Guilherme Magalhães Martins

João Alexandre Silva Alves Guimarães

Conforme a “Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2022, sobre reforçar a Europa na luta contra o cancro ‒ rumo a uma estratégia abrangente e coordenada (2020/2267(INI))”, foi determinada para todos os Estados-Membros da União Europeia a proteção dos pacientes que foram diagnosticados com câncer.
O documento propõe que seguradoras e bancos não considerem o histórico clínico de pessoas que tiveram câncer, buscando legislações que impeçam a discriminação de sobreviventes de câncer. Também destaca a intenção da Comissão de colaborar com empresas para desenvolver um código de conduta que reflita avanços no tratamento do câncer nas práticas financeiras, apoiando a promoção do "direito a ser esquecido" para sobreviventes de câncer em certos países. Pede que até 2025 todos os Estados-Membros garantam o "direito a ser esquecido" para pacientes europeus, especialmente os diagnosticados antes dos 18 anos, e busca normas comuns para isso. Além disso, apoia a criação de um número de identificação único para sobreviventes de câncer e diretrizes de monitoramento de longo prazo, enfatizando a necessidade de adaptar o "direito a ser esquecido" a essa população.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Na França o direito ao esquecimento para esses casos foi previsto na Loi 2022-270 du 28 février 2022 pour un accès plus juste, plus simple et plus transparent au marché de l'assurance emprunteur<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Bélgica<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, Luxemburgo<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, Países Baixos<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, e Portugal<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> já possuem leis prevendo o direito ao esquecimento oncológico. Ele também já foi anunciado na Espanha<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, mas lá não aparece em leis ainda.
De acordo com as pesquisas e dados científicos mais recentes, a sobrevivência ao câncer aumenta progressivamente, e esses pacientes adquirem uma expectativa de vida comparável a outras pessoas de idade e características sociodemográficas semelhantes sem diagnóstico de câncer. Os dados mostram que as proporções de sobreviventes de câncer estão aumentando 3% anualmente e, em 2018, mais de 12 milhões de sobreviventes de câncer foram estimados na Europa.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Com base nessas considerações, um número crescente de sobreviventes de câncer deve ser capaz de retornar a uma vida normal, como outras pessoas da mesma idade sem diagnóstico de câncer. No entanto, conseguir voltar a ter uma qualidade de vida adequada para os ex-pacientes pode revelar-se uma questão negligenciada. Os sobreviventes de câncer em toda a Europa enfrentam vários obstáculos, em particular quando procuram acesso a serviços financeiros, como hipotecas, empréstimos e seguros de vida.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
As disposições estabelecem que, no âmbito dos referidos instrumentos financeiros, o período a partir do qual nenhuma informação médica relativa à doença cancerígena anterior pode ser recolhida pelos organismos de seguros não pode exceder dez anos após o fim do tratamento ou, para diagnósticos de câncer ocorridos antes dos dezoito anos de idade, cinco anos após o término do tratamento. As leis também incluem uma lista de exceções para cânceres de excelente prognóstico com prazos mais curtos para o exercício do direito ao esquecimento.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Quando fala-se em privacidade, Warren e Brandeis, a intensidade e a complexidade da vida, que acompanham o avanço da civilização, tornaram necessário algum afastamento do mundo, e o homem, sob a influência refinadora da cultura, tornou-se mais sensível à publicidade, de modo que a solidão e a privacidade tornaram-se mais essenciais para o indivíduo; mas o empreendimento e a invenção modernos, por meio de invasões à sua privacidade, sujeitaram-no a graves ofensas na sua esfera existencial.<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>
As pessoas não podem ser reduzidas ao seu passado; mais do que o mero apagamento, o direito ao esquecimento significa fazer com que se deixe de trazer de volta fatos do passado. <a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
O inegável direito ao desenvolvimento da própria personalidade, com vista ao aperfeiçoamento humano (um verdadeiro princípio constitucional), traduz-se no reconhecimento de complexas situações subjetivas ; mas, ao mesmo tempo, está a ser invocado como argumentos à produção contínua de subdireitos dos quais há tantas espécies como maneira de aplicar a autonomia que se pode imaginar. Na base do problema que enfrentamos, que requer um antídoto adequado, está a ideia de que o desenvolvimento de personalidade tende a confundir-se com o mero exercício da autodeterminação da vontade, quando na realidade apontam para dimensões diversas da personalidade humana.<a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>
A dignidade da pessoa exige que lhe seja reconhecido um espaço de privacidade em que possam estar à vontade, ao abrigo da curiosidade dos outros, sejam eles simplesmente os vizinhos, ou sejam as autoridades públicas ou os meios de comunicação social, ou sejam quaisquer outras pessoas. O direito à privacidade obsta à devassa da vida privada de cada um. É, de certo modo, o direito de ser deixado em paz.<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>
A reserva da privacidade deve ser considerada a regra e não a exceção. É esse o sentido que se retira, por um lado, da natureza do direito à privacidade como direito e personalidade e, por outro, da sua consagração constitucional como direito fundamental. O direito à privacidade só pode ser licitamente agredido quando um interesse público superior ao exija, em termos tais que o contrário possa ser causa de danos gravíssimos para a comunidade.<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>
Entender o que o direito ao esquecimento é um direito pessoal se torna essencial, tanto que em 1879, o direito pessoal foi considerado a classe principal que abrange os direitos que pertencem à pessoa. Nele estão incluídos o direito à vida, o direito à imunidade contra-ataques e lesões, e o direito, igualmente com os outros, de forma semelhante, para controlar a própria ação. Em todos os países iluminados, a mesma classe também incluiria o direito ao benefício de cada reputação que o condado lhe concedeu e o gozo de todos os direitos civis concedidos por lei. Os direitos políticos também podem ser incluídos sob o mesmo entendimento.<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>
O Direito só pode ser concebido, tendo como destinatários os seres humanos em convivência. A aplicação do Direito Civil a essa convivência humana desencadeia uma teia de relações jurídicas entre os homens, relações traduzidas em poderes e deveres jurídicos lato sensu.<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>
A descoberta do eu, enquanto pessoa, categoria englobante da alma e do corpo indissociáveis, dotados de razão e perfectíveis, é recente, mesmo no pensamento ocidental. A pessoa como espaço de exclusão por ser pressuposto essencial da sua existência a não interferência prejudicial dos outros no que ela é: na sua vida, na sua estrutura física, na sua mente, na sua capacidade criativa, entre outras. A raiz dos direitos da pessoa, seja pública ou privada, está inserida no cristianismo, ao determinar este a dessacralização da natureza da sociedade, libertando o homem de ser objeto para o transformar em sujeito, portador de valores.<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a>
As súplicas para a realização do apagamento ou da eliminação dos dados baseiam-se muitas vezes na arguição de que o tratamento de dados não possui uma base legítima. Essas alegações ancoram geralmente no conceito do consentimento, a partir da sua revogação ou quando os dados pessoais já não são necessários ao prosseguimento da finalidade para que foram recolhidos. O ónus da prova de que o tratamento dos dados é legítimo incidirá sobre o responsável pelo tratamento, uma vez que é ele o responsável pela legitimidade do tratamento. O princípio da responsabilidade exige que o responsável pelo tratamento esteja em condições de demonstrar, a todo o tempo, que as suas operações de tratamento de dados têm uma base legal legítima, caso contrário terá de interromper esse tratamento.<a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a>
No Brasil, autorizar o direito ao esquecimento oncológico passaria pela revisão do Tema de Repercussão Geral 786 do Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>). Isso se torna necessário para que uma pessoa possa desenvolver a sua personalidade, não sendo influenciada por quem ela pode ser ou poderia ser através do seu histórico hospitalar, possibilitando-se-lhe a plena inclusão social.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> UNIÃO EUROPEIA. Parlamento Europeu. P9_TA(2022)0038: Reforçar a Europa na luta contra o cancro. Bruxelas, 16 de fevereiro de 2022. Disponível em &lt; <a href="https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0038_PT.html">https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0038_PT.html</a>&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> LEI n° 2022-270 de 28 de fevereiro de 2022 para um acesso mais justo, simples e transparente ao mercado de seguros do mutuário em tradução livre
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BELGICA. Banque Carrefour de la législation. 4 AVRIL 2014. - Loi relative aux assurances. Disponível em &lt;http://www.ejustice.just.fgov.be/eli/loi/2014/04/04/2014011239/justel#LNK0032&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> LUXEMBURGO. Ministère de la Santé. Convention “Droit a L’Oubli” S’Assurer et Emprunter avex un Risque de Sante Aggrave em Raison D’Une Pathologia Cancereuse ou D’Une Infection Virale a L’Hepatite C ou D’Une Infection Par Le Vih. Luxemburgo, 29 de outubro de 20109. Disponível em &lt;https://www.lalux.lu/fileadmin/mediatheque/documents/Divers/convention-droit-a-l-oubli-29102019.pdf&gt;.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> PAÍSES BAIXOS. Ministerie van Financiën. Staatsblad van het Koninkrijk der Nederlanden. AMvB, Staatsblad 2020, 453, de 02 de novembro de 2020. Disponível em &lt; https://zoek.officielebekendmakingen.nl/stb-2020-453.html&gt;.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> PORTUGAL. Assembleia da República. Audição Parlamentar Nº 133-COF-XIV. Disponível em &lt;https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheAudicao.aspx?BID=127186&gt;.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> MARCOS, José; LINDE, Pablo. El Gobierno garantizará a partir de junio el derecho al olvido oncológico. El País, Sevilla / Madrid, 13 de maio de 2023. Cáncer. Disponível em &lt;https://elpais.com/espana/2023-05-13/sanchez-se-compromete-con-las-asociaciones-de-lucha-contra-el-cancer-a-implantar-en-junio-el-derecho-al-olvido-oncologico.html&gt;.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> SCOCCA, Grazia; MEUNIER, Françoise. A right to be forgotten for cancer survivors: a legal development expected to reflect the medical progress in the fight against cancer. Journal of Cancer Policy, v. 25, 2020. Página 100245
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Idem.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Idem.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> BRANDEIS, Louis; WARREN, Samuel. The right to privacy. Harvard law review, v. 4, n. 5, p. 193-220, 1890. Página 195.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> MARTINS, Guilherme Magalhães . O direito ao esquecimento na sociedade da informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p.84.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> BARBOSA, Mafalda Miranda; ÁLVAREZ, Tomás Prieto. O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade: Sentido e Limite. Coimbra: Gestlegal, 1ª Edição, 2020. Páginas 12 e 13.
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<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Idem. Página 81.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> COOLEY, Thomas M. A Treatise on the law of torts, or the wrongs which arise independently of contract. Chicago: Callaghan and Company, 1879. Página 24.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> PINTO, Carlos A. D. M.; MONTEIRO, António P.; PINTO, Paulo M. Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Gestlegal, 2020. Página 98.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> CAMPOS, Diogo L. D. Lições de Direitos da Personalidade. Separata do Boletim da Faculdade de Direitos da Universidade de Coimbra, Coimbra, LXVI, 1995. Página 9 e 10.
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JOTA

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