Eduardo Januário Newton

Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

Jorge Bheron Rocha

No dia 24 de novembro de 2020, a comunidade jurídica foi surpreendida com a aprovação do Ato Normativo nº 0009672-61.2020 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no qual autorizou-se a realização das audiências de custódia por intermédio de videoconferência, se o magistrado entender, fundamentadamente, que resta impossível, em razão da pandemia, a sua ocorrência presencial no prazo de 24h.
O presente artigo visa a debater a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE), mediante circular interna, que autoriza – e, diga-se de passagem, inclusive já foi colocado em prática em algumas comarcas – a realização das custódias virtuais diretamente das delegacias de polícia e os desdobramentos negativos desta escolha, especialmente em face das convenções internacionais, disposições constitucionais, demais normativos internos, além de decisões judiciais atinentes à espécie.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Como dito, a regra é que as audiências de custódia na modalidade presencial, sendo possível, segundo o CNJ, que, excepcionalmente, e de forma fundamentada, sua realização por sistema de videoconferência.
Concorda-se que o processo penal deve se valer dos avanços tecnológicos para garantir a eficiência e celeridade processual, todavia, desta premissa não decorre logicamente a compatibilidade da realização de custódia por videoconferência com os parâmetros constitucionais e convencionais que regem a matéria.
As normas convencionais e o Código de Processo Penal (CPP) mencionam a presença do preso, o que, pela própria lógica, implica no comparecimento físico, e não de uma imagem em tela de computador.
<blockquote class="jota-article__eye">Pondera-se: como se pode, mediante vídeo, se constatar marcas de maus tratos ou tortura, mormente quando se sabe que todos os atos de tortura deixam sinais aparentes?</blockquote>
A prima vista, verifica-se que não se tem como garantir adequadamente os objetivos das audiências de custódia de forma virtual.
E que não se ignore a alegação, tal como invocada pelo Tribunal de Justiça do estado de Tocantins (TJTO), de ausência de recursos e infraestrutura para a realização da audiência virtual, o que acabou por implicar na retomada da análise fria do papel. Eis o teor da Decisão nº 5122/2020 – Presidência do TJTO:
“Considerando que ainda não há condições de serem realizadas as audiências de custódia por videoconferência em razão do sistema de implantação se encontrar na fase de teste embrionário, ACOLHO a manifestação do magistrado coordenador do GMF e os argumentos apresentados, razão pela qual mantenho suspensas as realizações das audiências de custódia.”
A realização de custódias virtuais se torna ainda problemática se realizadas diretamente das delegacias de polícia, “pois se colocará em risco – para além dos direitos das pessoas custodiadas, em especial a apuração da ocorrência de tortura ou maus tratos –, o fundamento da dignidade da pessoa humana, e por conseguinte, o próprio Estado Democrático de Direito. Há que se recordar, por oportuno, que o núcleo essencial da decisão com força vinculante tomada na Medida Cautelar da ADPF 347 é justamente a proteção à dignidade da pessoa humana contra as constantes, intensas e graves violações perpetradas pelos aparatos de poder contra as pessoas privadas de liberdade”<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>.
Ainda que seja conferido ao preso o direito de permanecer sozinho na sala virtual de audiência, inclusive com direito a uma entrevista reservada com seu defensor – ressalta-se que não se tem garantia alguma do sigilo dessa conversa –, pensa-se que do ato resulta inequívoco prejuízo para a defesa.
Não se trata de construção cerebrina e de tom apocalítico, pois o levantamento do sigilo da conversa no ambiente virtual já ocorreu, tal como noticiado por importante canal midiático<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>.
A normativa do CNJ determina, inclusive, que o isolamento da pessoa presa seja garantido pela colocação de câmeras externas à sala e, internamente à sala, por meio de câmeras 360 graus e de mais de uma câmera simultaneamente, viabilizando a visualização integral do espaço durante a realização do ato.
Apesar de todas essas preocupações, se a custódia é realizada na própria delegacia de polícia, quem garante o que vai ocorrer quando findar a audiência e se desligarem essas câmeras?
Como o autuado relatará eventual tortura/mau trato, sabendo que uma porta o separa de seus agressores e que o juiz responsável pela fiscalização do ato se encontra bem distante, inclusive sem possibilidades de apurar eventual represália policial decorrente de seus relatos?
A função de garante da integridade física e moral do preso – responsabilidade do Estado juiz – é transferida à defesa, já que facultado o acompanhamento presencial de defensor público ou advogado ao custodiando. Além de se tratar de uma delegação inconstitucional da função de garante, questiona-se veemente até que ponto será eficaz.
Ora, basta imaginar uma situação hipotética, na qual o defensor público/advogado se dirigirá até a delegacia de polícia para acompanhar a realização da custódia e o preso revela que foi vítima de maus tratos/tortura. Enquanto o agente responsável pela defesa técnica estiver fisicamente presente no ambiente policial, certamente a integridade do preso será respeitada.
Mas, finda a audiência de custódia, certamente o autuado irá para casa (hipótese de liberdade provisória cumulada ou não com outras medidas cautelares diversas da prisão) ou ficará na companhia dos policiais para encaminhamento para o sistema prisional.
Nesse momento, quem vai assegurar que o preso não sofrerá represálias por suas declarações? Será que também caberá a defesa técnica resguardar a integridade física e moral do custodiando mesmo finda a audiência de custódia?
É bem verdade que o preso, antes de ser submetido à audiência de custódia, deve passar por um exame de corpo delito. Impende, todavia, pontuar duas questões:
1) essa obrigação não é cumprida a contento na práxis judicial brasileira, tanto que tramita no STF a Reclamação Constitucional nº 43.833<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>;
2) ainda que o laudo fosse feito e entregue no prazo correto, do que adiantaria submeter o preso a um exame prévio, se após as audiências de custódias, como já pontuado acima, o preso estaria à disposição dos seus potenciais agressores – que inclusive podem ser os próprios responsáveis pela sua prisão – sem nenhuma fiscalização?
Não há resposta que atenda à lógica reposta, porque não há como explicar o inexplicável!
Outrossim, o art. 4º da Resolução nº 213/2015 proíbe expressamente a presença de policiais responsáveis pela prisão ou mesmo pela investigação dos fatos no momento da audiência de custódia, justamente objetivando que o autuado seja entrevistado sem qualquer espécie de constrangimento ou medo.
A sétima arte, aliás, retrata a relevância da proibição da presença do policial responsável pelo aprisionamento ou pela investigação que culminou com o encarceramento, quando da realização da audiência de custódia. Cuidado: a informação pode antecipar dados para quem não viu o filme.
Na película italiana “Na própria pele – Sulla mia pelle” –, o personagem principal não narra as agressões sofridas no primeiro contato com o magistrado, e lá não se trata de uma audiência de custódia, pois o âmbito cognitivo é mais amplo. Essa sua omissão se dá pelo fato de ter sido apresentado para a audiência pelos carabineiros responsáveis pela prisão e pela agressão.
A realidade de Stephano Cucchi tratada no filme é verídica e ocorreu no ano de 2009. Quem sabe apelando para o 1º mundo as pessoas possam entender a importância da proibição contida no artigo 4º, Resolução nº 213, Conselho Nacional de Justiça e que pode ser superada com a realização da audiência de custódia virtual e na delegacia.
Se um dos objetivos da audiência de custódia é a verificação da ocorrência de maus tratos/tortura e, ainda, sabe-se que é justamente a autoridade policial a protagonista na realização desse tipo de violência, como pode a Defensoria Pública – a quem incumbe, dentre outras atribuições, a missão constitucional de proteção dos direitos humanos – coadunar com tamanha aberração?
Acertadamente, a Defensoria Pública do Estado de Pernambuco emitiu nota pública, que foi ratificada por 110 entidades/organizações do direito de defesa em todo o país, rechaçando a realização de custódia virtual diretamente das delegacias de polícia e solicitando, inclusive, a retomada das custódias na forma presencial.
Prova de que esse pedido é totalmente plausível é que desde o ano passado ocorrem audiências criminais e sessões plenárias do júri presencialmente nos fóruns do estado de Pernambuco, mesmo lugar em que se realizavam as custódias antes da pandemia. Somente as audiências de custódia presenciais servem como filtro moderador para evita prisões desnecessárias e coibir maus tratos e torturas.
É válido ressaltar que autuado é sujeito de direitos e não mero objeto de prova, e que o processo penal tem natureza política de contra poder<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>. O posicionamento do TJPE viola a regra pro homine, que deve ser a baliza interpretativa das normas convencionais que versam sobre direitos humanos, e a Defensoria Pública, enquanto instituição pública de defesa e com a missão constitucional de promoção dos direitos humanos, não pode coadunar com esse posicionamento.
Em arremate, acredita-se que a realização de custódia por videoconferência realizadas nas delegacias de polícia não encontra guarida em um processo penal humanitário, cujas diretrizes constitucionais e convencionais buscam sempre a máxima eficácia dos direitos humanos.
Considerando que o texto foi elaborado no período carnavalesco, apela-se para o primeiro samba gravado, Pelo telefone de Donga, para afirmar que, no atual cenário normativo brasileiro, ainda que seja o intento de muitos, não se mostra possível cantar: pelo telefone, o delegado de polícia mandou avisar que a audiência de custódia já vai começar.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) após ataques ao STF. Ouça: 

https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves; ROCHA, Jorge Bheron. Pau que dá em juiz de garantias não dá em custódia virtual? Disponível em: &lt;https://www.conjur.com.br/2020-dez-02/opiniao-juiz-garantias-custodia-virtual&gt;. Acesso em: 14 de fevereiro de 20121.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Prerrogativas violadas. Conversa privada entre cliente e advogado para nos autos de um processo. In: CONJUR. Disponível em: &lt;<a href="https://www.conjur.com.br/2021-jan-28/conversa-privada-entre-cliente-advogado-autos">https://www.conjur.com.br/2021-jan-28/conversa-privada-entre-cliente-advogado-autos</a>&gt;. Acesso em 15 de fevereiro de 2021.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> ROCHA, Jorge Bheron; NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. ECCE HOMO: Reclação 43.833 e a integridade física e moral dos presos. In Empório do Direito. Disponível em: &lt;https://emporiododireito.com.br/leitura/ecce-homo-reclamacao-43-833-e-a-integridade-fisica-e-moral-dos-presos&gt;.  Acesso em 14 de fevereiro de 2021.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> ROCHA, Jorge Bheron Rocha. A Importância de Moro e da Lava-jato para a Democracia e para as Garantias do Processo Penal no Brasil. In Justificando. Disponível em: &lt;<a href="http://www.justificando.com/2016/09/28/importancia-de-moro-e-da-lava-jato-para-democracia-e-para-as-garantias-do-processo-penal-no-brasil/">http://www.justificando.com/2016/09/28/importancia-de-moro-e-da-lava-jato-para-democracia-e-para-as-garantias-do-processo-penal-no-brasil/</a>&gt;. Acesso em 10 de fevereiro de 2018.

audiencia de custodia

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JOTA

Audiência de custódia por videoconferência nas delegacias não encontra guarida em um processo penal humanitário

O delegado mandou avisar: a audiência de custódia já vai começar?!

Audiência de custódia por videoconferência nas delegacias não encontra guarida em um processo penal humanitário