Diogo Ferraz

Gabriel Demetrio Domingues

O filósofo Roberto Mangabeira Unger, em famoso ensaio, certa vez desafiou os juristas a serem profetas. Segundo o filósofo, “[o jurista tornado] um profeta nunca prevê. Imagina um futuro acessível, que vislumbra prefigurado em aspectos da experiência presente. Vê a falha realidade à luz do possível adjacente melhor. Oferece antecipações tangíveis de uma vida maior. Não precisa de otimismo – atitude passiva e contemplativa – porque tem esperança – impulso orientado para a ação. Juristas podem virar profetas sem deixar de ser juristas”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
É com base nesse espírito então que passamos a expor, neste terceiro e último texto da <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-devido-processo-administrativo-tributario-propostas-para-modernizacao-30052022">nossa série</a>, algumas sugestões finais, mais inovadoras, no intuito de contribuir para os trabalhos da <a href="https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2507">Comissão de Juristas</a> estabelecida pelo <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9087234&amp;ts=1651775912310&amp;disposition=inline">Ato Conjunto nº 1/2022</a> dos presidentes do Senado e do Supremo Tribunal Federal (STF).
<h3>Um modelo facultativo e incentivado de juízo arbitral</h3>
Em consonância com a letra “H” da seção constante das considerações finais da pesquisa <a href="https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/diagnostico-do-contencioso-tributario-administrativo#:~:text=O%20Diagn%C3%B3stico%20do%20Contencioso%20Tribut%C3%A1rio,resolu%C3%A7%C3%A3o%20de%20lit%C3%ADgios%20administrativos%20tribut%C3%A1rios.">Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo</a>, reconhecemos a importância de se avaliar as possibilidades de redução do número de instâncias administrativas, bem como de integração entre as instâncias administrativas e judiciais, como forma de reduzir os longos prazos e excessiva sobreposição de etapas de tramitação processual.
Contudo, para se alterar realmente o nosso status quo, será preciso um pouco de coragem para inovar. A fim de criar condições mais favoráveis ao processo de inovação institucional, a Lei Complementar poderia prever expressamente a possibilidade de a União e de outros entes subnacionais instituírem, por meio de lei ordinária, ambientes controlados de experimentação (sandbox)<a href="#_ftn2" name="_ftnref1">[2]</a>. Esses ambientes, já bastante conhecidos da prática regulatória, são mais propícios para o desenvolvimento de inovações institucionais, por possibilitarem a experimentação de novos instrumentos jurídicos, além de facilitarem a gradual transição dos nossos modelos mentais, regras procedimentais e ferramentas tecnológicas.
Com o objetivo de estimular a experimentação do instituto da arbitragem no direito tributário brasileiro, a Lei Complementar poderia inicialmente fornecer maior segurança para os agentes públicos e privados envolvidos, fixando parâmetros mínimos para a sua adoção pela Administração, bem como suas condições e efeitos sobre o crédito tributário. Aplicar-se-ia, no que couber e de forma subsidiária, a mesma lógica da Lei nº 9.307/1996, alterada pela Lei nº 13.129/2015.
Começando pela Administração Federal, poderia ser testada a arbitragem tributária como alternativa ao recurso voluntário ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), mas aproveitando-se, na medida do possível, a mesma estrutura física, digital e administrativa de apoio já existente naquele órgão, a fim de viabilizar uma experimentação mais célere e econômica para todos os envolvidos.
Para tanto, a Lei Complementar deveria inicialmente fornecer segurança, fixando parâmetros mínimos para a adoção da arbitragem no direito tributário, suas condições e efeitos. Aplicar-se-ia, no que couber e de forma subsidiária, a mesma lógica da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm">Lei 9.307/1996</a> (alterada pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13129.htm">Lei 13.129/2015</a>).
Assim como ocorre na arbitragem convencional, a opção pela arbitragem tributária deverá implicar em renúncia, tanto para o contribuinte como para a Administração, de recurso ao Poder Judiciário (ressalvadas as hipóteses de controle judicial de nulidade estrutural da sentença arbitral previstas de forma taxativa no artigo 32 da Lei 9.307/1996). É recomendável, no entanto, que seja permitido o questionamento judicial da constitucionalidade da norma sobre a qual tenha se fundado a decisão arbitral (até porque, via de regra, não caberá ao árbitro efetuar o controle de constitucionalidade de normas legais atinentes ao caso), mediante recurso a competente tribunal da estrutura do Poder Judiciário, mas, neste último caso, sem a possibilidade de reexame de provas.
Nesse sentido, a sentença arbitral tenderá a ser sempre definitiva, ressalvados os casos esparsos de nulidade estrutural daquela decisão ou de questionamento de constitucionalidade de normas em âmbito judicial (sem reexame de provas). Sem prejuízo disso, é conveniente que haja a previsão em lei de uma estrutura de recursos para uniformização das decisões arbitrais no âmbito do próprio Tribunal Arbitral, conforme descreveremos adiante.
A Lei Complementar de normas gerais deverá impor que a arbitragem tributária seja sempre de Direito, vendando expressamente a de equidade, assim como a apreciação de questões constitucionais, as quais deverão ficar reservadas aos órgãos do Poder Judiciário.
Questão central para o sucesso do modelo é que este conquiste pela sua eficiência, e não pela simples força, posto que será facultativo. Para tanto, é fundamental dedicar atenção especial para a forma de seleção e garantias dos árbitros.
O corpo arbitral selecionado para integrar o Tribunal Arbitral Federal deverá ser composto por pessoas de 1) notória qualificação técnica, 2) diversidade de formação e experiências, 3) garantia de estabilidade na função pelo prazo do mandato e, sobretudo, 4) imparcialidade, assim entendida como equidistância em relação à Administração e aos contribuintes. Aqui, a exigência de imparcialidade, tanto na aparência quanto na essência, é necessariamente maior do que aquela presente no simples processo administrativo de revisão do lançamento, em razão da própria natureza jurisdicional do provimento arbitral.
O critério de seleção natural, portanto, deve ser o do concurso público, com requisitos de qualificação técnica e profissional à altura da função (e.g., na esfera federal, experiência profissional de determinado número de anos na advocacia, consultoria, magistério ou administração tributária, cumulado com uma titulação acadêmica mínima de pós-graduação em universidade com conceito CAPES adequado; nas demais esferas, a Lei Complementar deve possibilitar a calibragem de tais exigências de acordo com o porte de cada ente tributante).
Sugerimos também que, no âmbito do concurso público, sejam estabelecidas cotas de acesso que garantam uma diversidade mínima na composição do Tribunal Arbitral (e.g., a cota de concursados oriundos de órgãos da Administração Tributária e da Advocacia Pública jamais poderá ultrapassar 50% do total de integrantes do órgão, o mesmo valendo para árbitros oriundos da iniciativa privada).
Após a seleção e posse dos árbitros, estes, sejam quais forem as suas origens profissionais, devem ficar impedidos de atuar tanto na advocacia e consultoria privadas, quanto na Administração Pública, sendo admitido, em ambos os casos, a suspensão do vínculo de trabalho por enquanto durar o mandato, respeitado ainda um período mínimo de quarentena após o seu término. Durante o exercício do mandato, poderá ser permitido ao árbitro o exercício do magistério universitário ou a prestação de outros serviços educacionais, desde que não conflitem com o exercício da sua função.
Haja vista esses impedimentos e a exigência de dedicação quase exclusiva, somados à relevância da função e ao grau de responsabilidade que acarreta, é importante fixar critérios de remuneração adequados que tornem o concurso atrativo por si só, independente do prestígio e da deferência do cargo, mesmo considerando a transitoriedade do seu exercício. Por outro lado, visando também à preservação da imparcialidade, é recomendável que a Lei Complementar proíba que a remuneração dos árbitros seja vinculada a parâmetros arrecadatórios (e.g. valores de tributos ou multas mantidos ou arrecadados).
Em função do potencial papel construtivo e orientativo da jurisprudência arbitral (ainda que sempre em posição ancilar à jurisprudência judicial, como veremos a seguir), é importante que haja garantia de estabilidade na função pelo prazo do mandato e que, além disso, a composição do órgão arbitral seja dotada de uma certa permanência e continuidade no tempo. Árbitros com mandatos muito curtos podem provocar constantes oscilações na jurisprudência arbitral, prejudicando a segurança da Administração e dos contribuintes, ao passo que mandatos excessivamente longos também podem impedir a saudável oxigenação do pensamento do órgão.
Mesmo que seja impossível definir a priori uma fórmula exata, mandatos com prazo determinado não inferior a cinco anos, não coincidentes entre si, vedada a recondução, acrescidos da previsão de diversidade por cotas e da realização de concursos periódicos para a renovação gradual do quadro de árbitros, parecem-nos suficientes para garantir o bom funcionamento do órgão e uma percepção de imparcialidade, na essência e na forma.
É importante também observar que no direito tributário, assim como em outros ramos do direito público (diferente dos casos de arbitragens individuais no direito privado, muitas vezes, inclusive, processados sob acordo de confidencialidade), a jurisprudência arbitral acabará naturalmente exercendo também um papel construtivo importante, mediante a complementação e desenvolvimento da legislação<a href="#_ftn3" name="_ftnref1">[3]</a>, especialmente ao fixar a interpretação das normas e orientar a sua aplicação para os casos semelhantes.
Isso porque, mesmo quando não legalmente vinculantes, as sentenças arbitrais apresentarão forte poder persuasivo e até uma certa eficácia transcendente em função da perspectiva de qualquer contribuinte prejudicado poder interpor recurso ao Tribunal Arbitral para buscar a aplicação do mesmo entendimento. Essa característica reforça as exigências de qualificação, diversidade, remuneração adequada e estabilidade para a composição do Tribunal Arbitral.
Exatamente por conta desse caráter indutor de comportamentos e considerando, ainda, que divergências entre Fisco e contribuintes naturalmente podem se multiplicar em casos idênticos ou semelhantes, é importante a previsão de mecanismos para a uniformização de entendimentos dentro do Tribunal Arbitral, a fim de garantir o máximo nível de isonomia possível. Por isso, ao estruturar o procedimento arbitral, a Lei Complementar poderá estabelecer um tipo recursal dirigido a um órgão especial arbitral, que ficaria responsável por unificar a posição do Tribunal Arbitral sobre a matéria objeto de divergência, posição esta que passaria a ser de observância obrigatória em casos posteriores.
Além da própria vinculação do órgão arbitral à sua jurisprudência (vinculação horizontal), a Lei Complementar também deverá prever que, havendo conflito entre a jurisprudência arbitral e a jurisprudência judicial firmada em sede se controle concentrado de constitucionalidade, de repercussão geral ou de recursos repetitivos, a fonte judicial deverá sempre prevalecer, devendo o Tribunal Arbitral automaticamente a esta se conformar, prestando-lhe deferência, sob pena de cabimento de ajuizamento de reclamação judicial (vinculação vertical).
Tendo em vista a perspectiva de abreviação do rito do processo tributário (administrativo e judicial) pelo recurso à arbitragem, é importante também que o Poder Público estabeleça temporariamente uma estrutura ou pacote de incentivos bastante atrativo para o contribuinte, inclusive quando comparada aos outros meios administrativos e judiciais de resolução de controvérsias (os quais também deverão, por suas vezes, ter as suas próprias estruturas de custos e incentivos ajustadas de acordo).
São exemplos de tais incentivos a ausência de custas, de honorários periciais e de sucumbência, assim como a possibilidade de obtenção de descontos e parcelamentos mais favorecidos quando comparados a outros meios convencionais de solução de controvérsias. Por se tratar de um “produto novo” e “voluntário”, é importante que tais incentivos existam e sejam calibrados de maneira adequada, até porque, não custa reforçar, o modelo ainda precisará ser experimentado, e só pode ser experimentado aquilo que é efetivamente utilizado.
Para que seja bem-sucedido, como já mencionado, este modelo deverá conquistar pela eficiência, sendo certo também que, enquanto método meramente complementar, não será panaceia para todos os problemas. O Poder Judiciário continuará a apresentar grande predominância nas discussões tributárias, tendo em vista a elevada carga constitucional das questões peculiares a esse ramo do direito. Já a discussão das matérias norteadas por questões eminentemente fáticas e critérios essencialmente técnicos, e não estritamente jurídicos (a exemplo de questões contábeis, periciais, preços de transferência, classificação de mercadorias, qualificação de planejamentos tributários supostamente abusivos etc.), tendem a encontrar no Tribunal Arbitral a solução ideal, no pressuposto de que este inspire confiança e gere segurança jurídica para os contribuintes e a Administração.
<h3>Conclusão</h3>
A iniciativa inaugurada pelo Ato Conjunto nº 1/2022 dos presidentes do Senado e do Supremo Tribunal Federal representa uma oportunidade que não pode ser desperdiçada com vistas à modernização do processo administrativo tributário. Não é à toa que essa iniciativa vem contando com amplo suporte da academia, exemplificado em inúmeros textos que endereçam diferentes aspectos do processo administrativo tributário, e obteve expressiva participação social no âmbito da consulta pública aberta pela Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas que modernizem o processo administrativo e tributário.
Da nossa parte, procuramos contribuir tanto com bases gerais para a definição dos assuntos que poderiam ser abordados em uma Lei Complementar acerca do tema, quanto com ideias específicas sobre melhorias procedimentais. Para tanto, focamos ideias que possuem custos de implementação relativamente baixos, melhoram importantes aspectos procedimentais do processo administrativo tributário e, principalmente – e esperançosamente –, têm o condão de fomentar uma mudança de paradigma positiva nas relações entre fiscos e contribuintes, por meio de uma estrutura processual que propicie um ambiente muito mais eficiente, colaborativo e pacífico do que aquele que temos atualmente.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> UNGER, Roberto Mangabeira. O Movimento de Estudos Críticos do Direito: outro tempo, tarefa maior. Belo Horizonte: Letramento Casa do Direito, 2017, p. 94.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> FEIGELSON, Bruno; LEITE, Luiza. Sandbox: experimentalismo no direito exponencial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Nesse sentido, vide MARKOVITZ, Daniel. Transaction Benefits. Yale Journal on Regulation, 2021, mais especificamente sobre os denominados “benefícios de publicidade”, ou seja, espécie de externalidade positiva que surge especificamente quando os termos e condições de uma decisão individual se tornam públicos e conhecidos por outros agentes, de modo a auxiliá-los em casos semelhantes ou mesmo de forma a aprimorar o sistema jurídico como um todo (o que normalmente não ocorre na arbitragem de Direito Privado, especialmente quando o processo é conduzido sob sigilo).

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JOTA

Para que seja bem-sucedido, modelo deverá conquistar pela eficiência

O devido processo administrativo tributário: Modelo experimental de arbitragem

Iniciativa do Ato Conjunto nº 1/2022 representa oportunidade que não pode ser desperdiçada para modernizar processo administrativo tributário