André Elali
Doutor em Direito Público e professor associado de Direito Tributário da UFRN
As tarifas alfandegárias são, por definição, custos incidentes sobre o comércio internacional. Não se confundem com tributos, eis que o fundamento jurídico que as sustenta é substancialmente distinto.
Enquanto os tributos decorrem de competências tributárias legitimadas constitucionalmente para financiar o Estado, as tarifas de importação, especialmente aquelas aplicadas como medidas de defesa comercial, são instrumentos regulatórios vinculados a compromissos multilaterais, especialmente sob a égide da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Trata-se de mecanismos que podem ser usados para reequilibrar eventuais distorções no comércio entre países. O tributo decorre da soberania fiscal dos Estados. As tarifas, da soberania econômica, submetidas, entretanto, a certos limites de tratados que venham a ser celebrados.
Essa distinção é essencial para se compreender a profunda incoerência das recentes tarifas aplicadas pelos Estados Unidos contra o Brasil. Tais medidas, sob o pretexto de retaliação ou combate a práticas desleais de comércio, ignoram os fundamentos econômicos do comércio internacional e subvertem os objetivos dos tratados multilaterais, demonstrando um protecionismo disfarçado sob o discurso de um ajuste no comércio entre os países.
Ana Carla Bliacheriene[1] registra que as medidas compensatórias e antidumping integram um regime jurídico autônomo, distinto do Direito Tributário, possuindo natureza jurídica de instrumento de defesa comercial e não de receita pública per se. Sua aplicação é condicionada por parâmetros objetivos:
A doutrina reconhece que essas medidas não se confundem com sanções nem com tributos, sendo uma modalidade não tributária de intervenção no domínio econômico. Por outro lado, a imposição de tarifas sem observar esses requisitos viola não apenas o ASMC, mas também os princípios fundamentais do comércio internacional.
Os Estados Unidos são signatários do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC) da Organização Mundial do Comércio (OMC). O ASMC faz parte dos acordos multilaterais firmados no âmbito da Rodada Uruguai do GATT (1986–1994), que culminou na criação da OMC em 1995. Todos os membros da OMC automaticamente aceitam os acordos multilaterais, incluindo o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, o Acordo sobre Agricultura, o Acordo Antidumping, e o próprio Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC).
Portanto, os EUA, como membro fundador da OMC e participante ativo do sistema multilateral de comércio, estão juridicamente vinculados ao ASMC e devem respeitar suas obrigações, incluindo-se a proibição de certos subsídios à exportação, a obrigação de não causar efeitos adversos aos demais membros com subsídios acionáveis e sujeição ao devido processo legal quando da imposição de medidas compensatórias.
Assim, qualquer tarifa ou medida compensatória imposta unilateralmente fora dos parâmetros do ASMC pode ser considerada ilegal no sistema da OMC, passível de controle pelo Mecanismo de Solução de Controvérsias da Organização.
A controvérsia comercial entre Brasil e EUA sobre subsídios ao algodão (caso WTO-DS267 [Upland Cotton]) representa um marco nesse debate. A OMC reconheceu que os subsídios concedidos pelos EUA distorciam o comércio e autorizou o Brasil a aplicar retaliações comerciais. A retaliação tarifária, embora formalmente aceita, demonstrou na prática que medidas compensatórias podem, elas mesmas, gerar desequilíbrio no comércio internacional, ao invés de corrigi-lo[3].
A análise econômica desse tipo de retaliação revela efeitos sistêmicos negativos no modelo de equilíbrio geral do comércio internacional: a imposição de tarifas gera novas distorções e incentiva ciclos viciosos de subsídios e retaliações mútuas[4]. Em vez de promover justiça comercial, as tarifas aplicadas como contramedida frequentemente se tornam ferramentas de pressão política e de protecionismo disfarçado.
Sob a ótica dos princípios que regem a OMC, como a cláusula da nação mais favorecida e o compromisso com a liberalização do comércio, a utilização das tarifas como instrumento indiscriminado de retaliação viola a lógica cooperativa dos tratados multilaterais. Aliás, as medidas de defesa comercial, quando desvirtuadas, contradizem os próprios objetivos de integração econômica e liberdade de comércio celebrados nos acordos regionais e multilaterais[5].
Desse modo, tem-se que a retórica liberal dos EUA contrasta com suas ações práticas: defende-se o livre comércio nos fóruns diplomáticos, mas emprega-se protecionismo estratégico contra concorrentes muitas vezes sem razão alguma do ponto de vista do comércio. Trata-se de uma política econômica marcada pela hipocrisia normativa, em que se invoca um discurso econômico apenas para legitimar medidas unilaterais e geopolíticas.
Inexiste fundamento à aplicação de tarifas como agora vemos ocorrer. O motivo político mascarado comprova que, a cada dia, majora-se o distanciamento entre a verdade e o discurso, frustrando décadas de teorias e tentativas de proteção de valores econômicos e socialmente relevantes para a sociedade global.
A aplicação abusiva de tarifas representa hoje um dos maiores desafios ao sistema multilateral de comércio. Quando se desvirtua o regime jurídico das medidas compensatórias e antidumping — aplicando-as de forma política e incoerente —, rompe-se o frágil equilíbrio institucional que, em tese, é visado pela OMC.
O Brasil, enquanto país em desenvolvimento e signatário ativo do sistema multilateral, deve se posicionar firmemente contra tais abusos. A defesa comercial legítima exige proporcionalidade, fundamentação técnica e respeito ao direito internacional — e não deve ser confundida com retaliação arbitrária.
[1] BLIACHERIENE, Ana Carla. Emprego dos subsídios e medidas compensatórias na defesa comercial. PUC-SP, 2006, pp. 135-153.
[2] Idem, ibidem, pp. 95-110.
[3] WTO-DS267: United States — Subsidies on Upland Cotton, Relatório do Painel.
[4] BRUNO, Flávio Marcelo R.; OLIVEIRA, Liziane P. S. “Análise Econômica dos Direitos Compensatórios: Os Efeitos da Imposição de Tarifas à Importação no Modelo de Equilíbrio Geral no Comércio Internacional”. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 1 (2015), nº 6, pp. 405-446.
[5] ENGELBERG, Luciana Costa. Integração econômica e defesa comercial: medidas antidumping nos acordos regionais de comércio. USP, 2013, pp. 128-134.