Agassiz Almeida Filho

Plínio Melgaré

Historicamente, o constitucionalismo brasileiro normatiza o quadro de responsabilidades do presidente da República. A Constituição Federal de 1988, em uma seção especial, elenca os crimes de responsabilidade e o impedimento presidencial que deles decorre. Em resumo, o instituto do impeachment envolve a ideia, afirmada na Modernidade, de controle e limitação do poder político por parte do direito.
Uma Constituição é o “fundamento jurídico do político”,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> conformando a política ao direito e apontando os caminhos que as instituições devem percorrer no regime democrático. Reconhece-se a autonomia e a racionalidade de cada uma dessas esferas, mas não se reduz o Estado a apenas uma delas. Então, o direito, com sua densidade normativo-axiológica, constitui-se como uma instância crítica de validade da ação política.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Os denominados “crimes de responsabilidade” são infrações, ilicitudes de ordem político-administrativa. As condutas tipificadas como crimes de responsabilidade não possuem natureza penal – o que não as tornam menos graves. Situam-se na seara político-constitucional. De modo genérico, são atos que atentam contra a Constituição em seu conjunto ou contra a própria existência ou estabilidade da ordem constitucional. A conduta a ser enquadrada no suporte fático das normas que descrevem os crimes de responsabilidade, diante da sua abertura e vagueza semântica, pode acolher diversos comportamentos, nos termos do art. 85 da CF de 88 e da Lei nº 1.079/50.
O processo de impeachment é bifásico. Primeiro, há um juízo de admissibilidade, a cargo da Câmara dos Deputados; segundo, um processo e julgamento perante o Senado Federal. De acordo com o ministro Luís Roberto Barroso, “cabe às instâncias políticas deliberar sobre a permanência ou o afastamento do chefe de Estado. Ao Supremo Tribunal Federal toca, tão-somente, zelar pelo cumprimento da Constituição e das demais normas aplicáveis. Isto é: assegurar que sejam seguidas as regras do jogo”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Enquanto categoria constitucional, o impeachment se caracteriza a partir da dualidade entre direito e política e do necessário diálogo entre ambas as dimensões.
Portanto, a dimensão política do processo de impeachment não é absoluta. Há de se conformar aos parâmetros constitucionais, às regras do jogo. E a “regra do jogo” é: o exercício do poder político respeito à Constituição. Quando o presidente da República atenta contra a ordem constitucional em seu conjunto, segundo o art. 85 da CF de 88 e a Lei nº 1.079/50, incorre em crime de responsabilidade. O que se exige é que o presidente da República compreenda que o exercício de suas funções deve ocorrer nos limites da Constituição, responsável, com sua densidade normativo-axiológica, pela domesticação do poder.
Na fase inicial do processo de impeachment, o plenário da Câmara dos Deputados aprecia a viabilidade da denúncia. Mas, antes de ir ao plenário, a denúncia passa pelo crivo do presidente da Câmara, cuja atribuição é analisar a denúncia e identificar se ela é ou não idônea. Caso a denúncia não possua justa causa ou a petição seja inepta, o presidente da Câmara deve, liminarmente, indeferir o pedido. A denúncia é arquivada. É uma regra pragmática que evita a instabilidade política criada pela recepção temerária de acusações desprovidas de materialidade e autoria.
Mas qual a extensão desse juízo de admissibilidade conferido ao presidente da Câmara dos Deputados? A resposta está na jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF):<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> a atribuição do presidente da Câmara para indeferir de plano a denúncia existe quando esta for “patentemente inepta ou despida de justa causa”.
Contrario sensu, se a denúncia não for inepta ou se nela estiver presente justa causa, com indícios de autoria e prova sobre a existência do crime, há o dever constitucional de recebê-la.
Ao fazer uso desses elementos jurídicos, o STF insere na filtragem feita pelo presidente da Câmara elementos que vão além da mera análise político-conjuntural.
<blockquote class="jota-article__eye">A motivação exclusivamente política para rejeitar de modo liminar a denúncia constitui desvio de finalidade.</blockquote>
Em razão do respeito à Constituição, o impeachment conecta a política ao direito e às suas exigências normativas. É uma resposta jurídica e institucional àqueles governantes que a desprezam; é uma medida de regeneração do ambiente democrático, corroído pelos crimes de responsabilidade. Ao fim e ao cabo, é um mecanismo para que a Constituição seja levada a sério no sistema presidencialista. Por isso, da mesma forma que a denúncia deve ser indeferida de plano quando for inepta ou não apresentar justa causa, também deve ser acolhida nas hipóteses em que essas exigências estiverem presentes.
O princípio do Estado Democrático de Direito impede a inação do presidente da Câmara dos Deputados nas duas hipóteses.
No caso do presidente Bolsonaro, a prática de reiterados crimes de responsabilidade é evidente, sobretudo no plano do respeito ao livre funcionamento dos poderes e ao exercício dos direitos políticos, individuais e sociais. Muitas das mais de 60 denúncias apresentadas não são ineptas ou desprovidas de justa causa. Há, portanto, para o presidente da Câmara, o dever legal de acolhê-las e promover o seu andamento.
Se o Plenário da Câmara ou do Senado Federal decidirem não processar o presidente ou absolvê-lo, cumpre-se o papel que lhes reserva a Constituição. Mas não há espaço, em uma democracia constitucional e diante de uma denúncia com indícios de prática de crimes de responsabilidade pelo presidente da República, para o presidente da Câmara impedir a sua análise.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Conforme consagrada expressão do Professor António Castanheira Neves em A revolução e o direito. Digesta - Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. - Volume 1.º Coimbra:1995.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Conforme Emb. Decl. na ADPF 378/DF.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Nesse sentido, entre outras decisões, ver MS 2094-1/DF

bolsonaro

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JOTA

Se denúncia não for inepta ou se tiver justa causa, com indícios de autoria e prova de crime, há dever de recebê-la

O dever do impeachment

Se denúncia não for inepta ou se tiver justa causa, com indícios de autoria e prova de crime, há dever de recebê-la