Danilo Dias

Vladimir Aras

Estariam as 10 Medidas imbuídas de furor punitivo? Essa foi a tese defendida, no jornal Estado de São Paulo, na edição de 9.12.2016, por renomados advogados, sob o título “A verdade sobre as 10 Medidas”. A par de criticarem o espírito do pacote anticorrupção subscrito por 2,5 milhões de pessoas,  apoiado por outros milhões de brasileiros e em exame no Senado, os autores elogiaram a mutilação que o texto sofreu na Câmara. Afirmaram também que os tipos penais, incluídos para perseguir juízes e promotores, prevendo pena de prisão ao magistrado que faltar com o decoro no exercício do cargo seriam exigências do Estado de Direito. Mas a temeridade argumentativa não para por aí. Após assinalar o suposto espírito punitivo das 10 Medidas, defenderam sem cerimônia a criminalização da violação de prerrogativas de advogado. Com isso, o juiz ou promotor que deixar de atender a um advogado cometerá crime punido com prisão, podendo ser acusado de violar a prerrogativa do advogado de "exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional".
Com todo o respeito, esperava-se mais da reunião de quatro dos mais destacados causídicos do país. O texto, além de subestimar a inteligência do leitor e falsear a realidade, peca por sua incoerência intrínseca e revela muito mais do que pretendiam seus subscritores. 
Vamos começar pelo fim. Na tentativa de desqualificar as 10 Medidas, os autores reciclam ideias ultrapassadas, que negam a República e as consequências de se viver em um regime de igualdade perante a lei. Um certo odor oitocentista exala do texto. Todos são iguais, mas uns mais iguais do que os outros. É o país do bacharelismo de privilégios e de castas, que teima em não aceitar o limite de tempo que lhe é próprio: o passado longínquo.
Endurecer leis contra o crime de colarinho branco seria sanha punitiva do Ministério Público, mas tornar crime (inclusive na modalidade culposa!) a violação de prerrogativa da classe dos advogados seria um avanço civilizatório. Ora, nenhuma categoria de profissionais liberais têm hoje as garantias a eles conferidas: os conselhos de classe de médicos, arquitetos, engenheiros e professores estão muito aquém em prestígio e prerrogativas, se comparados à Ordem dos Advogados do Brasil. Certamente, há razões históricas ponderáveis para o tratamento especial concedido à OAB. Mas isso não parece suficiente para uns poucos advogados que entenderam necessário inserir no texto das 10 Medidas a possibilidade de mandar para a cadeia quem, sob um juízo subjetivo, embaraçar o exercício de qualquer de suas prerrogativas.
A verdade é que as 10 Medidas surgiram para resolver problemas que afligem os brasileiros: a corrupção e a impunidade. A sociedade percebeu com muita lucidez que as propostas apresentadas pelo Ministério Público eram uma forma razoável e segura de dar início a um debate necessário e premente no Congresso Nacional. Não foi por outra razão que o apoio social foi maciço, inclusive partindo de muitos advogados que honram a bela história de defesa da cidadania dessa classe. Na elaboração do pacote anticorrupção, evitou-se qualquer proposta de viés corporativo, pois a ideia era, de fato, promover uma intervenção no sistema jurídico de forma a desobstruir alguns gargalos que tornam a corrupção um crime vantajoso do ponto de vista financeiro e que inviabilizam a aplicação da lei penal, sobretudo a réus com poder econômico ou político.
Num debate honesto, é preciso lembrar que, desde a votação na Comissão Especial da Câmara, do projeto das 10 Medidas contra a Corrupção já não constavam propostas polêmicas, como a que regulava o habeas corpus, a que criava o teste de integridade e a que propunha a cura de vícios de provas coletadas de boa-fé. O processo legislativo encarregou-se de aperfeiçoar as propostas, mesmo porque nunca foi intenção do MPF vê-lo aprovado sem reflexão, como uma mera chancela às propostas de avanço regulatório num tema tão complexo e caro às democracias.
Deve-se desmistificar ainda uma inverdade: várias das iniciativas originais tinham cunho preventivo, e não repressivo, justamente porque se percebeu a importância da articulação de políticas dessas duas naturezas. O ambiente de negócios privados e o espaço de administração pública precisam ter mecanismos de prevenção de práticas corruptas, a fim de tornar o país mais atraente para investimentos estrangeiros e assegurar um mercado verdadeiramente competitivo, especialmente nas contratações públicas. 
Nenhuma das 10 Medidas originais saiu de mentes autoritárias. Muitas delas sequer foram imaginadas pelo Ministério Público, já tendo sido aprovadas pelo Congresso Nacional como mandados normativos, porém ainda carentes de implementação. De fato, várias das ideias que buscam a melhor estruturação dos sistemas de prevenção e repressão à corrupção já vigoram no Brasil, internalizadas há mais de uma década em razão de tratados internacionais. Uma rápida leitura da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31.1.2006) e da Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional (referendada pelo Decreto nº 5.015, de 12.3.2004) mostrará que várias das 10 Medidas têm ali sua gênese ou inspiração, em textos acolhidos pela comunidade internacional e já validados pelo Parlamento brasileiro na década passada. 
Deve-se lamentar o oportunismo de quem inseriu no Projeto propostas corporativas, com evidente propósito intimidatório, ignorando tudo o que sempre dizem os criminalistas acerca de novos tipos penais. Falam de intervenção mínima, que o direito penal é a "ultima ratio" e recriminam tipos penais abertos. A proposta para a criminalização da violação de prerrogativas de advogados (por que só as dessa categoria?) incorre em todas essas críticas corriqueiras. A autonomia de juízes e membros do Ministério Público não seria ela também uma garantia do livre exercício da profissão de advogado? Não cremos que possa interessar às centenas de milhares de advogados do Brasil ter juízes e procuradores incapazes de atuar com altivez, independência e segurança na promoção e afirmação de direitos individuais e sociais. As notícias de violação desses direitos chegam todos os dias ao Ministério Público e ao Judiciário trazidas pelos cidadãos e por seus procuradores; violações que, não raro, recomendam que essas carreiras de Estado tenham um regime de garantias adequado para que não se intimidem diante do poder político e do poder econômico.
Seguramente, a sociedade brasileira e a grande maioria dos advogados esperam da OAB, nesse momento crítico pelo qual passa o país, uma postura assertiva de enfrentamento à corrupção, com a apresentação de propostas que aperfeiçoem as 10 Medidas, e não apenas que reforcem de forma desproporcional e irrazoável prerrogativas de classe. Por toda a gloriosa história de lutas pela liberdade, todos nós esperamos da OAB uma contribuição efetiva contra a corrupção e contra o roubo dos dinheiros públicos.

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JOTA

Esperamos da OAB uma contribuição efetiva contra a corrupção 

O Espírito das 10 Medidas

Esperamos da OAB uma contribuição efetiva contra a corrupção