Victor Hugo P. Lemos

No período de 29 de junho a 1° de julho de 2020, os ministros do Supremo Tribunal Federal realizaram sessão administrativa em ambiente virtual para deliberarem acerca de algumas propostas de alteração do Regimento Interno da Corte (RISTF).
Longe de se tratar de uma reunião com finalidades meramente administrativas e burocráticas, como se poderia crer, a realização de alterações no RISTF vem provocando impactos substanciais em processos das mais variadas grandezas.
A título exemplificativo, veja-se a enorme polêmica que gira em torno da constitucionalidade do Inquérito nº 4.781, o famoso “Inquérito das fake news”, cuja instauração se deu por meio de uma Portaria editada pela Presidência da Corte fundamentada no artigo 43 do RISTF.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A reforçar a relevância da mencionada sessão administrativa, as manifestações observadas dos ministros muito nos dizem acerca de como os membros da mais alta Corte do Judiciário brasileiro compreendem seus poderes, seu papel institucional e, sobretudo, nos revela o estado atual do crescente processo de autoconcessão de poderes por parte dos ministros do Supremo.
Exemplo amplamente debatido sobre o mencionado fenômeno diz respeito à chamada “monocratização”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> do Supremo Tribunal Federal, caracterizada por uma forte delegação de poderes decisórios individuais aos ministros da Corte em detrimento das decisões colegiadas.
Não à toa, Luiz Werneck Viana e outros autores chegaram a afirmar que “o STF tem preferido exercer o controle da constitucionalidade das leis mais no julgamento das liminares do que no do mérito”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Referido fenômeno, há tempos, vem sofrendo fortes críticas dos demais Poderes da República, sendo objeto, inclusive, de propostas de alteração legislativa, dentre as quais destaca-se o Projeto de Lei nº 7.104/17<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, já aprovado pela Câmara dos Deputados e, atualmente, em tramitação no Senado Federal.
Observação digna de nota é a de que a concessão de poderes decisórios individuais aos ministros, especialmente no que diz respeito à prolação de decisões que versem sobre medidas cautelares em sede de ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), se deu por meio de uma reinterpretação do próprio Regimento Interno do STF, através de seu artigo 21, IV e V<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Isso, porque inexiste qualquer norma legal que ampare a prolação de decisões cautelares monocráticas nessas ações.
Pelo contrário, o artigo 10, da Lei nº 9.868/99, que regulamenta as medidas cautelares em ADIs, dispõe expressamente que essas deverão ser concedidas por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, inexistindo qualquer espaço para interpretação em sentido contrário<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Não se ignora a importância da apreciação de medidas cautelares por meio de decisões monocráticas, visto que estas, em muitas das vezes, conseguem impedir com brevidade a produção de efeitos deletérios ao sistema constitucional democrático e aos direitos fundamentais.
<blockquote class="jota-article__eye">Todavia, o que esta breve análise se propõe a perquirir é se a prolação de decisões monocráticas poderia se amparar em uma norma regimental editada pela Corte e para a Corte, que acaba por atuar desenhando seus próprios poderes.</blockquote>
Apresentado um panorama geral a respeito do estado da arte que envolve o fenômeno da monocratização no Supremo Tribunal Federal e as constantes críticas que o mesmo vem sofrendo há tempos, começou-se a perceber uma movimentação interna com vistas ao reforço da colegialidade.
Isto é, o próprio Supremo parece ter percebido o esgarçamento de seu capital institucional com a sucessiva prolação de decisões monocráticas por seus membros e as respectivas reações institucionais advindas, mais recentemente e com maior força, oriundas da presidência da República.
Nesse cenário, em 04 de maio de 2020, o ministro Marco Aurélio, por meio do Ofício nº 1/2020 – GBMA, apresentou proposta<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> de alteração do artigo 5º do RISTF para que passasse a constar como atribuição do Plenário “apreciar pedido de tutela de urgência, quando envolvido ato do Poder Executivo ou Legislativo, praticado no campo da atuação precípua”.
A proposta apresentada pelo ministro Marco Aurélio tinha o nítido escopo de reforçar a harmonia entre os Poderes, proteger a imagem institucional da Corte e ampliar a sua atuação colegiada.
Além disso, a proposta buscava reduzir os embates institucionais que o Supremo vem travando com os demais Poderes da República, dado que, para além da discussão acerca do déficit de legitimidade democrática das cautelares individuais, a Corte, quando se manifesta por meio do Plenário, afasta a personificação da decisão e reforça sua unidade institucional.
Paralelamente, os ministros Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli também apresentaram proposta<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> sobre o tema, a qual sugere que: (i) em casos de urgência, concedida a decisão monocrática, ela deverá ser submetida imediatamente à apreciação plenária, preferencialmente em ambiente virtual; e que (ii) a decisão monocrática concedida nesses termos somente produzirá efeitos após a liberação do referendo para julgamento pelo colegiado competente, sendo o processo automaticamente inserido na pauta da sessão imediatamente posterior.
Após a deliberação na sessão administrativa, os ministros rejeitaram a proposta do ministro Marco Aurélio, seguindo a divergência instaurada pelo ministro Alexandre de Moraes<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, que sugeriu a inserção do inciso XII ao artigo 5º do RISTF com redação que apenas explicita que a decisão monocrática que aprecie tutela de urgência, quando o objeto de questionamento for ato do presidente da República, do presidente da Câmara dos Deputados, do presidente do Senado Federal e do presidente do Supremo Tribunal Federal, deverá ser submetida a referendo do Plenário.
No que tange à obrigatoriedade de que a decisão seja imediatamente submetida ao colegiado respectivo, e no que diz respeito ao condicionamento para que a produção de seus efeitos ocorra somente a partir da liberação da decisão para inclusão em pauta, tal como proposto pelos ministros Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli, foi realizado um pedido de destaque para que a matéria seja discutida com maior profundidade em sessão administrativa presencial, ainda sem data para ocorrer.
Conforme a ata de julgamento divulgada<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, “o Tribunal, por maioria, decidiu aprovar a alteração do art. 5º, inc. XII, do Regimento Interno, nos termos do voto do ministro Alexandre de Moraes, vencido o ministro Marco Aurélio, autor da alteração inicialmente proposta, e os ministros Celso de Mello, Luiz Fux, Roberto Barroso e Edson Fachin, que votaram pelo prejuízo da proposta apresentada”.
Desse modo, veio a ser editada a Emenda Regimental nº 54 ao RISTF, que dentre outras modificações, inseriu o XII ao artigo 5º, que versa sobre as atribuições do Plenário, nos seguintes termos: “XII – apreciar, ad referendum, decisão do relator sobre pedido de tutela de urgência, quando o objeto de questionamento for ato do presidente da República, do presidente da Câmara dos Deputados, do presidente do Senado Federal e do presidente do Supremo Tribunal Federal”.
O que se percebe é que a alteração capitaneada pelo ministro Marco Aurélio fora afastada por inteiro para dar lugar a uma alteração regimental que em pouco, ou em nada, a bem da verdade, será capaz de alterar o atual déficit de colegialidade do Supremo Tribunal Federal.
A alteração regimental aprovada apenas reforça – ou formaliza v o cenário que já existe, visto que, após a prolação da decisão monocrática, é natural e esperado que esta seja submetida ao referendo do Plenário, transformando-se, então, em decisão colegiada.
Assim, a despeito da percepção positiva por parte da Corte de que a proliferação de decisões monocráticas precisa ser repensada, o que se intensificou, sobretudo, após a decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes que suspendeu o decreto presidencial de nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal (MS nº 37.097), o que se viu da sessão administrativa em comento é que o Supremo Tribunal Federal acabou por reforçar o cenário já existente.
Desperdiçou-se, portanto, uma grande oportunidade de promover uma ampliação da colegialidade e da unidade da Corte, que são aspectos primordiais em tempos em que a jurisdição constitucional brasileira vem sendo cada vez mais instada a se manifestar e a proteger valores democráticos da mais alta sensibilidade.
Para o momento, nos resta aguardar para verificar como se dará a apreciação do pedido de destaque apresentado e, em sendo este aprovado, como a prática institucional da Corte será capaz de absorver e internalizar essa eventual alteração regimental.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ARGUELHES, Diego Werneck; HARTMANN, Ivar A. A monocratização do STF. Disponível em: &lt;https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-monocratizacao-do-stf-03082015&gt;. Acesso em 06 de julho de 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> WERNECK VIANNA, L., CARVALHO, M. A. R. de, PALÁCIOS, M. &amp; BURGOS, M. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Revan, 1999, p. 117.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n. 7.104/17. Disponível em: &lt;https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1533090&amp;filename=PL+7104/2017&gt;. Acesso em 06 de julho de 2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “Art. 21. São atribuições do Relator: (...) iv – submeter ao Plenário ou à Turma, nos processos da competência respectiva, medidas cautelares necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa; v – determinar, em caso de urgência, as medidas do inciso anterior, ad referendum do Plenário ou da Turma; (...)”
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> “Art. 10. Salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, observado o disposto no art. 22, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias.”
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Disponível em: &lt;http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/propostaRISTF.pdf&gt;. Acesso em 06 de julho de 2020.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Disponível em: &lt;http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoAtasSessoesAdministrativas/anexo/Proposta8509.pdf&gt;. Acesso em 06 de julho de 2020.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Disponível em: &lt;http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoAtasSessoesAdministrativas/anexo/VotoGMAM8510.pdf.&gt;. Acesso em 06 de julho de 2020.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Disponível em: &lt;http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RIAtadeJulgamento.pdf&gt;. Acesso em 06 de julho de 2020.

Ministro Marco Aurélio, durante sessão plenária por videoconferência. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF (15/04/2020)

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JOTA

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