Willian Pereira

Thomas Victor Conti

Leandro Bellato

A proteção à privacidade é uma preocupação crescente em meio à digitalização de cada vez mais aspectos da nossa vida pessoal. Com o avanço das tecnologias, cresce a capacidade de armazenar e analisar informações pessoais. Dentre as várias facetas de preocupação estão aquelas relacionadas aos dados pessoas sobre condições de saúde, tema que nos ocupa neste artigo.
Embora a identificação e armazenamento de dados sobre doenças que foram identificadas por métodos mais antigos seja a maior preocupação hoje, cada vez mais as informações genéticas farão parte do nosso cotidiano. Junto com ela, vem também a possibilidade de discriminação genética e suas consequências, como eventual exclusão de cobertura por operadoras de planos de saúde. A falta de regulamentação clara no Brasil para o uso desses dados abre um leque de possibilidades e riscos.
A análise econômica do direito (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/aed">AED</a>) proporciona uma visão pragmática para avaliar as consequências das decisões judiciais e regulamentares sobre o uso de dados genéticos. Os custos e benefícios potenciais dessa tecnologia precisam ser pesados um ante ao outro visando uma combinação ótima entre bem-estar social e garantia de direitos individuais.
<h1>A possibilidade de discriminação por informações genéticas</h1>
É comum ouvir que estamos na era da genômica. Em linhas gerais, a genômica é a intersecção da biologia molecular e da genética em grande escala, investigando concomitantemente a interação e evolução dos genes, suas expressões e processos bioquímicos envolvidos ao considerar o genoma de um indivíduo ou um conjunto de genomas oriundos de uma população. Enquanto a genética foca em poucos genes, a genômica é como a genética em grande escala, e foca na interação entre milhares ou até milhões de genes em um genoma individual ou em escala demográfica.
Na área dos seguros, embora haja restrições para a discriminação de segurados com base em doenças pré-existentes, é lícito fazê-lo se as operadoras tiverem exigido a realização de exame (vide Súmula 209 do STJ e Súmula 105 do TJSP). Quanto ao futuro, não há restrições claras quanto à restrição de probabilidade de vir a manifestar uma doença. De fato, é até necessário que os planos busquem realizar esse tipo de prospecção, ante o problema de seleção adversa — isto é, atrair justamente os pacientes que sabem estar em risco de enfermidade.
Vale ressaltar que não é assim no resto do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Health Insurance Portability and Accountability Act (1996) e o Genetic Information Nondiscrimination Act (2008), proíbem que as seguradoras estabeleçam prêmios com base em informação genética para planos individuais ou coletivos. As seguradoras também são impedidas de exigir ou requisitar esses testes e de coletar informação genética (inclusive histórico médico familiar) antes da contratação dos planos ou para fins de admissão do beneficiário.
A falta de regulamentação no Brasil abre espaço, ao menos em teoria, para que as operadoras de planos de saúde se utilizem da genômica para esse propósito. Com a tecnologia de hoje, já é possível que testes genéticos detectem diferenças na predisposição a condições como o Alzheimer, diabetes, cânceres, dentre outras.
Nessa discussão, é importante separar os dados genéticos públicos dos privados e os anonimizados daqueles que estão vinculados a pessoas naturais, que são considerados sensíveis pela LGPD, e a respeito dos quais levanta-se maior preocupação.
<h1>Bancos de dados genéticos públicos e privados</h1>
Atualmente já existem grandes bancos de dados genômicos públicos, oriundos inicialmente de pesquisas em escala demográfica. Um dos mais conhecidos deles é o britânico UK Biobank, que reúne dados de mais de meio milhão de cidadãos do Reino Unido, cobrindo noventa milhões de variantes genéticas (polimorfismo de nucleotídeo único).
Tais dados são anonimizados e, posto que pertencem a um programa do NHS (o equivalente britânico do SUS), são correlacionáveis ao histórico médico dos indivíduos. Diversas outras nações, em especial europeias, como Finlândia e Islândia, possuem bancos de dados semelhantes, e recentemente a China disponibilizou um banco de dados genômico público e anonimizado composto pelo genoma de mais de 1 milhão de chineses.
Corporações privadas que disponibilizam testes genéticos ou genômicos, em especial os serviços de análise de ancestralidade, incluem por padrão os dados de seus consumidores, sempre anonimizados, em grandes bancos de dados parcialmente públicos, e cobram para quem se interessar por questões, em escala demográfica, mais específicas.
A composição de bancos de dados genômicos, anonimizados, que por vezes também trazem informações referentes à incidência de quadros clínicos específicos, cada vez mais se torna comum na iniciativa privada no ramo das empresas de biotecnologia.
<h1>Aspectos econômicos e sociais do acesso a dados genéticos</h1>
Com informações genéticas disponíveis em grande escala, o maior benefício social gerado é advém da possibilidade de direcionar melhor os tratamentos de saúde para as pessoas que mais precisam. Isso reduz o gasto agregado com saúde enquanto ao mesmo tempo melhora os resultados obtidos em maior expectativa de vida e qualidade de vida. No entanto, trata-se de mais um caso de tensão entre benefícios sociais e incentivos individuais. Pois, em nível individual, é esperado que cada pessoa individualmente entenda que ela piorará de situação caso ocorra revelação das suas informações genéticas.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Imagine a seguinte situação. Você tem a opção de fazer um teste genético. Se você o fizer, ele revelará diversas informações suas, dentre elas informações sobre a probabilidade de você desenvolver doenças raras e de tratamento altamente custoso. Se você fizer o teste e for identificado como possuindo essa predisposição genética, seus custos com seguro saúde sofrerão um aumento drástico, assim como seu seguro de vida — isso se as seguradoras aceitarem fazer a apólice.
É possível também que essa informação tenha consequências negativas para suas oportunidades de trabalho hoje. Por exemplo, a identificação precoce de uma doença degenerativa grave pode tornar um empregador menos propenso a investir na formação ou permanência daquele funcionário. O problema se agrava em países como os Estados Unidos em que a maior parte dos seguros de saúde são contratados pelas próprias empresas como parte do pacote de benefícios aos funcionários. Os seguros saúde no Brasil têm crescentemente migrado para o arranjo de planos coletivos, o que nos aproxima da situação americana.
Porém, se o teste revelar que você não tem nenhuma destas predisposições, você terá como benefício uma redução muito marginal do seu custo mensal com seguro saúde e seguro de vida. Diante de um contexto de escolha com estas duas opções, a teoria econômica aponta que um agente econômico racional e avesso ao risco estaria disposto a pagar para não ter suas informações genéticas testadas, ou pagar para que essas informações sejam suprimidas.
Assim, o conflito aqui é entre custos e benefícios individuais, versus custos e benefícios sociais. No nível individual, em média cada pessoa preferiria não revelar suas informações genéticas e estaria disposta a pagar para isso. Porém, no nível social, a sociedade como um todo se beneficia de um maior acesso a informações genéticas, que aumentariam a eficiência e reduziram o desperdício de recursos de saúde.
Há diversas propostas de como lidar com esse trade-off, dentre elas a criação de um “seguro genético” para precificar essa disposição a pagar dos indivíduos para se protegerem de eventual risco associado à revelação das suas informações genéticas. Porém, no Brasil, estas discussões ainda são muito incipientes — se é que existem.
<h1>Riscos e exceções ao consentimento do titular na LGPD</h1>
Para além da ponderação do indivíduo acerca da utilização dos seus dados para essa finalidade, há também o risco que advém do seu consentimento para a utilização de seus dados para outras finalidades, como a obtenção de informações sobre ancestralidade ou informações de saúde para uso próprio. Esses riscos podem se dar pelo desvio de finalidade por parte das empresas, pela má qualidade dos dados armazenados, e até mesmo pela obtenção desses dados por criminosos.
Esse foi o caso, por exemplo, dos dados roubados da 23andMe em 2023, empresa especializada em testes de ancestralidade e de saúde por meio da coleta doméstica de material biológico. Nessa ocasião, a empresa sofreu um ataque hacker e teve os seus dados postos à venda em fóruns digitais. Não fosse grave o suficiente, o hacker ofereceu dados segmentados por grupos étnicos específicos. Esse tipo de exposição aumenta a preocupação acerca da xenofobia.
No Brasil, os testes genéticos fornecidos por empresas, e coletados domesticamente, crescem ano após ano. Entre 2020 e 2021, houve um aumento de 700% na demanda, conforme relataram empresas do ramo à revista Veja.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Já um levantamento realizado pela CBN<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> dá conta que o aumento foi de 1.000% nos últimos três anos. Famosos e influenciadores abraçaram a iniciativa. Mesmo times de futebol começaram a disponibilizar o teste para alguns de seus jogadores.
Nesse contexto, é necessário que as empresas envolvidas nesse mercado sejam transparentes sobre a finalidade para a qual esses dados serão empregados e que os destruam tão logo esta finalidade tenha sido alcançada. Ainda, dado o alto risco do tratamento desses dados, faz-se necessária a adoção de um robusto relatório de impacto à proteção de dados pessoais (RIPD), como determina a Resolução CD/ANPD 2 de 2022.
A Lei Geral de Proteção de Dados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lgpd">LGPD</a>) categoriza como sensíveis tanto os dados genéticos quanto os biométricos vinculados a pessoas naturais, e portanto exigem consentimento do titular para serem tratados, exceto em casos previstos em lei. Contudo, “o diabo mora nos detalhes”. As exceções (art. 5, II da LGPD) incluem a obtenção desses dados para os fins de tutela da saúde ou para a proteção da vida ou incolumidade física do titular.
Seria esse o caso das operadoras de planos de saúde? Afinal, esse não é um setor que lida diretamente com a tutela da saúde e proteção da vida dos seus beneficiários? Decerto, testes de ancestralidade não se encaixariam nessa exceção, mas poderiam eles vender esses dados a operadoras de planos de saúde, com base nessa exceção? Pela LGPD, eles apenas deveriam informar aos titulares dos dados acerca dessa possibilidade. Seria suficiente?
Independentemente de juízo de valor acerca dos ganhos ou perdas desse tipo de operação, é necessário um maior esclarecimento dessa questão, em prol da segurança jurídica dessas empresas e dos titulares dos dados. Esse trabalho é uma competência conjunta do Congresso Nacional, do Judiciário e da ANPD, não necessariamente nesta ordem.
<h1>Conclusão: balanço entre eficiência, justiça e proteção de dados</h1>
Há um caminho a ser percorrido no Brasil no tocante a uma paisagem jurídica mais clara sobre o tratamento de dados genéticos pelas operadoras de saúde e companhias de testes de ancestralidade/saúde para fins pessoais. Nesse caminho, as autoridades devem considerar tanto os riscos individuais quanto os benefícios sociais do uso de dados genéticos para fins de precificação de planos de saúde ou negativa de cobertura.
Importa ressaltar que essa análise não é apenas desejável, é um comando legal, conforme o dever do juiz — para além da ponderação de princípios — ponderar as consequências da interpretação que oriunda da lei (art. 20 da LINDB). No mesmo sentido, é necessário que a ANPD realize uma profunda análise de impacto regulatório antes de regulamentar essa questão.
A análise econômica do direito desempenha um papel crucial nesse processo, pois fornece as ferramentas necessárias para avaliar as consequências econômicas das decisões judiciais e regulatórias. A AED permite que as autoridades ponderem de forma mais efetiva os impactos dessas decisões no bem-estar social, ajudando a identificar soluções que maximizem os benefícios para a sociedade como um todo, sem comprometer os direitos individuais.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.zotero.org/google-docs/?a7HWaD">TABARROK, Alexander, Genetic testing: An economic and contractarian analysis, </a><a href="https://www.zotero.org/google-docs/?a7HWaD">Journal of Health Economics</a><a href="https://www.zotero.org/google-docs/?a7HWaD">, v. 13, n. 1, p. 75–91, 1994.</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://veja.abril.com.br/ciencia/testes-geneticos-que-mapeiam-origem-dos-ancestrais-estao-em-alta-no-brasil">https://veja.abril.com.br/ciencia/testes-geneticos-que-mapeiam-origem-dos-ancestrais-estao-em-alta-no-brasil</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://cbn.globo.com/programas/cbn-bh/noticia/2024/04/27/procura-por-testes-de-ancestralidade-cresce-mais-de-1000percent-no-brasil-entenda-mapeamento.ghtml">https://cbn.globo.com/programas/cbn-bh/noticia/2024/04/27/procura-por-testes-de-ancestralidade-cresce-mais-de-1000percent-no-brasil-entenda-mapeamento.ghtml</a>

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JOTA

É necessário um maior esclarecimento dessa questão, em prol da segurança jurídica das empresas e dos titulares dos dados

O direito e a economia do uso comercial de dados genéticos

É necessário um maior esclarecimento dessa questão, em prol da segurança jurídica das empresas e dos titulares dos dados