na atual quadra da história do Estado Brasileiro essa abordagem é fundamental.
No campo da Ciência Política, pesquisas vêm identificando já há mais de uma década a desconfiança dos cidadãos acerca das instituições democráticas. <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>  Paralelamente, nota-se o aumento da percepção negativa das instituições estatais por parte da população, em todos os níveis de renda, escolaridade e idade, e em relação a todos os Poderes e partidos políticos, principalmente devido a denúncias de corrupção e malversação de recursos públicos.
O problema é que, se de um lado, a percepção negativa das instituições estatais influi positivamente na disposição dos cidadãos em escolher governantes e representantes, de outro, projeta efeitos negativos em termos de participação política, gerando alienação e desinteresse de parte da maioria da população.   Em suma: em mais de trinta anos de regime democrático, tornamo-nos uma “democracia eleitoral”, mas não uma “democracia efetiva”, na qual predominem temas como direitos, lei e uma compreensão mais ampla das possibilidades inerentes ao exercício da cidadania no Estado Democrático de Direito.  A forma como se ensina o Estado aos operadores do Direito repercute tal cenário.
Historiadores e analistas da situação política brasileira contemporânea<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, identificam na peculiar hostilidade contra o sistema representativo ou no desinteresse por ele um dos traços mais importantes de nossa cultura política, abrandado apenas por influência da redemocratização, no último quartel do século XX.  As causas desse fenômeno – detectado nos primórdios de nossa democracia representativa, no século XIX - decorreriam não só de deficiências objetivas das instituições políticas e da cultura política da sociedade brasileira, mas também de percepções ideológicas das elites e de interpretações teóricas deficientes, empobrecedoras da esfera política.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Adicionalmente, a construção do Estado brasileiro esteve mais voltada à fixação da soberania sobre o território e na implantação dos aparelhos tributários, judiciários, administrativos, policiais etc., ou seja, à constituição e estabilização da estrutura de autoridade, sem maiores considerações com a importância do sistema representativo como instrumento de legitimação do poder estatal no Estado de Direito.
Já na esfera administrativa o Estado brasileiro contemporâneo - herdeiro das estruturas administrativas criadas em 1938 e em 1967 (por via do Decreto Lei 200), vem demonstrando baixa capacidade de efetivação dos direitos previstos na Constituição de 1988. Tais problemas, há muito conhecidos, tornaram-se gritantes durante a pandemia do Covid-19, com consequências sociais, políticas e econômicas desastrosas. A ineficiência institucional diante de demandas sociais, a fraude, a corrupção e o desrespeito aos direitos fundamentais comprometem a submissão dos cidadãos ao próprio Estado de Direito.
Como se pode perceber, o ensino tradicional do Direito dificilmente dará conta do quanto lhe é exigido pelas circunstâncias atuais, carregadas de outros temas à espreita dessa geração: choques interculturais em razão das migrações; desequilíbrios naturais, urbanos e digitais; esgotamento de recursos naturais; desigualdades sociais, dilemas bioéticos, diversificação do mercado de trabalho, pandemias etc. O que significa dizer que os cursos jurídicos não apenas devem habilitar para o enfrentamento de desafios anunciados ou desconhecidos (o que requer o ensino para a inovação no Direito), mas, sobretudo, para viver e atuar em ambiente democrático e republicano (o que exige a compreensão dos sentidos axiológico e teleológico do Estado Democrático de Direito).
Os conhecimentos teóricos assumem, portanto, a condição de ferramentas para a interpretar e propor soluções, mediante protagonismo e participação dos estudantes.  De fato, dos cursos jurídicos, hoje, exige-se menos a transmissão de informações e mais a “curadoria” de informações, com estímulo à pesquisa e a realização de projetos que induzam reflexões acerca do aperfeiçoamento do Estado e das instituições políticas, em perspectiva multidisciplinar e plural.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
As universidades de pesquisa têm maior responsabilidade no alcance desses objetivos. Nelas, a cultura acadêmica, para alunos e professores, é a do questionamento, da investigação, da descoberta; todo esse exercício intelectual tem por finalidade estimular a apresentação de novas ideias, de diferentes formas.   Treinamento profissional significa capacitar, adestrar, habilitar para um mister; é a preparação para o conhecido. Ensino aliado à pesquisa, por outro lado, significa propiciar a capacidade de pensar, de se desenvolver intelectualmente; é a preparação para o conhecido e o desconhecido, particularmente nos contextos complexos, voláteis, incertos e ambíguos da sociedade contemporânea.
Para os cursos jurídicos da USP (em São Paulo e Ribeirão Preto), o momento é auspicioso.  A pauta de reflexão do ensino deverá mudar, em curto prazo, com o ingresso de cerca de 50% de seus alunos oriundos das escolas públicas. Visões múltiplas da realidade brasileira serão, por certo, incorporados ao ensino e à pesquisa.  As relações do Estado com os cursos de Direito, nesse contexto, vão muito além do quanto inicialmente apontado.
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Cf. Ministério da Educação – Conselho Nacional de Educação. Resolução no.5, de 17/12/2018. http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2018-pdf/104111-rces005-18/file
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> HAGOPIAN, Frances. 2005. Chile and Brazil, in DIAMOND, Larry; MORLINO, Leonardo. Assessing the quality of democracy, Maryland, The Johns Hopkins University Press, p. 123-62. MOISES, José Murilo; CARNEIRO, P. G.. 2008. Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime – o caso do Brasil, in Opinião Pública, 14(1), jun-2008, p.1-42. SORJ, Bernando; MARTUCCELLI, Danilo. 2008. O desafio latino-americano: coesão social e democracia, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CARVALHO, José Murilo de. 1995. Desenvolvimiento de La ciudadanía en Brasil, México, Fondo de Cultura Econômica, Fideicomiso Historia de las Américas. FAUSTO, Bóris. 1995. Brasil, de colônia a democracia, Madrid, Alianza Editorial. LAMOUNIER, Bolívar. 2005. Da Independência a Lula: dois séculos de política, São Paulo, Augurium Ed..
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Lamounier, op.cit.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Cf. Forma Klafke, Guilherme e Marina Feferbaum- Metodologias Ativas em Direito, São Paulo, Atlas, 2020.

j-kelly-brito-PeUJyoylfe4-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

É o Estado quem cria o Direito, quem regulamenta os cursos jurídicos e é objeto das disciplinas de Direito Público

O Estado no ensino jurídico: conexões muito além das aparentes

É o Estado quem cria o Direito, quem regulamenta os cursos jurídicos e é objeto das disciplinas de Direito Público