Thiago Gomes Anastácio

O direito penal é um câncer. Ele deveria significar uma passagem civilizatória e necessária dos tempos do iluminismo até o término da industrialização, mas acabou se tornando uma mentira útil aos poderosos de plantão e aos ignorantes com poder de opinião desde o último século. Não houve um inescrupuloso que não tenha usado o direito penal ao seu bel prazer: Castro, Stalin, Hitler, Franco, Médici, Pinochet, Videla e muitos outros.
As armas da ignorância são as metralhadoras ou as leis penais.
Mas como ciência o Direito Penal é das mais belas e não existe penalista verdadeiro que não esteja no topo dentre as pessoas capazes de fazer uma boa análise do mundo e seus acertos e defeitos atuais. Transitam entre os outros ramos do direito, a economia (pois enxergam seus defeitos em relação ao abuso do homem), a sociologia (e a inexorável observação da pobreza ser um fator criminológico e ou de contenção social pelo direito penal) e filosofia (no caso do aborto, das drogas e sobre quem punir: só aquele que age ou aqueles que deveriam agir?) com necessária facilidade.
Infelizmente os penalistas veem sua ciência sofrer com discursos vergonhosos. Quando se fala em prisões de políticos, concessões de habeas corpus (aqui, exemplifico com fenômeno do processo penal), teoria do domínio do fato, “bandido bom é bandido morto”, “sigamos o dinheiro”, “colaboração premiada” e possíveis direitos sobre o uso de drogas e sobre interrupção de gravidez, assim como sobre a estupidez do nosso sistema penitenciário, temos uma série de leigos fazendo algo como discutir física, eletroquímica e medicina com professores da UNICAMP, USP, UERJ nessas respectivas matérias.
Seria feio e deselegante não fosse sobremaneira, ridículo. E nem os criminalistas, que não são penalistas prima facie, tem o pudor desse ridículo diante dos verdadeiros cientistas do direito penal. É de causar inveja (branca) perceber que existem homens e mulheres estudando de quatro a oito horas por dia apenas para saberem mais e melhor, sem um objetivo específico como um concurso ou um aumento salarial.
Pois ser criminalista é conhecer a produção acadêmica sobre o que é o direito penal, como o Poder Judiciário interpreta-o, preocupar-se com o acusado ou vítima (e suas famílias) e criar estratégias de argumento para que sofismas, mentiras e interesses políticos não interfiram na atuação dos profissionais da acusação, defesa e julgamento – principalmente deste último. É dirigir o carro. E caso tenha a razão da Justiça, não deixar que nada interfira para ela ser alcançada.
Ser penalista é pensar as aflições políticas e sociais do mundo ao longo da trajetória do Direito Penal, para analisar as interferências - se necessárias - do direito, a melhor forma de fazê-lo, se foi correto fazê-lo e quais as consequências possíveis de um direito positivo. E o mais importante: imaginar todas as variáveis possíveis antes do direito ser positivado, para que tenha segurança e objetivo aplicativos. É construir ou estudar a construção de uma engrenagem muito própria, particular, que serve ao mundo se for útil, humana e civilizada, mas que pode ser instrumento de barbaridades se dada margem para interpretações.
Mas o mundo, infelizmente, perdeu-se em intolerância. Embora certo pensador israelense esteja escrevendo – e muito bem – sobre vivermos na melhor era da civilização pós-cristianismo, vivemos como a melhora de um paciente na UTI... Aquela maldita melhora que antecede a morte.
O direito penal, que para além de proibir condutas fenomênicas a partir de repressões pré-estabelecidas - e ser utilitário e humano - servindo à sociedade que pune e ao punido, entrará em colapso por diversos fatores.
O primeiro deles é o uso político do direito penal. Sempre abominável, a conjugação entre direito penal e política fissura o primeiro no que ele deveria ter de mais concreto que é a autorização (legitimação) para punir caso haja motivo para punir. O problema é que essa decisão deveria vir do pensamento de pessoas livres, sobre as quais nenhuma força externa é exercida e nenhuma força para o mundo exterior quer exercer - senão dizer o que é justo em cada caso concreto.
Correta foi a observação do Min. Barroso sobre a politização dos profissionais do direito, lançada em certo programa de televisão na semana passada. Disse o i. Ministro que muita gente bem intencionada, que deveria estar na política e que não está por não concordar com como ela é feita, foi para as carreiras jurídicas e através delas têm emitido suas opiniões de mundo e tentado transformá-lo.
Trata-se de um retrato de Dalí. Objetos e valores do direito estão derretidos para que entrem nas novas galerias, pois o antigo não é capaz de receber o novo e nem o novo aceita fazer parte do antigo.
E fazer política, através do direito e, principalmente do direito penal, não é recomendável. Isso gera cismas que deslegitimam os julgamentos e apresentam para a história as mesmas incertezas que encontramos nos julgamentos hoje lembrados pelos livros de história: Antonieta, D’Arc, Landru, Sócrates, Lucius Catilina, Jesus Cristo e outros.
A Justiça deve ser justa, imparcial. O mundo anda tão complicado que esse óbvio precisa ser dito e redito como mantra. Os acusados, respeitados de seus direitos; A jurisdição respeitada por sua imparcialidade, pela postura de seus magistrados; A advocacia deve ser honesta, argumentativa, intelectualizada; a acusação pública, cautelosa, sem interesses da carreira e da Instituição.
E nenhum dos atores deve buscar, por suas atuações judiciais, voos que não sejam judiciais.
O Poder Judiciário não é trampolim para nada, pois que fim em si mesmo e a população, embora seja entendível que busque heróis, deve evitar criar ídolos, heróis e monstros na Justiça – creiam que podemos ser uma matilha de lobos em futuro bem próximo.
O segundo problema do direito penal reside em sua atemporalidade segundo sua prática de hoje. Ele, o Direito Penal, que deveria vir como último escudo, ser o menos usado e mais cuidadoso dos meios de contenção legal, voltou a ser a primeira opção dentre as escolhas.
Mas se perceba que isso não ocorre por opção pura e simples, mas porque as instituições de controle financeiro tombaram e não foram capazes de verificar os rombos públicos oriundos da corrupção. O direito eleitoral, relevantíssimo, mas de pouco prestígio nos meios de comunicação, ainda não criou mecanismos de manutenção da ética e da moral dos atores políticos – ao menos na parte que caberia ao direito.
O sistema de segurança pública, talvez, seja a pior de todas as questões: ou a polícia é violenta e acaba acusada de crimes, ou quando prende o descaso com o sistema penitenciário é fomentadora (e criadora) do crime organizado, fato que somado a corrupção dos funcionários públicos revela a falência das políticas de punição e não prevenção.
Como já tive a fortuna de escrever: é como se nossa política contra a AIDS fosse distribuir AZT e não preservativos.
E o terceiro problema é a conjugação entre os dois problemas anteriores, mas gerador de um elemento por demais nocivo e por isso, aqui individualizado: o uso dos problemas decorrentes do Direito Penal e das políticas de Segurança Pública como elemento de giro sócio econômico, já que os sistemas paliativos de segurança, sobremaneira a privada, usados nas últimas décadas contra as falências políticas do Estado, entraram poderosamente e se tornaram parte fundamental do sistema econômico, pois geradoras de empregos e fomentadora, mesmo que ficta, da sensação da presença do Estado. Fato que interessa, e muito, apenas ao Estado e aos empresários do setor.
A quem interessa acabar com o problema da Segurança Pública? Aos construtores de cadeias? A indústria de segurança privada, que em 2015 girou 22 bilhões de reais? Às empresas que licitam as abomináveis alimentações dos presídios? Às instituições que fazem parecer que a máquina judiciária está vigorosa por causa de meia dúzia de condenações famosas e celebradas? Aos profissionais públicos de segurança que, sucateados, vivem às sombras como sócios de empresas privadas?
Temos um problema sério e pernicioso. É salutar que, a partir daqui, os médicos falem do sistema de saúde, os professores do sistema educacional, os juristas (e creiam que o conceito de jurista, aqui, não é o dos jornalistas) sobre o direito penal e todas essas cabeças, unidas e em comunicação, indiquem para a sociedade um caminho científico, honesto e interligado a seguir. E ser interligado é muito diferente de ser fundido ou confuso.     
Ou será isso ou teremos a derrocada da democracia, pois um tempo insuportável de intolerâncias e medos se aproxima: medo da piada, medo de parar no farol, medo sobre as economias da família para os próximos meses, medo se haverá ou não creche, medo se haverá ou não empregos, medo sobre os juros. Medo do terrorismo. Medo de Ney Matogrosso ser homofóbico. Medo de Chico Buarque ser machista.
Nesse mundo, eu gostaria mesmo é de ser desempregado. No mundo que quero para o meu filho, advogados criminais não precisariam existir. E confusamente, é para isso que trabalho e estudo.

dali

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JOTA

As armas da ignorância são as metralhadoras ou as leis penais

O Direito Penal entrará em colapso

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