Leonardo Amorim

Passo importante foi tomado no fim de junho para a formação de consenso internacional sobre a definição do crime de ecocídio. Um painel internacional de doze especialistas, reunido pela fundação Stop Ecocide e a Universidade da Califórnia em Los Angeles, propôs, após meses de trabalho, uma definição técnica para o crime de ecocídio. O texto será enviado como proposta de emenda ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI). O objetivo é permitir que o sistema de justiça internacional possa investigar e punir criminalmente indivíduos responsáveis por danos graves e intencionais ao meio ambiente.
Atualmente, organizações e especialistas atuam em duas estratégias paralelas para permitir que o TPI considere atos que geram graves danos ambientais como crimes internacionais. A primeira estratégia consiste em demonstrar que tais atos de destruição são cometidos em conjunto com ou por meio de condutas já tipificadas como crimes contra a humanidade, genocídio, ou devastação ambiental no contexto de guerra. Estratégia incerta, mas prontamente disponível, ela foi seguida nos dois casos recentes apresentados à procuradoria do TPI sobre danos ambientais no Brasil. 
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Tanto no pedido de abertura de investigação realizado em novembro de 2019 pela Comissão Arns e o CADHu, quanto em pedido apresentado pelas lideranças indígenas Raoni Metuktire e Almir Suruí em janeiro de 2021, os danos ambientais causados funcionam como pano de fundo das acusações contra Jair Bolsonaro e membros de seu governo. Os pedidos concentraram-se principalmente nos crimes de genocídio contra povos indígenas, no primeiro caso, e em crimes contra a humanidade, no segundo. Ambos os casos ainda estão sob avaliação da procuradoria do tribunal.
Já a segunda estratégia consiste em trabalhar junto aos 123 países signatários do Estatuto de Roma, para que a assembleia de partes aprove a inclusão de um quinto crime internacional no tratado. Essa estratégia tende a produzir resultados juridicamente mais seguros e estáveis no longo prazo. Devido à natureza longa e dispendiosa de uma negociação com tantas partes, a iniciativa dos experts buscou encontrar definição consensual sobre o crime, com o objetivo de facilitar a aceitação da emenda.
<h3>Proposta de emenda</h3>
Segundo os doze experts que compõem a comissão, os trabalhos são diretamente inspirados nas discussões doutrinárias que surgiram ao longo do julgamento do Tribunal de Nuremberg. “O trabalho foi inspirado em esforços anteriores, realizados em 1945, para formular definições de novos crimes internacionais, incluindo o de genocídio e os crimes contra a humanidade. O ecocídio se baseia em ambos os termos, em forma e substância."
A <a href="https://bit.ly/3gSqwtW" target="_blank" rel="noopener noreferrer">proposta de emenda</a> incluiria o artigo 8 ter ao texto do Estatuto, com o seguinte texto:
Para os fins deste Estatuto, “ecocídio” significa a ação ilícita ou temerária cometida com conhecimento de que há uma possibilidade substancial de que danos ambientais severos, e que sejam generalizados ou de longa duração, sejam causados por tal ação.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O texto especifica que o termo “ilícito” refere-se a atos ambientais já proibidos pela legislações nacionais e internacional, incluindo-os sob o escopo do TPI se atingirem grau de severidade grave. Já o termo “temeroso” (“wanton”) refere-se à desconsideração irresponsável do risco de danos que sejam desproporcionais aos potenciais benefícios sociais e econômicos.
<h3>Lacunas na proteção internacional do meio ambiente</h3>
A proposta permitirá preencher perigosas lacunas presentes na atual ordem jurídica global.
<blockquote class="jota-article__eye">Corporações multinacionais já provaram que podem esvair-se da responsabilização por atos de destruição ambiental através do mero deslocamento de ativos a outro país.</blockquote>
A Chevron, que extraiu petróleo do Equador entre os anos 70 e início dos anos 90, conseguiu evitar o cumprimento de uma decisão transitada em julgado na justiça equatoriana, que a condenou a pagar 8 bilhões de dólares em programas de recuperação ambiental por ter causado danos ambientais e sociais aos povos indígenas da região. Alegando que as questões contratuais afeitas ao período em que operou no país só poderiam ser resolvidas por câmara arbitral holandesa, a empresa deslocou seus ativos para fora do Equador e se recusa a reconhecer qualquer responsabilidade. A atuação do TPI poderia vir a ser ativada quando conflitos de jurisdição como esse acabam provocando vazios normativos na punição dos responsáveis por danos ambientais.
O mesmo pode ser dito para litígios climáticos. Está em curso tendência de que cortes nacionais exijam que os países sejam mais ousados em suas metas climáticas (como nos casos da Urgenda na Holanda, do Affaire du Siècle na França e de <a href="https://www.dw.com/pt-br/alemanha-deve-melhorar-suas-metas-clim%C3%A1ticas-decide-tribunal/a-57373619" target="_blank" rel="noopener noreferrer">decisão</a> da Corte Constitucional Alemã de 2021). Mais recentemente, matrizes de empresas internacionais foram responsabilizadas por danos ambientais globais causados por suas filiais (<a href="https://www.theguardian.com/business/2021/may/26/court-orders-royal-dutch-shell-to-cut-carbon-emissions-by-45-by-2030" target="_blank" rel="noopener noreferrer">casos</a> das Associações Holandesas face à Royal Dutch Shell, ambos julgados em 2021). A tipificação do ecocídio daria novo fôlego e mais sistematicidade às iniciativas de “inundar as cortes”, já que permitiria que estes litígios fossem tratados como questões propriamente internacionais e criminais, e não apenas como questões nacionais civis de efeitos extraterritoriais.
Finalmente, governos nacionais teriam uma nova fonte de constrangimento para aplicar suas próprias legislações nacionais. Dado o princípio da subsidiariedade da jurisdição do TPI, este só pode ser acionado quando os sistemas de justiça nacionais falham em realizar a justiça. A tipificação do ecocídio impediria que estados desprezem suas próprias regulamentações nacionais por falta de meios ou de instituições independentes para aplicá-las. Essa hipótese é um risco para agendas anti-ambientais como a defendida por Bolsonaro.
Tendo o TPI competência para julgar apenas indivíduos, essas lacunas certamente não seriam plenamente preenchidas pela sua atuação. Porém, seria ativada uma camada acessória de responsabilização daqueles que tomam decisões em nome das empresas e estados nacionais responsáveis pelos atos descritos pelo Estatuto de Roma como ecocídio.
<h3>Iniciativas nacionais de tipificação</h3>
A questão da tipificação do ecocídio é alvo de importantes debates em diferentes contextos nacionais. No Brasil, o PL 2787/19, recentemente aprovado pela Câmara e em debate no Senado, prevê pena de reclusão de 4 a 12 anos e multa para quem causar “desastre com destruição significativa da flora ou mortandade de animais”, assim como causar rompimento de barragem. Na última assembleia de partes do TPI, os países insulares do Pacífico, especialmente atingidos pelas mudanças climáticas, apresentaram manifestação conjunta instando os países membros a priorizar a tipificação do crime de ecocídio. Já a Assembleia Nacional da França aprovou em abril a tipificação do crime de ecocídio, punindo com penas de até 10 anos de prisão e multa de até 4,5 milhões de euros quem executar intencionalmente atos ilícitos que provoquem danos graves e de longa duração ao meio ambiente. O projeto será debatido no Senado francês.
Acesso à proposta do painel de especialistas: <a href="https://bit.ly/3gSqwtW" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://bit.ly/3gSqwtW</a>
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Texto da proposta original em inglês: “For the purpose of this Statute, “ecocide” means unlawful or wanton acts committed with knowledge that there is a substantial likelihood of severe and either widespread or long-term damage to the environment being caused by those acts.”

ecocídio no direito internacional

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JOTA

Análise sobre a apresentada proposta de emenda ao Estatuto de Roma

O Ecocídio e o Tribunal Penal Internacional

Análise sobre a apresentada proposta de emenda ao Estatuto de Roma