Felippe Angeli

Entre todos os direitos sociais, o direito à segurança pública é possivelmente o que mais carece de regulamentação em nosso ordenamento jurídico. Contrariamente ao direito à saúde, à assistência social ou à educação, que contam com regulamentos infraconstitucionais que erigiram verdadeiros sistemas que preveem a cooperação federativa e determinam as obrigações de cada ente federativo seja no financiamento das ações, seja quanto ao acesso de seus serviços básicos, à segurança pública foi dedicado apenas um artigo na Constituição Federal, que basicamente define os órgãos prioritariamente responsáveis pela “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (art. 144, “caput”). Excetuadas as competências específicas da Polícia Federal e suas vertentes rodoviária e ferroviária, praticamente todo o arcabouço institucional voltado à segurança pública diz respeito aos Estados, a partir da gestão das Polícias Civis e Militares. Todavia, o texto constitucional estabelece uma ressalva no § 8º do art. 144, quando diz que “os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”. Trata-se de mera autorização, com objetivo bem definido.
A lacuna normativa não representa apenas uma curiosidade aos estudantes e profissionais do direito, mas exerce grande influência na maneira como a segurança pública tem sido estruturada desde a redemocratização. Em primeiro lugar, percebemos a orientação da administração pública em tratar o tema em sua esfera eminentemente policial, em detrimento de política públicas sistêmicas que abarquem as diversas dimensões do convívio humano na compreensão, prevenção e repressão da violência. Ainda, joga imensa pressão nos Estados na medida em que estes são facilmente percebidos como os únicos responsáveis pela promoção da segurança, mesmo considerando as deficiências orçamentárias decorrentes de nosso modelo fiscal e a dissociação legislativa que resulta da primazia das competências do Congresso Nacional em detrimento das Assembleias Estaduais. Por fim, há o distanciamento do cotidiano social inerente ao Estado, ao contrário do que ocorre com o Município. Como dizia o ex-governador de São Paulo, André Franco Montoro, “ninguém vive na União ou nos Estados, mas sim nos Municípios”.
É cada vez mais pacífico entre estudiosos do tema que, assim como a promoção da segurança pública deve extrapolar a dimensão exclusivamente policial, abarcando outros componentes sociais que influenciam diretamente nas vulnerabilidades mais associadas à disseminação da violência, as cidades tem um papel absolutamente fundamental na promoção da segurança, especialmente na compreensão mais ampla que percebe a segurança pública como componente de um guarda-chuva mais abrangente de direitos e obrigações a que se denomina cidadania. Neste sentido, aproveitando o período eleitoral que culminará nas eleições dos prefeitos municipais em 2016, o <a href="http://soudapaz.org/upload/pdf/nt_agenda_municipal_de_seguran_a_cidad_eleicoes_municipais_2016_16_08.pdf">Instituto Sou da Paz</a>, de São Paulo, o <a href="https://igarape.org.br/">Instituto Igarapé</a>, do Rio de Janeiro, e o <a href="http://www.ifidedigna.com.br/">Instituto Fidedigna</a>, de Porto Alegre, uniram esforços e produziram a <a href="http://soudapaz.org/upload/pdf/nt_agenda_municipal_de_seguran_a_cidad_eleicoes_municipais_2016_16_08.pdf">Agenda Municipal de Segurança Cidadã</a>, justamente com o objetivo de encarar a segurança pública para além da mera atividade policial, inserindo o debate sobre violência numa perspectiva mais ampla de cidadania e apontando as potencialidades do município no enfrentamento desta questão tão relevante para o país.
Inicialmente, é preciso dizer que uma das maiores contribuições que os municípios podem oferecer à segurança pública se refere à prevenção da violência. As características espaciais e administrativas do governo municipal colocam este nível da federação em posição privilegiada para que a segurança pública não seja pensada quando o delito já ocorreu, mas sim para que sejam identificadas as vulnerabilidades que fomentam ou facilitam a ocorrência de crimes, de modo que a administração pública possa promover ações que eliminem ou então minimizem essas vulnerabilidades. Outra característica fundamental do documento, que em nossa opinião deve pautar todo o debate político, independente do tema a que se refira, é que as políticas públicas sejam desenhadas a partir da observação de evidências e conhecimentos estabelecidos, deixando de lado ações eleitoreiras e populistas que infelizmente estão tão presentes em nosso cenário eleitoral. Há hoje acumulo suficiente por parte de pesquisadores, universidades e organizações da sociedade civil que indica o que funciona e o que não funciona em matéria de segurança pública. Já é mais do que hora de que os governos dos diferentes níveis da federação passem a considerar essas evidências na formulação de suas políticas. Por fim, como dissemos, os municípios ainda contam com o privilégio, pela característica de suas competências administrativas, de atuar na primazia da promoção da cidadania no desenvolvimento de suas políticas públicas.
Estabelecidos estas três premissas (a dimensão preventiva, a observância das evidências técnicas e a promoção da cidadania), a Agenda Municipal de Segurança Cidadã organizou suas propostas a partir de quatro eixos:
<ul>
<li>Eixo 1: Estrutura de Governança responsável pela implementação da Agenda Municipal de Segurança Cidadã;</li>
<li>Eixo 2: Produção e coleta de dados para diagnóstico, monitoramento e avaliação;</li>
<li>Eixo 3: Ações focalizadas em proteção e redução de fatores de risco de grupos populacionais, locais e comportamentos vulneráveis à violência;</li>
<li>Eixo 4: Orientação da Guarda Municipal para a mediação de conflitos e resolução de problemas.</li>
</ul>
O primeiro eixo diz respeito à relevância de uma liderança administrativa robusta, que dê prioridade à promoção da segurança cidadã na gestão municipal, estabelecendo uma visão de longo prazo e garantindo que os recursos necessários, financeiros ou humanos, serão investidos para que as ações saiam do papel e efetivamente ganhem as ruas das cidades. Para isso, é fundamental que o prefeito se envolva diretamente na criação e na consolidação das políticas, assessorado por uma estrutura administrativa que tenha efetivamente condições de enfrentar os desafios a serem superados.
O eixo 2 indica a necessidade de que as ações a serem desenvolvidas sejam definidas a partir de diagnósticos criteriosos, que levem em consideração as particularidades do território e de seus habitantes, sem abrir mão de um constante processo de monitoramento e avaliação que permita ao gestor público compreender quais são as políticas mais promissoras, direcionando seus esforços a elas. A administração pública pressupõe a gestão de recursos finitos e escassos, assim é fundamental que as energias sejam direcionadas de maneira a produzir os melhores resultados possíveis.
O terceiro eixo relaciona-se à perspectiva da cidadania e à posição privilegiada do município no desenvolvimento de políticas preventivas. Sabemos que determinados grupos sociais são especialmente afetados pela violência: mulheres, negros, crianças e adolescentes, a população em situação de rua, LGBTs, usuários de drogas e muitos outros são atingidos por vulnerabilidades específicas cujo enfrentamento exige medidas focalizadas e preventivas. O município tem muito a contribuir quanto a isto.
Por fim, o eixo 4 trata das Guardas Municipais, forças de “proteção municipal preventiva”, conforme estabelece o art. 2º do Estatuto das Guardas Municipais (Lei n.º 13.022/2014). Considerando sua vocação, e para não buscar mimetizar as atribuições de policiamento ostensivo e manutenção da ordem da Polícia Militar, evitando assim disputas por protagonismo e maior desintegração operacional, as Guardas devem ser orientadas à mitigação de vulnerabilidades comunitárias, apoiando-se em tecnologias de resolução de conflitos e de prestação de serviço. Sem dúvida devem trabalhar integradas às Polícias Militar e Civil, mas em perfil complementar e não em sobreposição.
A Agenda Municipal de Segurança Cidadã tem o objetivo de chamar a atenção dos candidatos para a importância do município na melhoria da segurança pública, desejo de todo cidadão, assim como indicar a oportunidade que temos se o poder municipal somar suas potencialidades à prevenção da violência. Obviamente, cada município tem suas particularidades e desafios, por isso optamos por um documento principiológico, que traz diretrizes amplas para a atuação municipal no tema.
A diversidade geográfica das organizações que produziram a Agenda Municipal de Segurança Cidadã permitirá que o documento seja disponibilizado aos candidatos de diferentes regiões brasileiras. Esperamos que os candidatos aceitem o convite para pensar a segurança pública e atuem para melhorá-la.

PP_Manifestacao-contra-Michel-Temer-avenida-Paulista-Sao-Paulo_01509182016

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

O direito à segurança pública

Agenda Municipal de Segurança Cidadã