Inobstante previsão expressa da separação dos poderes, no artigo 2º da Carta Política da República, infelizmente o que se vê na prática, e cada vez mais, é a supremacia do Poder Judiciário sobre os demais, em razão de decisões que ora não dão efetividade às leis emanadas pelo Poder Legislativo, ora negam vigência aos atos exclusivos do Poder Executivo.
Com efeito, essa questão ganha maior relevância se considerarmos que está para ser discutido e aprovado o novo Código de Processo Penal, que tramita no Poder Legislativo Federal desde 2009.
Justamente em razão da falta de consenso em aprovar o aperfeiçoamento da legislação processual penal, foram editadas nos últimos anos várias leis alterando diversos aspectos processuais, especialmente aqueles que tem como objetivo promover o desencarceramento, uma vez que o Poder Executivo já demonstrou, em várias oportunidades, a sua impossibilidade administrativa e financeira de gerenciar um sistema carcerário falido e em situação de absoluta inconstitucionalidade, como já reconheceu o próprio Supremo Tribunal Federal (STF).
Nesse sentido, vale lembrar que foi editada a Lei 12.403/2011, alterando o Código de Processo Penal, para nele inserir um rol expresso de medidas cautelares alternativos à prisão, justamente para atender ao interesse do Poder Executivo e, por via de consequência, do próprio Estado.
Na mesma toada, foi editada a Lei 13.964/2019, que criou e regulamentou as audiências de custódia, que, dentre outros objetivos, também estabeleceu um filtro para análise das prisões que estavam sendo efetuadas, fossem elas em flagrante, temporárias ou preventivas, prevendo, ainda, a necessidade de revisão das prisões no prazo de 90 dias. Outra alteração relevante, prevista na mesma lei, foi a inserção de dispositivos que preveem o acordo de não persecução penal nos crimes de médio potencial ofensivo.
Ou seja, nos últimos anos, o Poder Legislativo, exercendo sua função constitucional, promoveu, por meio do aperfeiçoamento das leis, a criação de uma série de alterações que proporcionariam uma melhor gestão do sistema de justiça penal e carcerário administrados pelos Poderes Judiciário e Executivo, respectivamente.
Ocorre que, como se sabe, o Poder Judiciário praticamente não aplica os referidos dispositivos legais, justamente por acreditar que a única solução para a questão da segurança pública é o encarceramento das pessoas que estão em conflito com a lei.
A bem da verdade, os magistrados, especialmente aqueles que exercem a judicatura no interior do País, acreditam ter um papel relevante e central para “combater” a criminalidade local, o que, em última instância, acaba sendo confirmado pelos tribunais regionais, determinando prisões de forma absolutamente indiscriminada, acreditando que, ao transferir aquele individuo em conflito com a lei para presídios fora de sua comarca, estaria, ao menos temporariamente, diminuindo os efeitos da criminalidade.
Na prática, o que se vê é a impropriedade da referida medida, seja porque a prisão de pessoas que são primárias ou que não estejam inseridas em organizações criminosas só fortalece o poder desta última, seja pela ineficácia da prisão como instrumento de ressocialização, ou, ainda, pelo fato da segregação de um determinado individuo, que não raro é o esteio familiar, relegar este núcleo a uma situação de miséria absoluta e perpetuação daquele modelo de vida em permanente conflito com a lei.
Não por outro motivo, a despeito de todas as alterações legislativas, o sistema carcerário está a cada dia mais sobrecarregado, tendo em alguns estados uma situação de total colapso e, de outro lado, esta mesma disposição dos magistrados de primeira instância e dos tribunais regionais em perpetuar a segregação cautelar como meio de contenção social, sobrecarrega todo sistema de Justiça com um sem números de habeas corpus, especialmente junto às cortes superiores que, em última instância, acabam dando alguma efetividade ao desencarceramento.
Portanto, ao que tudo indica, somente a instituição de Conselhos locais de Segurança Pública, com a adesão das associações representativas da Sociedade, somado à rede de proteção multidisciplinar do Judiciário, composta de assistentes sociais e psicólogos e, ainda, dos próprios magistrados, somado aos representantes do Legislativo e do Executivo, em permanente diálogo, decerto poderão definir a adoção de estratégias extrajudiciais e judiciais, que diminuirão a sensação do magistrado de ser ele o único responsável pela contenção social daquela comarca.
Assim, somente a estruturação e a divisão das responsabilidades das atribuições do Sistema de Justiça permitirá a diminuição do indesejado protagonismo do Judiciário e, por via de consequência, trará uma melhor gestão do sistema carcerário e da própria contenção social, por meios adequados e distantes do encarceramento em massa que hoje é praticado e que nos trouxeram ao atual estado inconstitucional do sistema.