Manoela Nasiasene Lins Feitosa Galvão

O ano era 2000, marco temporal importantíssimo para o século que findava, uma vez que desabrocharia em um novo milênio. Em Milão, porém, a data também significava a deflagração das comemorações dos cem anos da morte de Giuseppe Verdi – falecido em um 27 de janeiro, só que de 1901, em um luxuoso quarto do Grand Hotel de Milão<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> –, as quais teriam início no Teatro La Scalla, com a estreia da montagem de Il Trovatore, dando início à nova temporada da casa.
Com filas quilométricas e ingressos esgotados, o torpor da pré-apresentação, regida por Riccardo Muti – atualmente diretor musical da Orquestra Sinfônica de Chicago –, antecipava um porvir extasiante.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Com o início da performance, os presentes esperavam ansiosamente pelo terceiro ato, quando Salvatore Licitra cantaria “Di quella pira”, a caballeta mais famosa daquela obra. No entanto, quando esse tenor atingiu a última nota, a sala inteira metamorfoseou-se em uma erupção de vaias, apupos e reclamações, e Mario Fuolega, um banqueiro que assistia a tudo da plateia superior, gritou: “A culpa é do maestro!”
O que aconteceu naquele fatídico dia foi que o tenor Salvatore Licitra fora orientado pelo maestro Riccardo Muti a terminar a caballeta cantando na nota sol, para ser fidedigno ao originalismo da partitura de Verdi.
A plateia, entretanto, insurgiu-se contra tal decisão, uma vez que suas expectativas foram frustradas – ao fim da caballeta, é tradição que o tenor atinja o famoso do di petto, o dó de peito, em vez de sol, como uma ostentação do talento do cantor.
Jack M. Balkin, professor de Direito da Faculdade de Direito de Yale, em seu artigo intitulado “Verdi’s High C”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, publicado em 2013, explica que o que ocorreu foi meramente um litígio interpretativo. Enquanto todos os espectadores vibravam com a antecipação do climático dó de peito, Muti julgou apropriado permanecer o mais próximo possível da obra de Verdi.
Como contraste, tomemos o exemplo do enquadramento da homofobia na Lei do Crime Racial: em 2019, o plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADO 26 e do MI 4733, interpretou que o Congresso Nacional foi omisso ao não editar lei que tornasse criminosos os atos de discriminação contra pessoas LGBT, englobando a homofobia e a transfobia sob a redoma jurídica do crime de racismo<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Fosse adotada a tese dos votos vencidos, para garantir uma parecença maior à letra da lei, o ordenamento jurídico só veria equivalente punitivo de tais condutas – tendo em vista o princípio da estrita legalidade – após a redação de legislação penal própria.
<blockquote class="jota-article__eye">O que têm em comum tais casos é a problemática da performance.</blockquote>
Balkin escreve que, no âmbito da pesquisa em transjuricidades, debruça-se demasiadamente sobre a literatura, quando, na verdade, uma analogia mais precisa e de fácil compreensão é aquela com as Artes Cênicas, que, assim como o Direito, estão imbuídas de responsabilidades e deveres inerentes à atividade de atuar perante uma plateia – de um lado, entreter e emocionar os que assistem, e de outro, apresentar resolução fidedigna à vontade dos que demandam perante uma Corte.
Isso porque, por mais detalhado que seja o nosso ordenamento jurídico, desde nossa Constituição assaz analítica, até os mais específicos diplomas infraconstitucionais, o texto, em hipótese alguma, se interpreta sozinho – há de ter sempre quem o aplique, para que a justiça funcione enquanto instituição.
O Direito, como a Música e o Teatro, envolve muito mais que um documento e um leitor; ele trata de um complexo de influências recíprocas entre os criadores desses documentos, aqueles que os aplicarão, e os que testemunharão os documentos sendo postos em prática e, por eles, serão frontalmente afetados, formando, assim, o chamado triângulo da performance.
Nessa formação triangular, a plateia tem um papel axial: a sua presença gera distintas responsabilidades para quem performará um texto, tanto de fidelidade ao texto original, quanto de lealdade aos próprios espectadores, os quais têm o poder de validar, autorizar e legitimar uma performance.
A plateia é, pois, a comunidade interpretativa na qual performance ocorre, balizada por convenções, instituições e padrões avaliativos que agem tais quais termômetros de autenticidade que definirão a recepção da performance.
A interpretação de Riccardo Muti foi malquista devido às particularidades da audiência italiana: de fato, o dó de peito nunca foi escrito por Verdi, porém a decisão do compositor pode ter tido muito mais a ver com as capacidades do elenco que ele tinha à disposição, que com sua verdadeira e profunda intenção; se Verdi entendesse que Carlo Baucardé, o tenor da primeira montagem, pudesse atingir o dó com confiança, talvez o tivesse incluído na partitura original, assim como se, à época da edição da Lei de Crimes Raciais, em 1989, o legislador compreendesse a extensão da violência desferida contra minorias sexuais cotidianamente – as quais, principalmente nos anos 80, durante a epidemia do vírus HIV, eram constantemente estigmatizadas e marginalizadas –, talvez tivéssemos tido, há décadas, um tipo penal específico para crimes de homofobia.
Com o passar dos anos, a técnica do canto operático foi-se aprimorando, até que se tornou esperado de um tenor que ele consiga sustentar um dó sem dificuldade alguma. Foi assim que surgiu o do di petto – da expectativa nutrida pela plateia de uma exibição dos talentos dos cantores, que, por sua vez, nunca falhavam em demonstrar, sempre que possível, suas habilidades. Por isso, há quem diga, inclusive, que o do di petto é um presente do povo a Verdi.
Apesar de não ter planejado a construção de Il Trovatore inicialmente contando com esta nota, a regular interação de atores e plateias autorizou esse precedente de performance que os espectadores expectam e apreciam.
Dessa forma, o posicionamento do maestro Muti não é tão conservador como cria – o contrário é verdadeiro, uma vez que não há maior ato revolucionário em uma sala de concertos repleta de fanáticos por ópera, do que a desfiguração de um dos mais honrosos símbolos da excelência italiana.
Tão repleto de interpretações divergentes quanto a Ópera é o Direito, permeado por convenções, responsável pela irresignação de plateias muito mais lotadas, e, como tal, indubitavelmente, nada mais é que, também, uma arte de performance.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> MARTINELLI, Leonardo. Acervo CONCERTO: A vida de Giuseppe Verdi. Disponível em: &lt;<a href="https://www.concerto.com.br/noticias/arquivo/acervo-concerto-vida-de-giuseppe-verdi">https://www.concerto.com.br/noticias/arquivo/acervo-concerto-vida-de-giuseppe-verdi</a>&gt; Acesso em: 26 de janeiro de 2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BALKIN, Jack M. Verdi‘s High C. Texas Law Review, v. 91, p. 1687-1709, 2013.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> STF. STF enquadra homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa. Disponível em: &lt;http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010&gt; Acesso em: 26 de janeiro de 2021.

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JOTA

Tão repleto de interpretações divergentes quanto a Ópera é o Direito

O dó de peito de Verdi e o originalismo interpretativo

Tão repleto de interpretações divergentes quanto a Ópera é o Direito