Mikhail Cancelier

Chico César, em letra de sua autoria, canta em oração: “Deus me proteja de mim/E da maldade de gente boa/Da bondade da pessoa ruim/Deus me governe e guarde”; inicio este artigo com tal citação por entender que precisamos clamar para que sejamos protegidos de nós mesmos. No dia 10/10/2023, foi aprovado pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF), o Parecer (com Complementação de Voto e com Substitutivo) do Projeto de Lei 580/2007. O Parecer teve como Relator o Deputado Pastor Eurico (PL/PE), que manifestou-se pela rejeição do texto principal, e pela aprovação do apensado <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=346155">Projeto de Lei 5.167/2009, como Substitutivo</a>.
Assim, a redação aprovada, estabelece “que nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento, à união estável e à entidade familiar”, alterando alguns artigos do atual Código Civil, e acrescentando a ele o Art. 1.727-A, definindo que a “interpretação de casamento e união estável e de seus requisitos neste código são de interpretação estrita, não sendo admitidas extensões analógicas”.
Em artigo publicado também no JOTA, em 2021<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-necessaria-constituicao-e-positivacao-de-direitos-da-comunidade-lgbtqia-30062021">falei sobre a necessária constituição e positivação de Direitos Civis da Comunidade LGBTQIAP+</a>. Passados dois anos dessa publicação, seu conteúdo permanece atual, visto que seus membros seguem invisíveis ao Ordenamento Jurídico Nacional. Em outras palavras, em função do modo como manifestamos nossas personalidades, e nos apresentamos como pessoas, somos, legalmente, considerados pelo Estado, como não-sujeitos de direitos.
Dito isso, neste artigo, quero trazer o foco para o conteúdo do Parecer do Relator do PL 580/2007, e de seus votos complementares. Textos que representam, por sua vez, parte da sociedade brasileira, visto ter sido parcela dessa sociedade que elegeu a categoria de agentes políticos que permanece, histericamente, gritando discursos de ódio, e transformando seus discursos em projetos de leis. Aliás, eleitores e eleitos, esses, que já deram provas de seus comportamentos erráticos, brutais, e antidemocráticos.
Eis, então, que o Relator, partindo de seu reconhecimento do Brasil como “nação cristã”, definiu que o “casamento entre pessoas do mesmo sexo é contrário à verdade do ser humano [e] tem como ponto de partida e finalidade a procriação, o que exclui a união entre pessoas do mesmo sexo”. Informando que fez uso de textos bíblicos como fontes histórico-normativas, conta que “o Antigo Testamento incluiu entre as histórias mais carregadas o drama da destruição de Sodoma e Gomorra […], cujos habitantes foram punidos por Deus por praticarem a homossexualidade”. E, ainda nessa linha, explicou que “Jesus […] no Novo Testamento condenou a prática da homossexualidade, […] afirmando que aqueles que incorressem nisso, assim como aqueles que praticaram outros tipos de delitos, não entrariam no reino dos céus […]”. Com tal “raciocínio”, o Relator apresentou seu primeiro conjunto de argumentos que justificam a “condenação ao  ‘homossexualismo’”, frisando que homossexuais comportam-se contrariando a lei de Deus, sendo, por consequência, contrários à natureza.
Continuando, o Relator voltou-se a “fatos científicos” que corroboram com seu posicionamento. Assim, narrou que “desde seu início, a psiquiatria incluíra a inclinação homossexual […] entre as doenças a serem tratadas; e que a retirada do “homossexualismo” do Manual de Diagnóstico e Estatística de Desordens Psiquiátricas, da Associação de Psiquiatras Americanos (APA), na década de 1970, teve como culpados “lobistas gays”, que pressionaram os médicos psiquiatras, fazendo-os decidir “que os homossexuais não são anormais”. Nesse ponto, o Deputado deixa claro que considera equivocado tal movimento, destacando que o “homossexualismo saiu de modo polêmico e, dito por muitos ‘ideológico’ e não científico, da lista do manual de classificação de enfermidades psiquiátricas, à época.
Em um dos momentos mais obscenos de seu texto (dentre tantos), o Relator comparou homossexuais a pedófilos, relatando, caluniosamente, que, na década de 1980, “ativistas homossexuais” lograram retirar, não apenas, a homossexualidade do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (em inglês, DSM), mas, também, a pedofilia.
O Relator grifa, ainda que “as relações homossexuais não são biologicamente formatadas para incorporar a complementariedade corporal dos sexos”, definindo que elas “não proporcionam o ganho social [do] casamento como origem da família pela sua abertura à vida, própria da complementariedade biológica do masculino com o feminino”, e que “as crianças que crescem sob a proteção de um casal homossexual são privadas do valor pedagógico e socializador da complementariedade natural dos sexos no seio da família”.
Os textos, em sua completude, causam repulsa. Uma sensação que mistura enjoo com estarrecimento. Não há, em momento algum, qualquer conexão à realidade, tanto jurídica, quanto social e histórica. Tampouco, parece haver conhecimento da anatomia do corpo humano, e de suas funcionalidades múltiplas. O texto é, de pronto, inconstitucional, tem teor altamente discriminatório e segrega os membros da Comunidade LGBTQIAP+ à categoria de cidadãos não merecedores de direitos. Imagino que, se fosse apresentado a parlamentares minimamente educados (num sentido formal), causaria, ao menos, perplexidade e constrangimento. Contudo, seu inteiro teor foi aprovado.
Temos, então, dois movimentos: a apresentação de um relatório de conteúdo fervorosamente odioso e inverídico, e, a aprovação desse conteúdo. Entendo serem ambos, movimentos que coadunam com o adoecimento social sofrido pelo Brasil nos últimos anos. Situação essa, que torna difícil acreditar que estamos diante de um cenário real.
Contudo, estamos, de modo que, prioritariamente, é vital esclarecer que o conteúdo redigido pelo Relator não pode, em nenhum nível, ser categorizado como mera manifestação de opinião (garantida aos parlamentares, pelo Art. 53 da CRFB/88). Como bem nos lembra Élida Silva<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, “para constar o direito da tutela jurídica constitucional da imunidade, é necessário averiguar […] a correlação entre as manifestações e o desempenho do mandato, independente do local que venham a ocorrer, pois a garantia estabelecida em prol da instituição parlamentar, não pode ser interpretada na conversão de uma liberdade de expressão odiosa e de privilégio pessoal”, e que o abuso das imunidades parlamentares pode caracterizar quebra de decoro (Art. 55 da CRFB/88).
O que temos aqui, dessa forma, é exemplo translúcido de discurso de ódio, direcionado, especificamente, à comunidade LGBTQIAP+. Discurso que, ao ter sido aprovado, foi, em algum nível, institucionalizado e corroborado pelo Estado. Ou seja, permitiu-se que tal conteúdo fosse levado à votação e, na sequência, aprovado. Coincidentemente, neste mesmo ano, o Governo Federal<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> lançou, o “<a href="https://drive.google.com/file/d/1u9gU06ZWbZaOfqbzcqatqo8yDwWTC1et/view?pli=1">Relatório de Recomendações Para o Enfrentamento ao Discurso de Ódio e ao Extremismo no Brasil</a>”, o qual reconhece que a recorrente utilização desse modo de linguagem tem “como efeito a crueldade, humilhação ou desrespeito [às] vítimas desses discursos”, desumanizando-as, e apontando o quão elas são “abjetas, perigosas e precisam ser eliminadas”. O Relatório, contudo, omitiu-se da análise do discurso de ódio proferido pelo próprio Estado, por meio de seus agentes, políticos ou não.
Logo, é urgente denunciar e esclarecer o que foi aprovado no dia 10/10/2023; que aquilo não pode ser tratado como simples projeto de lei. O que ocorreu foi a aprovação de redação que expressa discurso de ódio, ação de natureza violenta e de enorme potencial danoso. Nessa senda, diria, inclusive, que o problema maior não está no ato em si (projetos de lei de viés conservador são frequentemente aprovados), mas em seu conteúdo, visto ser, justamente, por meio do conteúdo, que o ato se transfigura, transformando-se em instrumento que perpetua violência extrema, viabilizando a discriminação, o assédio e a promoção do ódio à comunidade LGBTQIAP+.
Verdade, porém, que o discurso de ódio não é, ainda, tipificado. Aliás, não há norma direcionada especificamente a combatê-lo. Temos, contudo, em nosso Ordenamento Jurídico, diversas ferramentas capazes de impedir sua propagação e punir seus autores. Ocorre que, tamanha é nossa irrelevância,  enquanto comunidade, que o Estado permitiu a aprovação de um texto normativo que declara sermos menos humanos, menos naturais, menos dignos de construir uma família. A tristeza dessa realidade é abissal, e escancara o óbvio: para que possamos existir, completamente, nesta sociedade que, em parte, nos odeia, temos um longo caminho a trilhar. A luta é constante.
Finalizando, volto a Chico César, buscando um pouco de leveza, e lembrando que “É belo […] o amor sem anestesia/Dói de bom, arde de doce/Queima, acalma, mata, cria”; e cantando, em oração, torço para que chegue esse tempo, no qual poderemos experimentar viver em Estado de poesia.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CANCELIER, Mikhail. A necessária constituição e positivação de Direitos da Comunidade LGBTQIA+: Atenção à Luta por eficácia jurídica; por segurança jurídica e por igualdade jurídica. JOTA, 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-necessaria-constituicao-e-positivacao-de-direitos-da-comunidade-lgbtqia-30062021. Acesso em 16 out. 2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Silva, Élida de A. F. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E IMUNIDADE PARLAMENTAR À LUZ DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL. In: Virtuajus, 7(13), 273-283, 2023. https://doi.org/10.5752/P.1678-3425.2022v7n13p273-283. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/index.php/virtuajus/article/view/29798. Acesso em: 16 out. 2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Grupo de Trabalho do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania para apresentação de estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo, e para a proposição de políticas públicas em direitos humanos sobre o tema.

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JOTA

PL 580/2007 e a irrelevância da Comunidade LGBTQIAP+ para o Estado brasileiro

O discurso de ódio aprovado pelo Poder Legislativo

Discurso de ódio aprovado pela CPASF estabelece que relações homoafetivas não podem constituir casamento, união estável ou entidade familiar