Melina Girardi Fachin

O debate em torno do direito ao aborto é central para a agenda de direitos humanos das mulheres, em todo o mundo. No âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a discussão sobre a criminalização do aborto e seu impacto nos direitos das meninas e mulheres ganha uma dimensão ainda mais crucial.
Uma questão que muitas vezes é mal compreendida é se a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) permite ou não a criminalização do aborto. A resposta é simples, mas não simplória e demanda uma análise de boa-fé e sistemática do sistema interamericano como um todo.  Não basta ler “em tiras” o artigo 4º da CADH<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> sem entender o que seus intérpretes autorizados – Comissão e Corte Interamericanas de Direitos Humanos – apontam sobre o tema.
A CADH reconhece o direito à vida como protegido em geral desde a concepção, e permite que os Estados decidam internamente quando a proteção à vida começa, seja na concepção ou após a concepção. Isto significa que a CADH não impede, por si só, que os Estados possam criminalizar o aborto, desde que respeitem determinadas exceções e limitações. Ao revés, Corte e <a href="https://www.cidh.oas.org/annualrep/80.81sp/estadosunidos2141.htm">Comissão</a> interamericanas vem trabalhando com a compreensão do que significa esta proteção em geral na <a href="https://redesaude.org.br/wp-content/uploads/2021/01/Dossie_aborto-inseguro.pdf">região que possui a maior taxa de abortos inseguros do mundo.</a>
A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte IDH</a> estabeleceu que a expressão "em geral" no artigo 4.1 da CADH implica que a proteção ao direito à vida não pode ser absoluta, mas sim gradual e incremental, levando em consideração os direitos e interesses em conflito. Neste sentido, o argumento de proporcionalidade tem sido utilizado pela Corte IDH para avaliar os benefícios e danos associados ao aborto em relação aos benefícios e danos associados à manutenção da gravidez. Isso pode incluir considerações sobre a saúde física e mental da mulher, o risco de complicações durante a gravidez e o parto, a capacidade da mulher de cuidar de um bebê, as implicações financeiras e sociais da gravidez e da paternidade, entre outros fatores, sobretudo de vulnerabilidades e interseccionalidades.
Um dos marcos mais significativos foi o caso <a href="http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_por.pdf">Artavia Murillo vs. Costa Rica</a>, em que a Corte IDH decidiu que a expressão "em geral" no artigo 4.1 da CADH permite um equilíbrio entre direitos e interesses em conflito. Esta decisão reconheceu que a proteção do direito à vida não pode ser absoluta e que deve ser avaliada de acordo com o desenvolvimento gradual e incremental. Novamente, a Corte afirmou que a mulher grávida é o principal objeto de proteção desse direito.
Segundo o entendimento da Corte IDH, a regulamentação no Direito Internacional não determina que o embrião seja tratado de maneira igual a uma pessoa, nem que tenha direito à vida, não sendo possível que o embrião seja titular e exerça os direitos consagrados na CADH. Desta feita, o artigo 4.1 da CADH não impede a descriminalização do aborto. Ou seja, a proteção do embrião não pode inviabilizar a realização de outros direitos.
O sistema interamericano reitera o que os parâmetros globais de proteção também apontam. O <a href="https://www.ohchr.org/en/statements/2022/07/access-safe-and-legal-abortion-urgent-call-united-states-adhere-womens-rights">Comitê CEDAW</a> afirmou, em diversas ocasiões, ao analisar os principais tratados de direitos humanos, que não há possibilidade de estender o direito à vida aos fetos com base no Direito Internacional.
Mais recentemente, no <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_441_esp.pdf">caso Manuela vs. El Salvador</a>, a Corte IDH declarou a responsabilidade internacional do Estado de El Salvador por violações a uma série de direitos, incluindo o direito à vida, devido à criminalização do aborto que resultou na condenação penal de uma mulher que havia enfrentado uma emergência obstétrica.
Todas essas decisões da Corte IDH apontam para a necessidade de os Estados revisarem suas leis de aborto à luz do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. A criminalização absoluta, que não leva em conta os direitos das mulheres, não está em conformidade com os precedentes da Corte IDH e com os standards do direito internacional dos direitos humanos. Além disto, o sistema não autoriza, e nem é correto inferir da CADH, proteção absoluta do direito à vida, mas sim gradual e incremental, de acordo com seu desenvolvimento, sendo que o objeto de proteção do direito à vida é, primordialmente, a mulher grávida.
Portanto, o sistema interamericano de direitos humanos não pode e nem deve servir de anteparo a argumentos que restringem o direito das mulheres. Todo ser humano tem a capacidade de se autodeterminar e escolher livremente as opções e circunstâncias que dão sentido à sua existência, de acordo com suas próprias convicções. A livre maternidade é parte essencial do livre desenvolvimento da personalidade das mulheres e, portanto, protegida pelo sistema internacional dos direitos humanos. É imperativo que o Brasil, na condição de integrante do sistema interamericano, adote políticas que respeitem os direitos das mulheres, incluindo o direito ao aborto seguro e legal.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> 4.1 Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

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JOTA

É imperativo que o Brasil adote políticas que respeitem os direitos das mulheres, incluindo o direito ao aborto seguro e legal

O direito ao aborto no sistema interamericano e os direitos humanos

É imperativo que o Brasil adote políticas que respeitem os direitos das mulheres, incluindo o direito ao aborto seguro e legal