Henrique Smidt Simon

Crime é fato típico, antijurídico e culpável. É necessário que a conduta esteja prevista em lei, que o ato não seja permitido pelo ordenamento e que haja dolo ou culpa.
Nessa linha, no crime de “invasão de dispositivo informático” (art. 154-A do Código Penal – CP) o núcleo do tipo é acessar dispositivo informático, com violação de mecanismo de segurança, para obter, adulterar ou suprimir dados ou informações, ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Qualquer um pode ser sujeito passivo, mesmo o poder público (art. 154-B do CP). O bem jurídico são os segredos contidos nos dispositivos. Entende-se que o crime é formal.
O tipo protege a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, direitos fundamentais oponíveis contra o estado e demais indivíduos (inciso X do art. 5º da Constituição Federal – CF).
Mas, com relação ao estado e seus agentes, a regra é a publicidade e conformidade à forma legal. Além disso, os atos de agentes estatais estão sujeitos à prestação de contas e à sindicabilidade, a não ser nos casos previstos em lei para a segurança da sociedade e do estado (inciso XXIII do art. 5º da CF).
E o princípio da publicidade (caput do art. 37 da CF) se aplica a toda organização estatal, incluindo seus agentes. Há, também, o dever de transparência e publicidade dos atos processuais, cujo sigilo precisa ser motivado (art. 5º, inciso XL, da CF).
<blockquote class="jota-article__eye">Em resumo, o princípio é o controle do estado e seus agentes por suas instituições e pela sociedade, com as exceções previstas em lei.</blockquote>
O art. 189 do Código de Processo Civil prevê as hipóteses processuais de sigilo, aplicáveis subsidiariamente ao processo penal (dentre elas, proteção do interesse público ou social; proteção constitucional à intimidade). O art. 20 do Código de Processo Penal prevê o sigilo do inquérito para garantir a investigação e o interesse da sociedade.
Já as informações sob domínio do estado têm as hipóteses de sigilo reguladas na Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI, art. 23), mas é necessária sua classificação formal. Para particulares, são outras as normas que regem o sigilo: os incisos X, XI, XII e XIV do art. 5º da CF preservam a inviolabilidade da vida privada, do lar, da correspondência, das comunicações, do segredo profissional e da situação fiscal e bancária.
São direitos oponíveis contra o estado, não direitos do estado oponíveis contra o indivíduo, de forma que eles não protegem o poder público e seus agentes, quando nessa condição.
Sobre a proteção de dados em dispositivos informáticos, a Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) estabelece (art. 7º) a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, com previsão de indenização, bem como o sigilo do fluxo de comunicação, salvo ordem judicial, e o sigilo das informações armazenadas.
Já a Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) regula apenas a proteção de particulares, não de dados do estado, e tira do seu âmbito o tratamento de dados para fins de segurança pública e para atividades de investigação e repressão de crimes (art. 4º, inciso III), aplicando-se a Lei nº 9.296/1996, que criminaliza as interceptações de agente público sem autorização judicial ou o seu uso para fim não autorizado em lei (arts. 10 e 10-A).
O contexto normativo importa para a discussão da proteção de particulares contra abusos do estado e seus agentes. Com os meios de comunicação eletrônica, não é possível controlar como agentes públicos se comportam para atingir objetivos particulares, em detrimento da proteção dos indivíduos, do devido processo legal e da verdade dos fatos, podendo praticar atos administrativos, processuais e decisórios formalmente corretos, mascarando desvios de finalidade e ilícitos penais.
Exemplo desses problemas é o que ocorreu na Operação Lava-Jato, desde o início cercada de dúvidas e discussões. Sempre que questionados, os envolvidos saíam em defesa de suas ações e decisões.
Alegavam a correção dos atos investigatórios e processuais e o combate à corrupção. Todavia, não há mais dúvida de que os envolvidos em primeiro grau (<a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/deltan-sobre-ordem-para-soltar-lula-vou-ligar-pra-pf-pra-pedir-pra-nao-cumprir-04032021" target="_blank" rel="noopener noreferrer">há indícios de envolvimento de desembargadores e ministros</a>) usaram o processo como meio formal para atingir resultados combinados privadamente, por aplicativo de mensagens.
A descoberta veio com a <a href="https://theintercept.com/2020/01/20/linha-do-tempo-vaza-jato/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">série de reportagens denominada “Vaza-Jato”</a>. O problema está na <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/erro-cometido-por-hacker-levou-pf-a-identificar-e-prender-suspeitos.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">origem do material</a>: mensagens trocadas entre agentes envolvidos obtidas a partir de invasão de aparelho celular.
Desde então, os integrantes da Lava-Jato têm negado os ilícitos, afirmam a ilicitude do material (seria fruto de crime) e não reconhecem as falas (alegam poderem ter sido adulteradas).
A questão da validade da prova torna-se o ponto principal. Além da óbvia possibilidade de sua utilização em benefício dos réus (não se pode condenar alguém sabidamente inocente), há que se discutir seu uso contra agentes do estado.
Indaga-se: têm os agentes de estado, no exercício de suas funções, atuando em razão dela e utilizando bem público, direito à proteção de segredo contra a sociedade? Porque o estado não tem direito à privacidade ou à intimidade.
No caso da Vaza-Jato, o que foi descoberto veio da <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/acessei-informacoes-de-grande-interesse-publico-diz-hacker-da-lava-jato.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">intervenção de indivíduo atuando em nome próprio e em busca de identificar ilícitos praticados pelos agentes, sem auferir qualquer vantagem</a>. Para tanto, invadiu smartphone funcional de integrante da força-tarefa de Curitiba, captou os conteúdos e transmitiu para a imprensa, que os divulgou.
As revelações da Vaza-Jato mostram que os órgãos de controle, investigação e julgamento combinaram o resultado processual. Quem vigiaria os vigilantes? As defesas questionaram procedimentos e resultados, mas as respostas negavam qualquer ilegalidade nos autos (claro, o processo corria como simulacro, enquanto as decisões reais e as violações aconteceram em ajustes realizados por meio de aplicativo de mensagem).
A única maneira de saber que agentes do estado estavam praticando diversos ilícitos era por meio do acesso a algum dos smartphones funcionais dos envolvidos. Não fosse assim, como se defender dos ilícitos? Os dados foram passados para veículos de imprensa, depois apreendidos pela PF, <a href="https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/02/09/relator-vota-pela-rejeicao-de-recurso-da-lava-jato-contra-acesso-de-lula-a-mensagens-da-spoofing.ghtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">forçada a entregá-los para uma das defesas por ordem do STF</a>.
O material divulgado na mídia e pela defesa trata apenas de mensagens de participantes da Lava-Jato no exercício de suas funções, nunca de conversas íntimas ou de terceiros não envolvidos.
Como nada íntimo foi revelado, as informações não estavam protegidas por segredo e sua obtenção não pode ser considerada crime, pois deveriam estar disponíveis ao público, ao menos aos participantes do processo.
O sigilo de informações da Administração depende de ato formal e é no interesse da sociedade ou da proteção do estado, não em seu próprio benefício ou de seus agentes para escaparem de ilícitos que cometam.
Esses, quando no exercício de suas funções, estão submetidos a regime especial de sujeição, não podendo reivindicar contra a sociedade direitos que particulares têm contra abusos do estado.
E tem que ser considerado que a LAI (art. 21, parágrafo único) exclui da possibilidade de sigilo, por parte dos entes públicos, informações que possam configurar violações de direitos humanos.
Os conteúdos captados mostram, até mesmo, indício de tortura (art. 1º, I, a, da Lei nº 9.455/1997), com o <a href="https://www.conjur.com.br/2021-fev-06/deltan-dallagnol-admite-prisao-eficiente-forcar-delacoes" target="_blank" rel="noopener noreferrer">uso de prisão preventiva para forçar delações</a>. O estado que viola direitos fundamentais e depois os invoca com o fim de impedir sua responsabilização é um estado autoritário que passou a funcionar em regime de exceção, em que o direito não se lhe aplica mais.
Também é de se considerar a hipótese de legítima defesa de terceiro. O conteúdo demonstra ilícitos de todos os tipos contra investigados e réus, cerceados nas suas capacidades de defesa; <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/moro-achava-fraca-delacao-de-palocci-que-divulgou-as-vesperas-de-eleicao-sugerem-mensagens.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">perseguição política</a>; <a href="https://www.conjur.com.br/2021-fev-19/midia-suica-noticia-cooperacao-ilegal-procuradores-lava-jato" target="_blank" rel="noopener noreferrer">quebras de sigilo bancário</a> e <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/lava-jato-driblou-lei-para-ter-acesso-a-dados-da-receita-mostram-mensagens.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">fiscal ilícitas</a>; <a href="https://blogs.oglobo.globo.com/bela-megale/post/defesa-de-lula-diz-que-forca-tarefa-tentou-emparedar-stj-com-investigacao-de-familiares-de-ministros.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ameaças</a> e <a href="https://www.poder360.com.br/lava-jato/stf-autoriza-stj-a-usar-conversas-da-lava-jato-em-inquerito-contra-procuradores/">investigações ilícitas contra magistrados</a> que participariam dos julgamentos; <a href="https://www.conjur.com.br/2021-fev-27/revelacao-pf-forjou-depoimentos-ajudar-lava-jato-foi-destaque" target="_blank" rel="noopener noreferrer">forja de provas para incriminação</a>; <a href="https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/03/01/lava-jato-defesa-lula-stf-mensagens.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ocultação de provas de inocência</a>; divulgação ilícita de conversas privadas (<a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/09/conversas-de-lula-mantidas-sob-sigilo-pela-lava-jato-enfraquecem-tese-de-moro.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">adulteradas no seu significado por não apresentar o conteúdo completo</a>).
O que o “hacker de Araraquara” fez foi usar meio proporcional para preservar as vítimas contra os mais diversos abusos de juízes, promotores e delegados, garantindo a elas o único mecanismo de defesa que poderiam ter: acesso ao real processo de investigação e decisão da Lava-Jato, feito por conversas privadas combinando ações e atos processuais, invenção e ocultação de provas, violando direitos fundamentais e humanos.
Portanto, afora o que for de caráter estritamente particular, o material obtido pela Vaza-Jato e depois acessado por ordem do STF é lícito, porque obtido em circunstâncias que retiram a antijuridicidade do ato de invasão de dispositivo informático, seja porque, no caso, não estava presente o bem jurídico tutelado, seja por legítima defesa de terceiro.
Como tal, o conteúdo pode ser usado não apenas em benefício dos réus, mas contra os envolvidos na Lava-Jato no que tange a ilícitos cometidos para e no exercício da função, na condição de agentes do estado.
<hr />
O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
https://youtu.be/1T8EYyNCQeM

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JOTA

A captação de dados de agentes estatais a partir do caso "Vaza Jato"

O Estado não possui direito fundamental à privacidade

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