Tathiane Piscitelli

No último dia 14 de janeiro, a animação brasileira “O menino e o mundo” foi indicada para concorrer ao Oscar, na categoria melhor animação. Antes, já havia ganhado o Prêmio Cristal de longa-metragem no 38º Festival do Filme de Animação de Annecy, na França. O diretor do filme, Alê Abreu, comemorando, agradeceu “ao cinema brasileiro, à Ancine e às políticas que possibilitaram a realização de um filme independente".
Duas semanas depois, em decisão liminar de uma única lauda, a 4ª Vara Federal do Distrito Federal atendeu ao pleito do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (Sinditelebrasil) e suspendeu a exigibilidade da CONDECINE, tributo devido pelas empresas de telecomunicações, cuja receita responde pela maior fatia do fundo destinado a financiar produções como “O menino e o mundo”.
A CONDECINE é uma contribuição de intervenção no domínio econômico criada em 2001 pela MP 2228-1, com finalidade de destinar recursos à produção cinematográfica e audiovisual do país, de um ponto de vista geral. Inicialmente, o fato gerador da contribuição consistia na “veiculação, produção, licenciamento e distribuição de obras cinematográficas e videofonográficas com fins comerciais, por segmento de mercado a que forem destinadas”, nos termos da redação original do artigo 32, caput, da MP 2228-1/2001.
Com a regulação do serviço de TV por assinatura pela Lei 12.485/2011, que abriu o mercado para as operadoras de telefonia, a CONDECINE passou também a ser devida na “prestação de serviços que se utilizem de meios que possam, efetiva ou potencialmente, distribuir conteúdos audiovisuais” (redação atual do artigo 32, II da MP 2228/2001-1). Diante disso, passaram a ser sujeitos passivos da contribuição as “concessionárias, permissionárias e autorizadas se serviços de telecomunicações”, conforme dispõe o artigo 35, IV da referida MP, introduzido pela Lei 12.485/2011. Desde 2012, portanto, as empresas de telecomunicações estão sujeitas ao pagamento da CONDECINE, que se dá anualmente.
Somente agora, porém, tem-se notícia de uma medida liminar suspendendo o pagamento da contribuição, cujo vencimento seria no mês de março. O argumento central da decisão é o de que as teles não seriam sujeitos passivos legítimos, pois uma vez que se trata de contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE), a exigência tributária apenas deveria recair sobre o setor objeto de intervenção e que dela se beneficiaria. Como as empresas de telecomunicações não teriam qualquer relação com a indústria audiovisual, faltaria a chamada “referibilidade”. Como fundamento, a decisão aponta um precedente do Supremo Tribunal Federal, de 2014, invocado também na petição inicial: o RE 595670, que teria confirmado a exigência de vínculo estrito ao segmento econômico objeto de intervenção.
A decisão, contudo, não parece a mais acertada. A uma, porque interpreta de maneira equivocada o precedente que invoca como razão de decidir. A duas, porque, diferentemente do mencionado pela medida, o vínculo entre as empresas de telecomunicações e a indústria audiovisual não é tênue.
A discussão travada no RE 595670, proferido pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal em maio de 2014, pouco se relaciona com a referibilidade das CIDEs. Referiu-se, na verdade, à exigibilidade de uma contribuição desse tipo por uma prestadora de serviços sem fins lucrativos. A CIDE em questão era a contribuição ao SEBRAE, em torno da qual o Pleno do Supremo, em 2003, no julgamento do RE 396266, avaliara a extensão da referibilidade em ditas contribuições. O julgado de 2014, inclusive, toma este de 2003 como fundamento. Relevante saber, portanto, o que decidiu o Tribunal naquela oportunidade.
No RE 396266, o debate deu-se em dois níveis. Em um primeiro momento, a Corte decidiu que a contribuição ao SEBRAE era de intervenção no domínio econômico, e não de interesse de categorias profissionais ou econômicas ou mesmo contribuição social. Por essa razão, o Tribunal interpretou a regra da referibilidade de maneira menos rígida, invocando, para tanto, trechos da decisão recorrida: “caracterizadas fundamentalmente pela finalidade a que se prestam, as contribuições de intervenção na atividade econômica, conforme já consagrado pela jurisprudência, não exigem vinculação direta do contribuinte ou a possibilidade de auferir benefícios com a aplicação dos recursos arrecadados”.
O julgado de 2014 não refuta ou afasta o entendimento de 2003. Ao contrário, reforça-o. Cita, inclusive, julgado da Segunda Turma do Tribunal, proferido em 2009, cuja ementa prescreve: “[a] autonomia da contribuição para o SEBRAE [alcança] mesmo entidades que estão fora do seu âmbito de atuação, ainda que vinculadas a outro serviço social, dado o caráter de intervenção no domínio econômico de que goza” (RE 576659-ED). Ou seja, sequer divergência entre as Turmas há, nesse ponto.
Portanto, o fato de estarmos diante de uma CIDE somente corrobora que a referibilidade demandada pelas decisões do STF não é tão estrita quanto fez parecer a decisão que isentou as teles do recolhimento da CONDECINE. A simples vinculação ao segmento econômico (sem benefício direto) basta para que a referibilidade esteja atendida.
Resta saber, então, se alguma referibilidade há entre as teles e o mercado audiovisual, de forma que tal requisito, nos termos em que realmente interpretado pelo Supremo, entenda-se alcançado. Nesse segundo quesito, tão pouco parece acertado o argumento das empresas, acolhido de maneira quase que sumária pela medida liminar.
Segundo dados recentemente divulgados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, referentes a 2014[1], 47% da população brasileira com 10 anos ou mais usa a internet por meio de um telefone celular, o que equivale a cerca de 81,5 milhões de pessoas. Esse percentual tem apresentado crescimento constante, desde 2011, quando a proporção desses usuários era de 15%. Não bastasse isso, as teles exploram crescentemente o mercado de internet fixa, não mais limitando seus serviços ao tráfego de dados móvel.
No que se refere às atividades realizadas pelo celular, temos que 57% dos usuários se utilizam da rede para ouvir música, 44% para compartilhar fotos, vídeos ou textos e 42% para assistir a vídeos. Todas essas frações experimentaram aumento em 2014 em relação a 2013. Todas elas referem-se, potencialmente, ao setor de audiovisual.
Tudo isso comprova algo que nossa intuição nos diz: a internet, que indiscutivelmente pertence à atividade econômica das empresas de telecomunicações, é uma plataforma mais do que relevante para a divulgação desse tipo de conteúdo – a expansão de serviços como os prestados pela Netflix mostram isso de maneira muito clara.
Dessa maneira, o vínculo entre a atividade econômica explorada pelas empresas de telecomunicações e o setor que a CONDECINE pretende estimular não é tênue. Há clara pertinência e, desse modo, pleno atendimento ao requisito posto pelo Supremo quando do julgamento da contribuição ao SEBRAE: o sujeito passivo eleito pela lei é um agente que atua no segmento econômico alcançado pela intervenção estatal. Assim sendo, os argumentos invocados pela decisão liminar não parecem sustentar as conclusões a que ela chegou.
Neste ano, o grupo “Porta dos Fundos” estreará nos cinemas. O projeto foi apoiado pela ANCINE. Como é sabido, o grupo tornou-se conhecido pela internet, produzindo conteúdo audiovisual. Explorará agora outro formato, um longa para o cinema. A crer nos argumentos das empresas de telecomunicações, tudo não passa de uma grande coincidência. Mas sabemos que isso não é verdade: não é difícil que esse mesmo filme seja em breve disponibilizado por alguma plataforma de streaming, que, por sua vez, poderá ser acessada pelos celulares, tablets e computadores, por meio da internet que essas mesmas empresas de telecomunicações fornecem. Afirmar que é tênue o vínculo entre tráfego de dados e conteúdo audiovisual equivale a negar a realidade que se coloca diante de nossos olhos.

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JOTA

A suspensão da exigibilidade da CONDECINE, tributo devido pelas empresas de telecomunicações, cuja receita financia produções como “O menino e o mundo”

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