José Leonidas Bellem de Lima

A certa altura de seu mais recente livro (Maquinação do mundo: Drummond e a mineração), José Miguel Wisnik põe sob contraste, lado a lado, dois acontecimentos distintos na história da exploração ferrífera brasileira: o primeiro deles, o longo e incansável processo, iniciado na década de 1940, de progressiva dilapidação da paisagem física e geológica de Itabira do Mato Dentro, cidade natal de Carlos Drummond de Andrade, pela diuturna atividade minerária na região; sendo o outro, já em 2015, o desastre socioambiental de Mariana, com o rompimento da barragem de rejeitos da empresa Samarco.
O autor – que seis meses depois de publicar o livro ainda assistiria, como todos nós, ao pesadelo de Brumadinho  – assim escreveu:
“Associar os acontecimentos de Itabira e de Mariana não significa equipará-los – um é efeito do lento desenrolar de uma exploração que opera em surdina ao longo de décadas, de modo crônico, localizado e praticamente invisível na cena pública nacional; outro eclode súbito e estrondoso, esparramado no espaço e reconhecido imediatamente como a maior hecatombe socioambiental do país, desmascarando a pulsão destrutiva da sanha extrativa e acumuladora. Embora diferentes, no entanto, o acontecimento catastrófico de Mariana, com tudo que tem de fragoroso e letal, pode ser visto como o raio que ilumina o que há de silencioso e invisível na catástrofe de Itabira.”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
 <a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Ainda que se refira à específica "sanha extrativa e acumuladora" da mineração, a imagem de Wisnik, da lenta erosão que um dia desata em desmoronamento completo, cai como uma luva para descrever um outro processo, que hoje vemos avançar rapidamente no Brasil, e cujos responsáveis, ao contrário dos de Mariana e Brumadinho, mal se esforçam para justificá-lo como fruto de um "acidente".
Trata-se, aqui, do acelerado desmonte do aparato estatal de proteção do meio ambiente, especialmente por meio do esvaziamento de suas instâncias de participação e de controle social, tendência que ficou patente com a "reforma" do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) pelo Decreto nº 9.806/2019.
Com efeito, em governos passados, ainda que "de modo crônico, localizado e praticamente invisível na cena pública nacional",  já vinham sendo minados os meios à disposição da sociedade para, nesses colegiados, fazer valer suas posições na elaboração e no acompanhamento de políticas públicas ambientais.
Por sempre terem constituído diminutas minorias em conselhos, as entidades ambientalistas da sociedade civil só muito raramente eram capazes exercer efetiva influência em discussões e processos decisórios: na melhor das hipóteses, depois de esforços hercúleos para fazer valer posições pró-meio-ambiente, logravam atenuar a nocividade de certas propostas.
Agora, porém, com a reforma do mais importante e emblemático desses conselhos, o Conama, reduziu-se a pó até mesmo a mera possibilidade de participação e de exercício do controle social em matéria ambiental. A política de terra arrasada do atual Governo para o meio ambiente, "com tudo que tem de fragoroso e letal", fez eclodir, de modo "súbito e estrondoso", o antigo desejo de neutralizar as poucas forças que ainda restavam para conter a captura desses espaços por interesses escancaradamente antagônicos aos propósitos de proteção.
Não à toa, na seara ambiental, o inconteste viés autoritário do governo Jair Bolsonaro se fez sentir com mais força justamente em medidas que, como essa reforma do Conama, pretendem eliminar a "incômoda" presença da sociedade nos espaços de discussão e formulação de políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos fundamentais – em clara agressão ao princípio da participação popular direta (art. 1º, parágrafo único, da CF), basilar em nossa ordem constitucional democrática.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, a julgar pela voracidade da agenda anti-ambiental, anunciada já desde a campanha presidencial de Jair Bolsonaro, não causou surpresa a edição do Decreto nº 9.806/2019, que alterou a composição e o funcionamento do Conama.</blockquote>
Todavia, o irrefreável descalabro em curso na gestão do meio ambiente tem deixado cada vez mais evidentes, por um lado, a gravidade das alterações no colegiado, mas também, por outro, o valor do controle social e da participação direta da sociedade na normatização de políticas públicas ambientais.
Afinal, é pela participação efetiva do público – dando-lhe real capacidade para influir na tomada de decisão em matéria de meio ambiente – que se garante não apenas a legitimidade das ações estatais, mas também a vigilância necessária para impedir previamente a passagem de sorrateiras "boiadas", como aquela que proposta aos seus pares pelo ministro Ricardo Salles na fatídica reunião de 22 de abril, no Palácio do Planalto.
Criado em 1981 pela Lei nº 6.938, e idealizado justamente como a instância participativa por excelência na área ambiental, o Conama é o principal órgão de normatização infralegal em meio ambiente do país. Desde então, editou mais de quinhentas resoluções, regulamentando para todo o território nacional, com força de lei, as mais variadas matérias.
O decreto presidencial, assinado conjuntamente pelo ministro Salles, praticamente extirpou do colegiado a participação da sociedade, neutralizando-a não apenas em termos quantitativos (concedeu-se apenas 17% dos assentos à sociedade civil, enquanto os entes governamentais ficam com 74%, dos quais 44% são do próprio Governo Federal), mas também qualitativos (escolha por sorteio das ONG's ambientalistas com assento no conselho e impossibilidade de reeleição, impedindo a autonomia do segmento para escolher democraticamente seus próprios representantes, como sempre se deu).
Mesmo sem uma incursão mais profunda no cotidiano das discussões travadas em colegiados ambientais como o Conama, é perceptível a existência de duas categorias de interesses distintos, ainda que regimentalmente o conselho se diga composto por cinco “segmentos” ou “categorias de interesse multissetorial” diferentes.
Num campo, há a representação daqueles que estão comprometidos tão somente com a proteção do meio ambiente – no caso, ONG's ambientalistas, entidades mais legitimadas para representar o interesse público nesses colegiados, uma vez que precipuamente criadas para esta finalidade.
Do outro, aqueles que defendem interesses múltiplos (de natureza político-governamental, econômica, classista etc.), e que ali se aglutinam para antagonizar os primeiros.
A distribuição de forças entre essas duas categorias de interesses deve, contudo, atender prima facie ao princípio da igualdade, de modo que possam ter, em tese, as mesmas condições – não só em termos numéricos, mas também qualitativas – de ver consideradas, debatidas e até rejeitadas (contanto que fundamentadamente) as suas proposições.
Considerando que a técnica decisória pela maioria é o mecanismo adotado para a tomada de decisões nesses colegiados, mas também que o Conama está sobretudo vinculado legal e constitucionalmente ao cumprimento de sua finalidade de proteção ambiental, é preciso então decidir a qual dos dois tipos de interesse em oposição deve-se dar representação majoritária, de modo tal que se confira ao órgão colegiado (e não a uma ou outra parte) maiores probabilidades de realizar seu desígnio.
A baliza objetiva necessária para solucionar a questão reside na identificação do bloco mais propenso e legitimado a fazer o Conama cumprir a tarefa que constitui a sua própria razão de ser, qual seja, a de proteger o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Adotado esse discrímen, a representação do campo "protetivo", pelas ONG’s ambientalistas, nunca poderá ser minoritária nesses colegiados participativos; ao contrário, deve ser sempre majoritária em relação aos interesses múltiplos.
A legitimidade subjetiva por excelência das entidades ambientalistas da sociedade civil para representar os interesses do “público em geral” em espaços participativos do Estado está consagrada em normativas basilares do Direito Internacional do Meio Ambiente, como a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), e a Convenção de Aarhus sobre Acesso à Informação, Participação Pública na Tomada de Decisões e Acesso à Justiça nas Questões Ambientais (2001).
Ademais, como tem ficado cada dia mais visível, não se pode presumir da parte dos entes governamentais a atuação na defesa do interesse público, em especial nas questões ambientais, quanto mais num fórum participativo cujos procedimentos ele próprio controla e no qual, ao mesmo tempo, figura como “parte” (no caso do Conama, parte majoritária).
A própria doutrina jurídica, dispensando incursões no campo da ciência política, reconhece há muito a existência de interesses próprios, individuais, do Estado, interesses esses que em nada se confundem com o verdadeiro interesse público, tecnicamente classificado como interesse público primário.
Foi com esteio nessas premissas que a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge houve por bem arguir a constitucionalidade do Decreto nº 9.806/19, tendo ajuizado, em setembro de 2019, no Supremo Tribunal Federal, a <a href="https://mpfdrive.mpf.mp.br/ssf/s/readFile/share/153422/-722206481582109249/publicLink/ADPF%20623%20-%20Representa%C3%A7%C3%A3o%20PRR3%20e%20Anexos.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ADPF 623</a>. A ação, que tem como relatora a ministra Rosa Weber, não teve qualquer andamento desde então, com o pedido cautelar pendente de julgamento e uma petição de ingresso como amicus curiae sequer apreciada.
Destino muito diferente desse teve até agora a ADPF 622, proposta na mesma ocasião pela PGR, e na qual, com fundamentos semelhantes, se impugnou o decreto reformador do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda).
Neste caso, já houve decisão liminar parcialmente favorável do relator, ministro Barroso, que determinou a suspensão dos pontos mais problemáticos da norma até que se dê a decisão final do Plenário.
As alterações sobre o Conama, assim como as que se deram em muitos outros fóruns participativos de políticas públicas da esfera federal (ou melhor, naqueles que foram poupados da extinção em massa pretendida pelo Decreto nº 9.759/2019 e atenuada pelo STF) são típicas de inclinações autoritárias, contrárias ao postulado da democracia participativa direta, que o artigo que abre a Constituição de 1988 fez por bem coexistir com a modalidade representativa tradicional.
Neste momento crítico, de galopante desmantelamento das estruturas e normas voltadas à proteção e defesa do meio ambiente, pudemos flagrar, ao vivo e a cores, aonde nos tem levado a falta de controle social e de participação direta do público em matéria de gestão ambiental (Brumadinho foi um triste exemplo disso), bem como o grande pátio de manobra que essa ausência abre a cesarismos oportunistas e mal-intencionados.
Caberá agora ao Supremo Tribunal Federal, e mais ainda à relatora da ADPF 623, ministra Rosa Weber, desatar um importante nó desse antigo emaranhado, para que finalmente se abra o Conama à presença e à influência efetiva da sociedade civil – por intermédio de suas entidades ambientalistas – na condução da agenda ambiental brasileira, e se proteja este importante canal das investidas sub-reptícias que agora nos são de todo conhecidas.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> WISNIK, José Miguel. Maquinação do mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 37-38.

brumadino

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JOTA

As alterações sobre o Conama são típicas de inclinações autoritárias, contrárias ao postulado da democracia participativa

O desmanche do Conama e o Supremo Tribunal Federal

As alterações sobre o Conama são típicas de inclinações autoritárias, contrárias ao postulado da democracia participativa