Vinícius Amaral

Danielle Gruneich

O mês de aniversário da promulgação da Constituição Federal de 1988 sempre nos convida a refletir sobre o grau de conformidade entre o projeto de nação ali contido e a situação vigente no país. E, nos campos do Direito Financeiro e do Direito Tributário, lamentavelmente, verifica-se uma significativa distância entre o prescrito pela norma constitucional e realidade concreta. E mais: ao invés de ser reduzido, esse fosso parece estar se ampliando cada vez mais.
Abordamos neste breve artigo três exemplos ilustrativos da presente situação, relativos à progressividade tributária, à regra de ouro e às normas de controle das despesas com pessoal.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
<h3>A negligenciada progressividade tributária</h3>
A progressividade é uma diretriz inconteste do sistema tributário desenhado na Constituição. Expressão no campo tributário do princípio da igualdade – um dos eixos centrais do Texto Magno –, ela, de tamanha importância, é invocada não apenas em um, mas em diversos dispositivos.
Além de ser princípio geral do sistema tributário (art. 145, § 1º), por meio da definição da capacidade econômica como critério da graduação dos impostos, a progressividade ainda é expressamente referida em relação ao imposto sobre a renda (art. 153, § 2º, I), ao imposto sobre a propriedade territorial rural (art. 153, § 4º, I) e ao imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (art. 156, § 1º, I).
Apesar da ênfase e da clareza solar do texto constitucional em prol da progressividade tributária, a realidade do sistema é completamente outra. Como muito bem <a href="https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/502940/000991789.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y" target="_blank" rel="noopener noreferrer">mostra o professor Marciano de Godoi</a>, não só o grau de aderência de nosso sistema tributário a esse princípio permaneceu em patamares muito baixos desde a promulgação da Constituição, mas vem ele decrescendo ao longo das últimas décadas.
Esse decréscimo, movido pela profusão de novas isenções e regimes tributários especiais, <a href="https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,para-tcu-44-dos-beneficios-fiscais-nao-tem-controle,70002339183" target="_blank" rel="noopener noreferrer">concedidos sem demonstração dos benefícios sociais ou econômicos que os se justifiquem</a>, agride não apenas a progressividade, mas também, no caso do imposto sobre a renda, os princípios da universalidade e da generalidade.
A respeito do IRPF, o já clássico <a href="https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&amp;view=article&amp;id=27549" target="_blank" rel="noopener noreferrer">estudo de Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair</a> identifica tanto problemas de equidade vertical (contribuintes com maior capacidade econômica sendo tributados a alíquotas mais baixas) quanto horizontal (contribuintes com mesma capacidade econômica sendo tributados a alíquotas distintas).
Os números impressionam: a falta de equidade vertical faz com que a alíquota média dos contribuintes da última faixa de renda – que receberam em 2013 pelo menos R$ 1,3 milhão cada – fosse de apenas 6,7%, pouco mais de metade da alíquota média máxima (11,8%).
A falta de equidade horizontal, por sua vez, faz com que contribuintes que estejam na mesma faixa de renda possam ter diferenças de mais de 200% nas alíquotas médias, dependendo apenas se são ou não recebedores de lucros e dividendos, os quais são isentos de tributação desde 1995.
Forçoso, também, apontar o total ostracismo em que se encontra o imposto sobre grandes fortunas, que permanece como o único tributo de competência federal não instituído, sendo que é justamente ele que, por definição, <a href="https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfptd/article/view/37077" target="_blank" rel="noopener noreferrer">carrega a maior possibilidade de progressividade</a>. Observe-se também que as costumeiras alegações de perdas econômicas geradas por esse imposto <a href="https://www.iza.org/publications/dp/13766/does-the-wealth-tax-kill-jobs" target="_blank" rel="noopener noreferrer">vêm sendo refutadas por pesquisas empíricas</a>.
Nesse contexto, chega a ser inacreditável que a reforma tributária, há anos discutida, não contenha praticamente nada que vise o saneamento desse verdadeiro estado de coisas inconstitucional vigente em nosso sistema tributário. Não apenas é a Constituição ofendida ininterruptamente, mas não parece haver pressa ou empenho para parar de ofendê-la.
<h3>Nem tudo que é de ouro reluz</h3>
A Carta de 1988 introduziu, em seu art. 167, inciso III, uma regra fiscal bastante rigorosa – a chamada regra de ouro, que impede o financiamento de despesas correntes por meio de endividamento público, reservando esse instrumento unicamente para a realização de despesas de capital.
<blockquote class="jota-article__eye">Segundo seus proponentes, essa regra permitiria combinar equilíbrio das contas públicas, via estrito controle de gastos correntes, e crescimento econômico, por meio do fomento aos investimentos.</blockquote>
Surge então a perplexidade: como é possível então que o Brasil, há 32 anos sob vigência da regra de ouro, tenha apresentado nesse período recorrentes problemas fiscais, dívida pública crescente, baixo crescimento e enormes carências de infraestrutura, derivadas de décadas de insuficientes investimentos?
Tal questão tem, sem dúvida, múltiplas respostas. Entre elas, o fato de que, ao menos no âmbito da União, essa rigorosa norma fiscal esteve longe de ser devidamente atendida. Ocultada do debate público por três décadas, seu cumprimento se deu em um plano meramente formal, por meio de artifícios e de interpretações inadequadas, distantes ou mesmo contrárias ao intento do constituinte.
<a href="https://www12.senado.leg.br/orcamento/documentos/estudos/tipos-de-estudos/orcamento-em-discussao/edicao-46-2020-regra-de-ouro-falhas-de-concepcao-e-de-aplicacao-no-ambito-da-uniao" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Estudo da Consultoria de Orçamentos do Senado</a> identificou diversos canais por meio dos quais a prática da regra divergiu profundamente dos objetivos constitucionais e do prescrito pela teoria econômica.
Quando, em 2018, o Executivo federal verificou que nem mesmo com tais expedientes seria possível o cumprimento (ainda que meramente formal) da regra de ouro, eis que surge bisonha inovação: a suspensão tácita de dispositivo constitucional por lei temporária.
Isso mesmo: desde então, apesar das <a href="https://www12.senado.leg.br/orcamento/documentos/estudos/tipos-de-estudos/notas-tecnicas-e-informativos/subsidios-a-apreciacao-do-projeto-de-lei-de-diretrizes-orcamentarias-para-2019-pln-no-2-2018#page=35" target="_blank" rel="noopener noreferrer">críticas feitas em Nota das Consultorias de Orçamentos do Senado e da Câmara</a>, as leis de diretrizes orçamentárias vêm, na prática – e, evidentemente, extrapolando suas atribuições –, desativando a exigência constitucional de atendimento à regra de ouro no projeto e na lei orçamentária.
Ressalte-se que não se trata, aqui, de qualquer glorificação da regra de ouro: a norma possui limitações que vêm, inclusive, levando vários países a abandoná-la. Ainda assim, bem gerenciada, poderia ter contribuído para o controle das contas públicas e para o dinamismo econômico.
O histórico dos 32 anos da vigência formal da norma, no entanto, evidencia o descaso com que foi tratada: ao invés de ter guiado a atividade financeira do Estado, foi, por diferentes meios, esvaziada do seu sentido constitucional e mantida em quase permanente penumbra.
<h3>Burlas às regras para despesas com pessoal</h3>
O constituinte originário preocupou-se de forma especial com as despesas com pessoal, visto que obrigatórias e de longa duração, estabelecendo, no art. 169, exigência de autorização específica na Lei de Diretrizes orçamentárias – LDO e de prévia e suficiente dotação orçamentária para qualquer expansão desses gastos e de outros dela decorrentes.
Esses rígidos controles, no entanto, vêm sendo historicamente burlados por uma série de expedientes, tais como: i) o inadequado uso de medidas provisórias para a concessão de reajustes, descumprindo a exigência de lei formal e atropelando um processo decisório que deveria ser marcado pela detida reflexão e progressivo amadurecimento; ii) o parcelamento de reajustes ao longo de vários exercícios, afrontando a anualidade orçamentária; iii) a inclusão no orçamento, para fins de aprovação da medida, apenas da fração dos recursos requeridos no primeiro ano de vigência, mascarando assim problemas de sustentabilidade fiscal; e iv) a transferência, sem amparo constitucional, das autorizações que deveriam constar da LDO para a LOA, com prejuízos à transparência do processo legislativo.
Alguns exemplos recentes ilustram bem essas burlas. Os reajustes dos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do procurador-geral da República, concedidos em 2018 e cujo impacto total superou os R$ 5 bilhões anuais, não respeitaram a exigência de autorização específica na LDO, tampouco contaram com dotação orçamentária adequada, desrespeitando, portanto, a Constituição.
O reajuste concedido em 2019 para os militares, notadamente para as altas patentes, conteve parcelas a serem implementadas até 2023, buscando assim escapar do controle orçamentário anual imposto pela Carta Magna.
A Medida Provisória 765/2017, que elevou a remuneração de várias categorias de servidores do Executivo federal, <a href="https://valor.globo.com/brasil/coluna/mp-do-reajuste-de-servidores-fere-teto-de-gasto.ghtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">conteve diversas violações à Constituição, à LRF, à LDO e à LOA</a>. Em todos esses casos, e em muitos outros similares, fica evidente como os interesses de poderosas corporações se sobrepuseram ao direito financeiro e à Constituição.
Por final, impossível deixar de registrar o verdadeiro escândalo que é a permanência de repugnantes <a href="https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,com-penduricalhos-65-dos-juizes-ganham-acima-do-teto-de-r-39-3-mil,70003020855" target="_blank" rel="noopener noreferrer">violações ao teto remuneratório</a>, ainda mais quando são produzidas ou toleradas por aqueles responsáveis por promover e defender os valores constitucionais.
Considerações finais
Aos descumprimentos da Constituição aqui abordados, poderíamos somar vários outros, tais como a omissão na União em elaborar e executar planos nacionais de desenvolvimento econômico e social e a insuficiência do orçamento como redutor das desigualdades, compondo um exasperante cenário.
Curioso é verificar que, frequentemente, vemos figuras públicas, mesmo aquelas que juraram defender a Constituição, acusá-la de ser responsável pelas mazelas do país. Parecem não se dar conta, no entanto, de que são justamente os continuados descumprimentos da Carta Magna que dificultam o avanço da Nação.
Fundamental, aliás, apontar que há algo em comum entre tais desobedecidos dispositivos constitucionais: todos eles são inconvenientes e indigestos para grupos detentores de poder, seja ele de natureza econômica ou de natureza política. Os descumprimentos, portanto, não são fortuitos ou casuais: representam a inconformidade desses grupos com o projeto constitucional de igualdade republicana.
Observe-se, acima de tudo, que tais normas constitucionais não apenas estão sendo descumpridas, mas, para sua maioria, sequer há agenda política para cumpri-las – ao contrário, a agenda posta é, no mais das vezes, de dilapidação da Constituição. Depende de nós, defensores e defensoras da Carta de 1988, agir para modificar esse estado de coisas.
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O episódio 42 do podcast Sem Precedentes analisa as acusações de Donald Trump questionando a legalidade do pleito eleitoral nos EUA. Ouça:
https://youtu.be/xRgH-5h1gH8

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JOTA

É urgente resgatar temas constitucionais fundamentais que têm sido continuamente negligenciados

O Direito Financeiro esquecido da Constituição

É urgente resgatar temas constitucionais fundamentais que têm sido continuamente negligenciados